Fugas Angustiantes
O cineasta e roteirista Christian Petzold é considerado um
dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo alemão. Ele
está de volta com mais uma obra instigante, Em
Trânsito, último filme da trilogia Amor
em Tempos de Sistemas Opressivos. Iniciou com Barbara (2012), quando recebeu o prêmio Urso de Prata por melhor
direção no Festival de Berlim, ambientado nos anos de 1980, num bucólico
vilarejo, ao Leste de Berlim, em pleno regime comunista instalado na Alemanha
Oriental, numa análise sobre a divisão de seu país antes de cair o muro, no
constrangimento da protagonista em ser vigiada e passar por humilhantes
revistas íntimas no seu local de trabalho no autoritário regime sem liberdade
de expressão, onde a reunificação era completamente descartada. No segundo
longa da trilogia, Phoenix (2014), centralizou
a história na judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração
em Auschwitz, que retorna à sua cidade natal em escombros na busca de um cirurgião
plástico para recuperar a imagem deformada, mesmo que o passado lhe traga
perseguições. Nesta jornada difícil, reencontra o marido e recebe a ajuda de
uma militante solidária com seus compatriotas, orientando-os para viajarem em
definitivo ao recém-criado Estado de Israel.
Baseado no romance de 1944 da escritora alemã Anna Seghers, Em Trânsito é uma realização ao melhor
estilo da escola de seu país, com um roteiro dinâmico, com cortes certeiros e
precisos, concessões moderadas para o espectador, num tom seco e direto com
artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das
angústias políticas contemporâneas em um mundo de dúvidas e aflições
constantes. Neste ambiente melancólico está Georg (Franz Rogowski), um homem com
remotas esperanças mantido na clandestinidade e pretendendo fugir do inferno da
ocupação de uma França tomada pelos nazistas. Conhece outras pessoas
desatinadas nas ruas em busca do visto para deixar o território francês. Para
isto, acaba furtando os manuscritos e documentos de um escritor falecido,
assumindo literalmente sua identidade. O protagonista sente-se preso em
Marselha, foge da polícia com medo de ser descoberto, mas por pura coincidência
irá conhecer Marie (Paula Beer), a esposa do autor morto, que está numa
incessante e obstinada procura de seu marido desaparecido, mas acabou por se
envolver com um médico (Godehard Giese) numa situação recorrente aos demais,
que também quer ir embora dali.
O drama não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz
de algumas realizações pouco consistentes. Há tensão, amor e intensidade elaborados
sem exageros, com cenas de construções de personagens fortes, mas
psicologicamente fragilizados, bem alicerçados por uma direção autoral
magnífica, através de uma amostragem pela beleza dos detalhes na essência, com
o personagem central conduzindo a trama pelo marcante olhar revelador,
segurando até o desfecho inusitado de um enredo recheado de realismo de um
cinema perturbador. Boa parte da crítica comparou com Casablanca (1942), de Michael Curtiz, diante das semelhanças
amorosas e a situação política efervescente numa cidade totalmente sitiada na
caça de fugitivos anônimos, em especial com a troca física do passageiro no
porto para ingressar no navio com o disputado visto no passaporte. Ainda há uma
similitude estrutural mais acentuada no prólogo da trama com Os Carrascos Também Morrem (1943), do
conterrâneo Fritz Lang, em uma abordagem crucial sobre o papel abjeto das
forças nazistas em território invadido. Em
Trânsito tem vida própria pela contundência na busca da liberdade e na
reflexão sobre os estragos deixados pelo proscrito regime de Hitler, com a
alternância do roteiro às famílias de imigrantes ilegais recentes por todos os
lados prestes a serem banidas.
Tanto no drama anterior como no atual, há uma densidade
fascinante sobre uma época manchada por um sistema opressor, em que a
reconstrução da vida pela perda da identidade decorre do devastador estigma do nefando
holocausto que deixou registradas as cicatrizes do passado no rosto e na alma,
diante da tentativa de construir uma identificação alternativa em busca da aproximação
do grande amor que foi sacrificado. Um foi deportado para a Polônia, o outro
foge para o México. Petzold é um artesão imparcial, sensível e sutil, que deixa
para o desfecho toda a dor e o fantasma da mulher amada entrando no restaurante
portuário, como uma real vítima das circunstâncias no teatro armado fictício,
para mostrar ao espectador a tragédia do destino modificado ir ao encontro da angústia
dilacerante do sobrevivente, como metáfora das atrocidades da humanidade criadas
por um déspota ensandecido em uma causa infame. Inova ao conceber uma França atual
invadida pela Alemanha, ou seja, a Segunda Guerra Mundial estaria acontecendo nos
dias de hoje, num cenário com pichações, carros modernos, ruas e avenidas com
indicativos atualizados, numa mescla de pura licença poética cinematográfica.
Narrado em off
pelo proprietário do estabelecimento gastronômico dos encontros e desencontros
idílicos, que relata em tempo certo as reações do destroçado protagonista
afogado nas suas amarguras amorosas e as lembranças que o atormentam pelas
aparições que remetem aos acontecimentos pretéritos, como soluções indicadoras
daquelas feridas abertas de uma situação aterradora que revelarão a grande estupidez
montada num cenário tenso para uma pausa reflexiva sobre a crueldade tirânica.
Contextualizado dentro de um clímax equilibrado e coerente, através de uma
história contada com suavidade contraditória, porém embrutecida por um panorama
claustrofóbico oriundo desde os primórdios da guerra até a perseguição
implacável aos refugiados contemporâneos. Permeia pela selvageria intercalando
com momentos líricos, embora doloridos, neste impactante drama profundamente
humanista sobre a civilização devastada pela intolerância discriminatória. Um
filme de imagens e diálogos com força de grande expressividade pelos rostos e
olhares na aprazível cidade de Marselha transformada num sombrio hospício
alegórico.
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