segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
Os 10 Melhores do Ano
Os 10 Mais
Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2009, também estou elencando o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais. Não segue uma ordem crescente, mas aleatória sem preferência de lugar:
01. Bastardos Inglórios (foto acima), de Quentin Tarantino;
02. Anticristo, de Lars Von Trier;
03. Horas de Verão, de Olivier Assayas;
04. A Questão Humana, de Nicolas Klotz;
05. Paris, de Cédric Klapisch;
06. Entre os Muros da Escola, de Laurent Cantet;
07. Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes;
08. A Partida, de Yojiro Takita;
09. Desejo e Perigo, de Ang Lee;
10. A Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele.
Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:
- Katyn, de Andrzej Wajda;
- Valsa com Bashir, de Ari Foman;
- Stella, de Sylvie Verheide;
- Hanami - Cerejeiras em Flor, de Doris Dörrie;
- A Bela Junie, de Christophe Honoré.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Partir
Paixão sem Limites
A diretora francesa Catherine Corsini, em seu sétimo longa-metragem Partir (2009), reverencia com estilo próprio o grande mestre François Traffaut, que tinha nas grandes paixões arrebatadoras, por vezes trágicas, sua marca registrada. As semelhanças entre Partir e A Mulher do Lado são por demais iguais.
No longa A Mulher do Lado, Truffaut tinha no elenco nada mais do que a exuberante e magnífica Fanny Ardant sendo disputada pelo marido Henri Garcin e o ex-amante Gérard Depardieu. A narrativa girava em torno de um triângulo amoroso, onde o locador tivera um romance há 8 anos com a mulher de seu mais novo inquilino. Apesar das falsas aparências e dissimulações, logo o relacionamento do passado vem à tona, explodindo com a perda do controle numa festa, o clima de tensão se instala. O velho mestre conduziu como quase sempre o fizera, com sua elegância, capacidade de convencimento e sutileza mesclados com um bom gosto indiscutível.
Já em Partir, a diretora conduz com boa performance, mas longe da genialidade de Truffaut. Soube escolher bem seu elenco, tendo na atriz inglesa de 49 anos Kristin Scott Thomas, com sua beleza mais clássica, porém de enorme talento, como já brilhara em Há Tanto Tempo que te Amo (2008) e O Paciente Inglês (1996), contracenando com o famoso médico (Yvan Attal), seu marido traído, e o amante na pele de um pedreiro espanhol (Sergi López), do enigmático filme O Labirinto do Fauno (2006).
O fogo de um amor enlouquecido numa paixão sem limites é o núcleo deste drama, onde a fisioterapeuta Suzanne é casada com um célebre médico, resolve voltar a trabalhar em casa. Para isso haverá reformas na sua residência no interior da França, sendo contratado um pedreiro espanhol com problemas de imigração e algumas passagens pela polícia. O envolvimento é iminente e os limites do relacionamento entre mulher e marido são transpostos e a separação sempre negada pelo médico se encaminha para a tragicidade. No meio deste redemoinho há os filhos que se dividem em apoio ao pai pela filha e à mãe pelo filho. Num conflito de interesses e amores mal resolvidos sobra para os adolescentes.
Como num vulcão, há o perdão do esposo condescendente e vingativo ao extremo, mas ignorado por Suzanne que sofre todo o tipo de preconceito para ter ao lado seu companheiro. Passam por uma crise financeira inimaginável, mas a paixão se mantém incólume e sua obsessão é transparente. A resistência de Suzanne, nas busca incansável pelo seu destino com o amante é comovedora. Luta bravamente com muita gana, digna de uma pessoa forte que se mantém com equilíbrio até não mais resistir e se deixar levar pela coação e pela solução que vê como única saída, num mundo de preconceitos e de valores estereotipados que são impostos com dinheiro e ameaças, ficando à mercê de uma explícita armadilha do poder e da fama de quem não mais ama, numa metáfora de uma sociedade onde os menos favorecidos são usurpados e levados à humilhação quando se rebelam.
Um bom filme este Partir, mesmo sem o glamour de A Mulher do Lado, deve ser prestigiado e assistido pelas suas qualidades que não são poucas. Um drama de amor e paixão sem pieguices ou tratados de autoajuda. As reflexões sobre o mundo da adolescência no sofrimento dos filhos são bem explorados e contidos. O próprio perdão com o interesse único da permanência simbólica, tem na busca do indiciamento do amante para afastá-lo são vistos como reprováveis e abjetos, pois os meios utilizados são os piores possíveis e dentro de uma clausura de possessão sobre a mulher pelo homem, ainda que o adultério esteja escancarado
Em tempo: O Instituto NT, na Rua Marquês do Pombal, nº. 1111, em Porto Alegre, foi uma agradável surpresa que merece todos os elogios e alguns reparos. A sala de cinema fica no térreo de uma casa antiga e rústica tombada pelo patrimônio público. Tem um ar condicionado perfeito, com uma tela de ótima projeção, tendo nas poltronas revestidas de couro seu ponto máximo e irretocável, embora pequena é extremamente aconchegante. No interior do pátio há uma cafeteria com um telão, estando as diversas mesas e cadeiras temáticas bem distribuídas, homenageando grandes diretores do cenário nacional e internacional. Não há estacionamento privativo, mas na rua é fácil encontrar lugares para os carros, com a presteza de um segurança atento. Há apenas um banheiro, tanto para cavalheiros como para as damas, mas parece não haver problemas maiores.
Como nada é perfeito, faltam placas de indicação da bilheteria, da sala de cinema e do banheiro, mas os funcionários são muito eficientes e dinâmicos, não deixando o espectador perdido. A parte superior do Instituto estava fechada e se destina para exposições.
É de se pensar em reforçar a segurança, pois a localização no Instituto NT é em lugar ermo e propício para assaltos.
No mais, parabéns pela iniciativa! Que venham outras da mesma grandeza e qualidade técnica aliadas ao conforto para os cinéfilos gaúchos e turistas, por quê não?
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
A Questão Humana
Feridas do Nazismo
O filme A Questão Humana não é mais uma obra que trata do Holocausto em que se envolveu de forma bárbara o Nazismo. O diretor Nicolas Klotz aborda de forma sutil, as feridas ainda abertas de uma época que jamais se esquecerá, onde o celerado Adolf Hitler comprometeu toda uma civilização e um povo como o alemão. Esta obra é a terceira de uma trilogia informal que começou com Pária (2000) e A Ferida (2004), onde a estagnação econômica que assola uma França tem os reflexos nos diferentes aspectos impregnados numa década de dificuldades para os franceses.
O longa tem na figura central do psicólogo Simon (Mathieu Amalric), escolhido a dedo no departamento de recursos humanos, pelo vice-presidente da filial francesa de uma corporação petroquímica com matriz na Alemanha, para investigar a vida pregressa do próprio presidente da empresa Mathias Jüst (Michael Londsdale), diante da suspeição de insanidade mental.
Simon demonstra todas as fraquezas inerentes de um ser humano sensível e torna-se uma pessoa debilitada e com sérios transtornos. Envolve-se com mulheres e ainda se deixa levar por drogas numa "Festa Rave", sendo que a loucura parece lhe tomar conta de seus sentimentos, do seu corpo, mente e percepção de um técnico equilibrado e de bom senso. Sua vida esboroa-se cada vez vez mais e sua derrota pessoal parece iminente, com as revelações que vão surgindo e o emaranhado que começa a se dissipar e a desanuviar um passado. As ligações com o nazismo são a mola mestra de uma aluvião de segredos e vidas eivadas por um passado inglório e de ligações com a dívida que teima em retornar e cobrar.
Num misto de confusão mental com as terríveis ligações perigosas do presidente da empresa com o fatídico regime que eliminou milhões de judeus, começam a clarear lentamente e o terror volta ao presente. Não é um filme de imagens monumentais de pessoas sendo mortas nos chuveiros de gases químicos envenenados, mas de elucubrações psicológicas que vão se diluindo, tendo nas palavras e gestos as matizes primordiais desta contundente narrativa de mais de duas horas de duração.
Nicolas Klotz tem uma direção consistente e faz brilhar o talentoso Mathieu Amalric, numa atuação estupenda e consagradora na pele de um profissional isento até o envolvimento com um passado de cadávers insepultos numa França em crise econômica. Aquele pesadelo que vai se formando num terreno de areia movediça, faz com que Simon sinta que nada é mais tão firme e o mundo gira e vai de encontro aos espectadores, por meio de palavras e de sentimentos contidos, que logo irão tomar por completo a mente do mais distraído dos assistentes, pela dor e pela avassaladora confusão psíquica que se instala no investigativo psicólogo que aplica a dinâmica de grupo, se transfere com absoluta propriedade e convencimento.
Simon busca em seus jogos com os funcionários, a tentativa de captar com esmero a agressividade natural das pessoas, fazendo-as ultrapassarem seus limites e se entregarem a persuasão técnica para atingir a competição aguardada numa empresa de nossos tempos, usando como metáforas a reengenharia e a reestruturação. Discretamente tem na investigação seu ponto principal e atinge o ápice ao se encontrar com os participantes do quarteto de cordas em que Mathias era um violinista que se deixará convencer e revelar uma ligação com o pai a serviço de um monumental erro histórico de uma nação, com ressonância de geração a geração.
Eis um filme de cinema político moderno, longe dos clichês didáticos de épocas passadas, que afasta com clarividência o ódio e a vingança, mesmo sendo em tom seco, quase frio, mas jamais omisso ou de sentimentalismos baratos, que desestabiliza o espectador pela visão confusa e perturbada de Simon que revela a monstruosidade vivendo entre nossos pares de um mundo onde as atrocidades ganham espaço, contadas sutil e metaforicamente neste perturbador e extraordinário longa sem dualismo que expõe as vísceras abertas das vítimas tanto das gerações do pós-Nazismo como as do Holocausto. A reflexão proposta no final deixa marcas indeléveis para serem discutidas e absorvidas com um gosto amargo de fel na boca.
Waldick, Sempre no Meu Coração
Brega com Carinho
Patrícia Pilar é uma pessoa iluminada e de uma estrela que nunca quer se apagar. Tem uma beleza estonteante, sendo uma das atrizes mais lindas mesclada com um talento invejável, quando atua na TV ou nas aparições esporádicas no cinema. Recentemente, arrasou no papel da vilã Flora numa das últimas novelas da Rede Globo. Tem chances até de se tornar a primeira dama do Brasil, caso seu marido Ciro Gomes, bem cotado no cenário nacional, venha conquistar a Presidência da República, como sucessor de Lula. É um dos paparicados do atual presidente e a bela loura poderá dar luzes fashion em substituição a dona Marisa.
Pois agora Patrícia Pilar dirige seu primeiro filme, em forma de documentário, com um resultado satisfatório. Mostra sensibilidade em Waldick, Sempre no Meu Coração, dissecando a trajetória deste ícone da cafonice, atualmente chamado de brega, conforme ele mesmo admite no filme, embora prefira a classificação de um poeta romântico. Para quem se lança no mundo do cinema, por trás das câmeras, com seu primeiro trabalho, fica um gosto de quero mais e qual seu próximo trabalho, diante da estreia alvissareira.
A sensibilidade na condução do enredo é contagiante, logo nas primeiras cenas aparece o controvertido cantor dentro de um carro relatando sua vida, suas amarguras e suas inquietações. Não há espaço para lamúrias ou melodramas, afastando todo o sentimentalismo barato, Waldick vai logo dizendo que se inspirou no personagem Durango Kid dos velhos faroestes americanos, que usava roupas com uma capa preta. Adotou também óculos sempre pretos como um estilo próprio e uma maneira de viver como os míticos caubóis.
Admite que tem a fama de mulherengo, beberrão e um homem que apesar de seus sentimentos de um eterno apaixonado nunca se prendeu por muito tempo ao lado de uma mulher. Deixou o sertão da Bahia aos 27 anos para buscar a fama numa profissão digna em São Paulo, pois se cansara do garimpo. Prometeu ao seu pai que só voltaria se vencesse e por isso voltou para a terra natal, embora tenha passado maus momentos no início, aliás como em todos os relatos de famosos.
Waldick diz, sem nenhum constrangimento, que a procura da inspiração está exatamente na tristeza e nas lembranças de saudades como sendo esta a palavra mágica que mais lhe dói. Estar na "fossa" lhe dá vazão para criar e deixar nas canções suas dores de cotovelo de perda e paixão. A felicidade para ele é a busca de uma outra canção ou de uma outra mulher. A volúpia pelo novo contrasta com seu perfil conservador, mas joga tudo isso para o fato de ser um poeta que tem na busca incessante uma fonte sempre mais adiante.
O encontro com o filho está bem dosado, embora haja mágoas dos dois lados, prevalece a voz forte do pai Waldick cobrando a presença do rapaz nos seus shows, como se esse fosse o ausente, sem arrependimentos ou choradeiras. O filho ainda tenta se explicar, mas o corte se faz necessário e a vida continua. Patrícia demonstra conhecimento estético e se impõe como diretora, as elipses são sempre na hora certa. Não há bruscas interrupções e a leveza como conduz este belo documentário se insere como um dos filmes bem aceitos pelo público, pois faz por merecer, diante da suavidade e da finesse como conduz e tendo no centro uma personagem tosca repleta de bravatas.
A reverência da vida e obra ficarão documentadas, embora o filme não se preste para desfilar músicas intermináveis, o que é um acréscimo a mais para a película sobre este romântico baiano morto de câncer em 2008, logo após as gravações finais, que deixou um enorme número de fãs e detratores.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
À Procura de Eric
Conselhos do Ídolo
À Procura de Eric abriu a 33a. Mostra de Cinema de São Paulo, escolha esta saudada com pompas e elogios desmedidos. Este é o último trabalho do festejado diretor Ken Loach, um britânico que tem sua trajetória voltada para as condições da classe operária, suas mazelas e as condições humanas e socias fragilizadas e debatidas à exaustão. Assim foi em Ventos da Liberdade (2006), ganhador do Palma de Ouro em Cannes, diante da sensível abordagem da luta dos trabalhadores irlandeses em 1920 contra os soldados ingleses que tentam obstruir a independência da Irlanda. Segue o tema em Pão e Rosas (2000), Mundo Livre (2007) e Sweet Sixteen (2002), entre tantos com a reflexão sobre o operariado e suas dificuldades de emprego, surgindo a esperança e logo a desesperança.
Mas não muito distante desta reflexão, há a preocupação com os ídolos e suas decadências desportivas, moral e pessoal e amorosas. Bem explorado em Meu Nome é Joe (1998), ao se debruçar sobre um técnico de futebol do pior time de desempregados da Escócia, que acaba por se entregar ao alcoolismo e farras homéricas.
Agora com À procura de Eric seu foco é novamente as diabruras do temperamental e polêmico ex-jogador de futebol do poderoso Manchester Leeds United, um francês de jogadas e dribles refinados e uma pontaria mortal chamado Eric Cantona, com as sequências delirantes de jogadas do passado e gols memoráveis, entre as fotos que se espalham e a idolatria atingindo o ápice e transpondo da realidade para a ficção e a fantasia do cinema
O diretor neste longa faz as confissões do célebre Cantona pela boca do seu fã maior, um carteiro Eric Bishop (Steve Evets) em grande desempenho, numa performance invejável como o homem apaixonado pela ex-esposa Lily (Stephanie Bishop) que conheceu há 30 anos. Apesar de sua luta interior e seu esforço descomunal, as coisas parecem que não se encaixam e nada dá certo. Busca no baseado sua fuga para relaxar e esquecer as amarguras da vida. Nesses devaneios de visões aparece seu ídolo maior Cantona que tenta ajudá-lo, aconselhando como um legítimo amigo a superar os percalços e as dificuldades encontradas para superar os momentos difíceis que está passando.
Na procura dos Erics, tenta se encontrar o Cantona como o Bishop, um é carteiro com suas fragilidades de convivência, dificuldades de resolver as relações interpessoais pela sua intempestividade e o envolvimento de um dos dois enteados com gangues de tráfico, bem como a ausência de paternidade para com sua filha que não criou e tenta se aproximar, para resgatar um passado que vive lhe assombrando, assim como da ex-mulher Lily, por quem nutre a esperança da reconquista. Mas Cantona, seu ídolo inconteste e amigo deixa passar seu passado de glórias e as relações interiores e exteriores conturbadas pelo seu fã Bishop. Ambos se fundem num Eric, mas as frágeis e intrínsecas relações são pertinentes e dolorosas, tanto para o burocrata como para a celebridade.
O cineasta sempre foi um engajado em causas sociais e contra os preconceitos aos imigrantes, quase se deixa levar no final para a autoajuda, como na cena das máscaras de Cantona disseminadas nas torcidas organizadas numa caravana de ônibus, invadindo uma residência de pessoas más e malfeitoras para a sociedade. As filmagens e a humilhação aos cachorros Rotweillers e a destruição simbólica do poder junto aos quadros na parede com agressão moral superior à física, quase que detonam com as ideias maiores propostas. Por pouco a superficialidade aparente que esbarra não acaba com uma reflexiva e grandiosa visão sobre um mundo pouco explorado como o a análise dos ídolos.
Há uma volta com uma saída honrosa, que quase derrapa, deixando algumas lacunas e feridas abertas propícias para a artificialidade refutadas com inteligência. Eis um filme que retrata em doses homeopáticas a vida atribulada deste misto de atleta vilão de bom coração e conselheiro, embora de língua afiada, marrento e irascível por vezes. Nos bons conselhos lembra o filme de Woody Allen, Sonhos de Um Sedutor (1972), como em outros menos votados. Não é novo no cinema, mas com um resultado satisfatório para este bom filme sobre a magia eterna do futebol.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
A Erva do Rato
Ciúmes do Roedor
Júlio Bressane surpreende quase sempre. Às vezes positivamente como o belo e sensual Filme de Amor (2003), e em outras tantas seu lado negativo aflora, como em A Erva do Rato, seu último trabalho, depois do desastrado e vaiado Cleópatra (2007) no Festival de Brasília daquele ano. Tem em seu currículo obras discutíveis como O Anjo Nasceu (1969), Matou a Família e foi ao Cinema (1969), Miramar (1997), Dias de Nietzsche em Turim (2001). Porém há sua obra maior em Brás Cubas (1985).
Com A Erva do Rato aborda o voyeurismo, o erotismo conjugado com uma morbidez entrecortada pelo escatologismo, sem se afastar das neuroses enlouquecidas, retiradas de dois contos de Machado de Assis. O longa funde os elementos extraídos da obra machadiana como O Esqueleto (1875) e A Causa Secreta (1885). Embora não seja uma adaptação, inclina-se para uma livre e desplugada união do conteúdo desses contos. Já em Brás Cubas admite que adaptou diretamente do livro do maior escritor brasileiro de todos os tempos.
As peripécias do ratinho e suas incursões pelas pernas e seu passeio noturno pelo corpo de Alessandra Negrini, faz com que seu companheiro sinta um ciúme doentio pelo pobre roedor erotizado, tendo suas elucubrações e taras punidas pela decapitação dos membros de forma nua e crua com requintes de tortura como a crueldade inerente dos fascínoras traídos, numa cena chocante pela neurótica alucinação de Selton Mello pela mulher invadida e com trejeitos indicadores de uma satisfação mórbida e repugnante. As ratoeiras espalhadas pela casa simbolizam uma opressão e a caça ao animal se transforma num fascínio do homem ultrajado.
Ciúmes de um ratinho ou apenas uma alegoria do mal e do bem, mas que fica destruída pela loucura das cenas finais da adoração pelo esqueleto. Lembra em muito Alfred Hitchcock com a inesquecível cena da mãe e do filho em Psicose (1960), quando há a veneração entre a mãe simbolizando a opressão e o filho cultivando seu passado com seu enlouquecido amor matriarcal. Também no filme do velho mestre Hitchcock, há o ciúme presente e a jovem ouve a mãe dizer para se afastar, pois não deseja a presença de uma estranha naquele lugar. Ainda que bizarro e inverossímil, este é um dos maiores filmes de suspense da história do cinema, mas que serve apenas de apanágio para Bressane se inspirar, e diga-se de passagem, muito mal, diante das dificuldades de continuidade com as aberrações estéticas decorrentes deste sofrível e descartável longa-metragem.
A se lamentar ainda mais, a atuação de Alessandra Negrini, em mais um papel deplorável e melancólico, pois Bressane tem um inimaginável e desproporcional gosto por ela e a vê como sua musa, o que retarda e atrapalha o desenvolvimento de seus filmes, como já o fora em Cleópatra. Uma atriz de escassa dramaticidade, com ausência de uma presença mais marcante, longe de ser uma estrela ou sequer uma boa figurante. Não tem dotes mínimos para ser a protagonista principal e acaba por entortar e comprometer o desempenho de Selton Mello, que está lamentável, longe de sua performance habitual e sabida de equilíbrio técnico e postura de um dos melhores atores brasileiros da atualidade.
O cineasta poderia realizar um filme fabuloso, pois tinha nos contos machadianos, na inspiração hitchcockiana e na sua imaginação fértil, tudo para consagrar-se definitivamente como uma obra singular. Ficou somente o esboço e as alusões filosóficas frustradas de um retumbante fracasso e o desprezível A Erva do Rato irá fazer parte de um ultrapassado formalismo estético, sem emoção ou de uma lembrança construtiva qualificada inexistente, que logo cairá no esquecimento, assim que sair de cartaz.
Garapa
Fome e Miséria
Encerrada a grandiosa 33a. Mostra de Cinema de São Paulo, com ótimos filmes vi e já analisei anteriormente, voltamos à realidade porto-alegrense. Para começar, vimos o irregular filme Garapa, de José Padilha. Realizador de duas obras discutíveis, como o polêmico Tropa de Elite (2007), onde beira ao fascismo, embora haja quem entenda como abordagem cinematográfica de denúncia, o que é controverso, dirigiu Ônibus 174 (2002), bem superior ao filme Última Parada 174, de Bruno Barreto, que tratou do mesmo tema, onde o personagem principal é um dos sobreviventes do massacre da Igreja Candelária. Produziu e escreveu o documentário Os Carvoeiros (2000) e Estamira (2006) somente esteve na produção.
Garapa é um documentário em que três famílias do sertão cearense são as protagonistas da fome e da miséria brasileira nosdestina. Não chega nem próximo das magníficas obras do saudoso Glauber Rocha, como o estonteante Terra em Transe (1967) e a inesquecível obra-prima Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963). Ambos voltados para as desgraças do Nordeste, como a seca e a miséria intermitente, onde a fome era avassaladora e destrutiva conjugadas com as mazelas sociais.
Outro diretor genial que conseguiu passar com maestria a seca e os retirantes nordestinos foi Nelson Pereira dos Santos, no extraordinário Vidas Secas (1963), baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos. O neorrealismo do cinema italiano fica evidenciado neste que talvez seja o maior filme sobre a vida e a miséria de um povo, com a fome sendo a personagem irretocável como símbolo de uma era de desolação de pessoas abatidas pela penúria e sem saída.
José Padilha parte para a câmera solta documentando tudo, sem um roteiro, numa estética afastada de uma envergadura cinematográfica plausível. Filmado em preto e branco, as sequências da rotina das famílias vão acontecendo. Há as bebedeiras com porres homéricos rotineiros, as agressões físicas e visuais, o sofrível atendimento do SUS, e uma discreta propaganda do programa do Governo Lula denominado Bolsa Família, com números e estatísticas internacionais de famintos num disfarce bem sutil. Os dados são apresentados pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), o que já dá para se desconfiar, afirmando que 910 milhões de pessoas sofrem por deficiência alimentar no mundo, sendo que 55 millhões delas são atendidas pelo Bolsa Família. Nada é discutido ou revisado, há apenas uma euforia incontida de um meta de governo que inegavelmente não deixa morrer mais pessoas famintas. Mas para isso não é necessário apenas aplausos, a discussão e o questionamento são necessários.
Falta ao documentário é a isenção, pois o próprio diretor admite que ao filmar as famílias acabou por se comprometer e fazer parte deste núcleo, até porque seu olhar sociológico tem em muito com sua formação de Administração em Empresas, Economia Política e Política Internacional. Padilha poderia ter realizado um documentário bem melhor, de uma eloquência contundente e imparcial, como Glauber Rocha e Nelson Pereira do Santos. Deve, para isso, deixar de ser o diretor do quase: quase fascista em Tropa de Elite e quase bom e quase isento em Garapa. Também é quase um diretor talentoso.
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