Resgate do Passado
O cultuado cineasta espanhol Pedro Almodóvar está de volta com
Mães Paralelas, 23º. longa-metragem, em
cartaz na Netflix, para construir dilemas advindos das figuras femininas como
pretexto para um filme de resgate sociopolítico. Embora sem se reinventar
totalmente, o bom domínio estético narrativo que o consagrou nestes mais de 40
anos de carreira segue sendo sua marca pessoal. Na sua penúltima obra, Dor e Glória (2019), retratou uma autoficção
intimista do próprio realizador, um diretor homossexual no ocaso da carreira, alter
ego de seu criador, com tintas autobiográficas melancólicas do declínio
profissional. Encerrou a trilogia espontânea sobre o projeto focado em desejo e
ficção cinematográfica mesclados com a vida real de dores e paixões inerentes como
sustentação de personagens masculinos que dirigem na sétima arte, sendo que antes
vieram A Lei do Desejo (1986) e Má Educação (2003). Seguiu o mesmo caminho
de vários artistas em crise ou próximos do fim da existência, transformando a
trajetória como um legado histórico da arte, como visto recentemente no
documentário da legendária Agnès
Varda, que fez um inventário de sua vida e carreira em Varda por Agnès (2019); ou ainda a realização Maria Callas-
Almodóvar dava sinais de estar terminando a carreira, mas retorna com seu clássico estilo de filmar e o rigor característico formal, com o uso de cores fortes tendo a predominância do vermelho. Inova desta feita ao abordar as cicatrizes do passado da era do general Francisco Franco, com este melodrama sobre a maternidade de duas mulheres que não planejaram a gravidez. A protagonista Janis (Penélope Cruz) é uma mulher aparentemente independente, com uma carreira sólida que dá certa segurança financeira, porém não é tão bem resolvida como demonstra. Tem como amiga a estranha e segura Elena (Rossy de Palma); o namorado é o antropólogo casado Arturo (Israel Elejalde); e a distante mãe Brigida (Julieta Serrano). No hospital conhecerá a outra personagem central, Ana (Milena Smit), uma adolescente fragilizada, mas com pensamentos avançados teoricamente, que sofreu um estupro coletivo. O pai sequer deu alguma atenção, e ainda tem sérios problemas de relacionamento com sua mãe, Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), que está focada unicamente na carreira de atriz de teatro. Se Janis entende estar preparada e eufórica para ser mãe, Ana está visivelmente assustada e traumatizada com a nova situação.
O diretor dá vida para as duas futuras mães que esperam pela chegada de seus filhos, passeiam pelos corredores do hospital, trocam informações, confissões, e fazem fortes desabafos. Dão à luz no mesmo dia e no mesmo local, dividem o mesmo quarto, bem como irão construir um forte vínculo de amizade diante do momento de transformação das duas, com as inerentes situações de dor, tanto do parto como do cotidiano intenso de seus caminhos atribulados, onde prevalece a bravura do instinto maternal. Diante das reações amorosas por ausência de afeto profundo em que elas interagem como forma de confissão, há uma derrapada pouco comum em se tratando de Almodóvar, no affair surgido de inopino e colocado fora de contexto por ser desnecessário e interromper o clímax da realização. Ficou vago e estranho ao cortar, até então, a bem elaborada narrativa da troca das crianças no berçário. As desconfianças e as buscas pela verdade emergem de uma realidade que ficou silenciosa por um bom tempo, mas que os fatos novos viriam clarear com o passar do tempo. Embora sem a mesma imaginação para abordar a temática do festejado cineasta japonês Hirokasu Kore-eda, no perturbador drama Pais e Filhos (2013), inspirado em casos reais de bebês trocados que serviram para que fosse contada a comovente saga. Ou ainda no belo filme brasileiro na mesma esteira de um dos episódios de O Que se Move (2012), de Caetano Gotardo, sobre um fato real acontecido em 2002, mais conhecido como Pedrinho de Goiânia, diante do roubo de uma criança da maternidade, e somente aos 16 anos iria encontrar seus pais biológicos.
Dá para dizer que é mais uma produção com a grife Almodóvar, que transparece como uma evidente tentativa de resgatar as feridas pretéritas, embora seu propósito tenha ficado no meio do caminho. Afastou-se do discurso inflamado para dar um viés contido embasado pelas lembranças afetivas e dos fantasmas que habitam as memórias nas cabeças, mentes e almas dos que efetivamente tiveram familiares e amigos trucidados. Há referências aos fatos de modo que a ficção pode se confundir com o passado sem haver uma grande revelação final, um grande conflito caótico, com a escavação que recupera os restos mortais de parentes, através do antropólogo no desfecho. O resultado se confunde com um projeto mais vigoroso por uma obra sem contundência deste fabuloso artesão em fase de declínio, dando mostras de pouco ânimo para o presente. Focaliza as personagens femininas pelas suas confissões e angústias mostradas como para purificar a própria alma pelos eventuais equívocos praticados. Eis um enredo peculiar e cinzento, através de um olhar de clemência lançado sobre o passado pelos sentimentos atormentados das transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano do outrora sangrento regime opressor que irá se conectar com a maternidade pelo drama familiar.
Mesmo sendo um filme menor, sem fisgar plenamente o espectador por não empolgar, mas que não chega a decepcionar, fica num plano intermediário ao se estabelecer a relação com obras anteriores arrebatadoras como A Pele que Habito (2011); o brilho e a eloquência em Abraços Partidos (2009); o sempre lembrado Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988); o notável Fale com Ela (2002); Volver (2006) como a ode máxima ao feminismo; assim como em Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e a obra-prima Tudo Sobre Minha Mãe (1999). Ainda assim, está acima de realizações medíocres que infestam as salas de cinema e os streamings que pululam na grande maioria as diversas plataformas. Apesar disso, ainda há críticas rasas de acusações levianas de bobagens escritas com o viés de uma militância engajada na defesa de velhos clichês, entre as quais de que o cineasta trouxe ao cinema uma misoginia inédita. Almodóvar pode ser acusado de qualquer coisa, até de realizar uma obra de forma preguiçosa com uma narrativa sonolenta e sem a essência do cinema que lhe é peculiar. É evidente que Mães Paralelas não se aprofundou no estupro, na maternidade, na trocas de bebês, no luto, na ausência dos pais, na ditadura protagonizada por Franco na Espanha com as consequências nefastas dos inocentes que perderam suas vidas por um ideal. Misoginia, jamais! Há, sim, o olhar atento de um cineasta que ainda tem boa lucidez para contar uma relevante história.