quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

O Farol



Tragédia Grega

O jovem cineasta norte-americano Robert Eggers fez sucesso com seu filme de estreia, A Bruxa (2015), ao vencer o Festival de Sundance. Um longa de pós-terror realizado para não causar sustos e sim impactar a plateia em situações perigosas com certo requinte de maldade, com ambientação na região da Nova Inglaterra, na década de 1630. Lá, um casal levava uma vida cristã com suas cinco crianças em uma comunidade extremamente religiosa, até serem expulsos do local por divergência de fé da permitida pelas autoridades. A família foi morar num local isolado, nas proximidades de um bosque, sofrendo com a escassez de comida. Porém, num certo dia, o bebê recém-nascido desaparece misteriosamente sem deixar rastros. Ficaram latentes muitos questionamentos aos pais: a criança teria sido devorada por um lobo ou sequestrada por uma suposta bruxa oriunda da floresta, como rezava a lenda. O realizador focou as respostas nos membros familiares, enquanto estes buscavam alguma explicação verossímil, enfrentavam todo tipo dos piores medos inerentes no ser humano e de seus lados mais abomináveis possíveis.

Eggers retoma a ficção na mesma Nova Inglaterra com O Farol, porém agora foi ambientado no início dos anos 1880, em uma ilha na costa do Maine nos EUA. A história é centrada em Thomas Wake (Willem Dafoe), responsável por zelar com tenacidade o farol de uma ilhota isolada no fim do mundo entre as rochas. Vive com ausência total de comunicação e distante da civilização. É o típico capitão bêbado, frustrado e agressivo, que se tranca dentro do local de trabalho com seus segredos, à noite, completamente nu, emite alguns gemidos de prazer, abusa da flatulência em suas noitadas pós-porres homéricos. O outro zelador é o novato Ephraim Winslow (Robert Pattinson), que veio para substituir o ajudante anterior e colaborar nas árduas tarefas diárias de uma jornada dura, cansativa e de muito esforço físico. Visivelmente explorado pelo chefe, também esconde alguns enigmas do passado e ostenta um suposto comportamento estável, embora seus limites sejam desafiados ao extremo.

Uma narrativa repleta de sugestões de violência e erotismo hétero e homossexual, pois o enredo vai deixando dúvidas sobre aqueles dois homens à beira da loucura, com a lucidez se esvaindo cada vez mais. Presume-se que logo um matará o outro, tendo em vista os abusos e o descontrole insano advindos do isolamento humano devastador que cresce geometricamente. Por vezes, dançam bêbados e quase se beijam, insinuando uma relação sexual à flor da pele. Em meio aos distúrbios comportamentais, surgem os delírios da solidão alicerçados pela loucura que encontram guarida na erotização com a sereia que encanta o personagem jovem com suavidade e doçura para magnetizar os ouvidos e a percepção sensorial do rapaz já cansado das mentiras das histórias do antigo marinheiro. Tudo gira para a compleição física e o contato no cotidiano, principalmente pelas recorrentes brigas, quase sempre decorrentes de bebedeiras noturnas após os estafantes trabalhos forçados. O cenário é exageradamente escatológico naquele local fétido como uma pocilga abarrotado pelas fezes, urinas, sangues, vômitos e espermas das masturbações memoráveis dos personagens com o ar infestado de gases flatulentos.

Um retrato de dois homens em estado de choque e em rota de colisão. O auxiliar de faroleiro que quer ganhar muito dinheiro fácil ali, está obstinado para conhecer a magia do acesso intransponível ao fálico farol ereto, na metáfora do símbolo do poder gerador da natureza carregada nos antigos festivais em honra a Dioniso, mantido hermeticamente fechado, o que faz aguçar sua curiosidade daquela misteriosa lanterna naquele recinto privado. Os fenômenos estranhos da natureza começam a pulular ao seu redor. Como na cena em que o personagem estraçalha uma gaivota para deixar fluir sua raiva e indignação catártica do cenário claustrofóbico sem saída, diante das tempestades de chuva e vento e a impossibilidade de apanhar um barco e ir buscar a liberdade no mar revolto e assustador. O contexto conduz para a teoria da loucura e a neurose em estado de ebulição de homens amalucados pela ausência da sociedade e dos vínculos rompidos da distante civilização. A intensa realização vai do silêncio para os longos diálogos exacerbados por acusações e delírios etílicos de personagens oprimidos pelas circunstâncias do imaginário e os motivos que ainda restam do sentido da existência humana.

O Farol é um filme rodado num formato de tela quadrada, com uma clássica fotografia em preto e branco, contrastada numa textura antiga de predominância em tom escuro. Tem o marcante uivo atordoante da sirene pela ressonância melancólica que inebria e registra as peripécias dos personagens perturbados pela desolação e seus flertes com o imponderável, advindos da induzida falta de lucidez que se esboroa. Mas a natureza invadida se vinga do homem no desfecho, quando os pássaros entram em ação para comer a carne que deverá ser regenerada como na mitologia dos gregos que ensina sobre Prometeu sendo punido ao ter seu fígado comido pelas águias para eternizar a tortura por ter roubado o fogo dos deuses. O realizador cria um clima hostil e pouco saudável, misturando o realismo com o imaginário, num exercício mental delirante, claustrofóbico, escatológico e tresloucado dos limites propostos da ficção para um tensionado e abrangente drama mesclado com suspense que deriva para a tragédia grega. Os insultos fulminantes atingem o alvo que está carregado de um ódio destroçante que soa como uma antecipação alegórica do flagelo anunciado prestes a explodir. São sinalizações indicadas ao espectador numa linguagem de cinema num panorama excessivamente teatral para os espaços ambientados do imóvel rodeado por gaivotas, o mar pouco amistoso, a sereia e as lendas contadas pelo marujo decrépito. Embora haja equívocos de um roteiro pelos excessos verborrágicos e nauseosos, não invalida a obra de méritos inquestionáveis e reflexivos.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Aqueles Que Ficaram



As Perdas

O ano começa em grande estilo com a chegada de Aqueles Que Ficaram, digno representante da Hungria entre os 10 pré-finalistas do Oscar de melhor filme internacional de 2020. Com direção e roteiro do promissor Barnabás Tóth, um cineasta de 42 anos, que teve sua carreira de ator e diretor voltada para seriados de televisão, documentários e vários curtas, faz sua estreia em longa-metragem com este magnífico melodrama ambientado em 1948, após o fim da Segunda Guerra Mundial. A narrativa é desenvolvida com um rigor formal, que nos lembra os grandes clássicos do cinema para contar a história de dois sobreviventes do Holocausto, que tentam a reconstrução de suas vidas pela magia do amor. Uma realização marcante que teve inspiração no romance de Zsuzsa F. Várkony, instiga para causar uma admirável sintonia com o espectador, através de uma abordagem direta e sem grandes artifícios pirotécnicos, ao enfocar de maneira criativa e sensível fatos terríveis de conflitos que deixaram traumas inesquecíveis em Budapeste.

Um filme singular do pós- guerra com uma beleza estética fascinante, tanto na direção de arte como na linda fotografia, amparado por um elenco enxuto e irretocável, tendo no casal de protagonistas interpretações convincentes e sem reparos. Há muitas similitudes da temática equivalente com o recente drama russo Uma Mulher Alta (2019), do diretor Kantemir Balagov, que retravava sua trama em duas jovens mulheres que buscavam novas vidas com alguma esperança e um certo significado para continuarem vivendo em meio às lembranças do passado deixadas em seu país como cicatrizes abertas, na sitiada Leningrado, um dos cercos mais aterrorizantes da história mundial. Balagov enfatizava a recomposição perseguida pelas personagens que passaram por momentos de grande tensão, dor e tristeza, advindas das sequelas pelas mortes decorrentes das perdas irreparáveis. Tóth segue o mesmo caminho para conduzir seus personagens na tentativa melancólica da busca do sentido da vida após as tragédias familiares deixadas como legados. A instabilidade emocional tem um clima de angústia e indecisão nos sentimentos aflorados que irão oscilar entre a ternura e o ciúme nos embates reveladores sendo decifrados no desenrolar da história.

Aqueles Que Ficaram é focado em meio ao fim da guerra, no qual Aldo (Károly Hajduk), um ginecologista de 42 anos irá conhecer Klara (Abigél Szõke), uma adolescente de 16 anos numa consulta no orfanato acompanhada da tia-avó, sua tutora. Ele perdeu a esposa e as filhas; ela teve o pai preso, sendo que a mãe e a irmã mais nova morreram nos conflitos bélicos. A realização não descamba para o dramalhão barato e recorrente em obras pouco imaginativas, deixando a leveza e a sensibilidade fisgarem a plateia na relação idílica improvável. O panorama estreito entre os dois se apoia no vínculo da solidariedade mútua numa relação entre pai e filha para mudar o destino deles. Embora, por vezes, haja alguns fatores que possam levar para cruzar a tênue linha divisória do amor fraternal para o de um homem e uma mulher com as libidos emergidas, como nas cenas em que dividem a mesma cama na casa do médico, após a fuga da jovem da residência de sua tutora. Tóth conduz com extrema habilidade o enredo, sem cair nas armadilhas do velho clichê da exposição casual num clímax propício, driblando com méritos o magnetismo da atração fatal pelos impulsos sexuais decorrentes dos instintos vitais do comportamento humano.

Uma obra que contém a delicadeza em consonância com a sutileza e a harmonia dos encontros de olhares de apegos enciumados de ambos para com os novos parceiros que se incorporaram no desfecho da trama. É reveladora e bem retratada a cena do epílogo, no salto do roteiro para três anos adiante, ao demonstrar as tristezas e os relatos sombrios que deveriam ter ficado para trás, mas que ainda assombram e registram o passado atormentador dos dois protagonistas aniquilados pelos fantasmas intermitentes e infinitos que rondam suas memórias destroçadas pela guerra. Um filme que mantém uma remanescente poesia da vida dentro de um contexto melancólico de recordações infortunadas de um tempo pretérito aterrador. O drama celebra as perdas com contundência irônica e sem desfaçatez e reverencia a dor universal através do luto dos personagens centrais. São as imagem assustadoras que acompanham os sobreviventes que sofrem mais que os familiares mortos ou presos, como enfatiza a garota no desabafo entristecido no prólogo da realização.

Eis um retrato contundente sobre as vítimas do genocídio da guerra, sendo que Klara ainda guarda no fundo do coração e da alma uma escassa esperança do retorno de um dos familiares perdidos nos campos de concentração. Mas os efeitos do fim de uma guerra histórica deixam as marcas indeléveis que irão perdurar para sempre neste relato silencioso, com desdobramentos de um resgatador sopro de luz para um novo horizonte nas novas famílias que se formarão naquele painel de sofrimento que parece não querer parar. A cena de pessoas buscadas à força em suas casas por delações de compatriotas esmaga os sentimentos humanos das vidas inocentes sendo ceifadas numa realidade repulsiva. Porém, os novos elementos redentores irão surgir como pacificadores para um novo olhar da humanidade dentro de um panorama opressivo que não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo de algumas realizações pífias. Aqueles Que Ficaram soa como um poema amargo com transição para reconstruções de vidas que acreditam no amor como forma de libertação. É o alento da tentativa de burlar o mistério da morte encravada para uma nova chance de viver, embora eternamente atormentados pela partida precoce dos entes queridos da família, diante da constante capacidade de sobrevivência para reflexão nesta fabulosa obra húngara.