sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Aqueles Que Ficaram



As Perdas

O ano começa em grande estilo com a chegada de Aqueles Que Ficaram, digno representante da Hungria entre os 10 pré-finalistas do Oscar de melhor filme internacional de 2020. Com direção e roteiro do promissor Barnabás Tóth, um cineasta de 42 anos, que teve sua carreira de ator e diretor voltada para seriados de televisão, documentários e vários curtas, faz sua estreia em longa-metragem com este magnífico melodrama ambientado em 1948, após o fim da Segunda Guerra Mundial. A narrativa é desenvolvida com um rigor formal, que nos lembra os grandes clássicos do cinema para contar a história de dois sobreviventes do Holocausto, que tentam a reconstrução de suas vidas pela magia do amor. Uma realização marcante que teve inspiração no romance de Zsuzsa F. Várkony, instiga para causar uma admirável sintonia com o espectador, através de uma abordagem direta e sem grandes artifícios pirotécnicos, ao enfocar de maneira criativa e sensível fatos terríveis de conflitos que deixaram traumas inesquecíveis em Budapeste.

Um filme singular do pós- guerra com uma beleza estética fascinante, tanto na direção de arte como na linda fotografia, amparado por um elenco enxuto e irretocável, tendo no casal de protagonistas interpretações convincentes e sem reparos. Há muitas similitudes da temática equivalente com o recente drama russo Uma Mulher Alta (2019), do diretor Kantemir Balagov, que retravava sua trama em duas jovens mulheres que buscavam novas vidas com alguma esperança e um certo significado para continuarem vivendo em meio às lembranças do passado deixadas em seu país como cicatrizes abertas, na sitiada Leningrado, um dos cercos mais aterrorizantes da história mundial. Balagov enfatizava a recomposição perseguida pelas personagens que passaram por momentos de grande tensão, dor e tristeza, advindas das sequelas pelas mortes decorrentes das perdas irreparáveis. Tóth segue o mesmo caminho para conduzir seus personagens na tentativa melancólica da busca do sentido da vida após as tragédias familiares deixadas como legados. A instabilidade emocional tem um clima de angústia e indecisão nos sentimentos aflorados que irão oscilar entre a ternura e o ciúme nos embates reveladores sendo decifrados no desenrolar da história.

Aqueles Que Ficaram é focado em meio ao fim da guerra, no qual Aldo (Károly Hajduk), um ginecologista de 42 anos irá conhecer Klara (Abigél Szõke), uma adolescente de 16 anos numa consulta no orfanato acompanhada da tia-avó, sua tutora. Ele perdeu a esposa e as filhas; ela teve o pai preso, sendo que a mãe e a irmã mais nova morreram nos conflitos bélicos. A realização não descamba para o dramalhão barato e recorrente em obras pouco imaginativas, deixando a leveza e a sensibilidade fisgarem a plateia na relação idílica improvável. O panorama estreito entre os dois se apoia no vínculo da solidariedade mútua numa relação entre pai e filha para mudar o destino deles. Embora, por vezes, haja alguns fatores que possam levar para cruzar a tênue linha divisória do amor fraternal para o de um homem e uma mulher com as libidos emergidas, como nas cenas em que dividem a mesma cama na casa do médico, após a fuga da jovem da residência de sua tutora. Tóth conduz com extrema habilidade o enredo, sem cair nas armadilhas do velho clichê da exposição casual num clímax propício, driblando com méritos o magnetismo da atração fatal pelos impulsos sexuais decorrentes dos instintos vitais do comportamento humano.

Uma obra que contém a delicadeza em consonância com a sutileza e a harmonia dos encontros de olhares de apegos enciumados de ambos para com os novos parceiros que se incorporaram no desfecho da trama. É reveladora e bem retratada a cena do epílogo, no salto do roteiro para três anos adiante, ao demonstrar as tristezas e os relatos sombrios que deveriam ter ficado para trás, mas que ainda assombram e registram o passado atormentador dos dois protagonistas aniquilados pelos fantasmas intermitentes e infinitos que rondam suas memórias destroçadas pela guerra. Um filme que mantém uma remanescente poesia da vida dentro de um contexto melancólico de recordações infortunadas de um tempo pretérito aterrador. O drama celebra as perdas com contundência irônica e sem desfaçatez e reverencia a dor universal através do luto dos personagens centrais. São as imagem assustadoras que acompanham os sobreviventes que sofrem mais que os familiares mortos ou presos, como enfatiza a garota no desabafo entristecido no prólogo da realização.

Eis um retrato contundente sobre as vítimas do genocídio da guerra, sendo que Klara ainda guarda no fundo do coração e da alma uma escassa esperança do retorno de um dos familiares perdidos nos campos de concentração. Mas os efeitos do fim de uma guerra histórica deixam as marcas indeléveis que irão perdurar para sempre neste relato silencioso, com desdobramentos de um resgatador sopro de luz para um novo horizonte nas novas famílias que se formarão naquele painel de sofrimento que parece não querer parar. A cena de pessoas buscadas à força em suas casas por delações de compatriotas esmaga os sentimentos humanos das vidas inocentes sendo ceifadas numa realidade repulsiva. Porém, os novos elementos redentores irão surgir como pacificadores para um novo olhar da humanidade dentro de um panorama opressivo que não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo de algumas realizações pífias. Aqueles Que Ficaram soa como um poema amargo com transição para reconstruções de vidas que acreditam no amor como forma de libertação. É o alento da tentativa de burlar o mistério da morte encravada para uma nova chance de viver, embora eternamente atormentados pela partida precoce dos entes queridos da família, diante da constante capacidade de sobrevivência para reflexão nesta fabulosa obra húngara.

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