As Perdas
O ano começa em grande estilo com a chegada de Aqueles Que Ficaram, digno representante
da Hungria entre os 10 pré-finalistas do Oscar de melhor filme internacional de
2020. Com direção e roteiro do promissor Barnabás Tóth, um cineasta de 42 anos,
que teve sua carreira de ator e diretor voltada para seriados de televisão,
documentários e vários curtas, faz sua estreia em longa-metragem com este
magnífico melodrama ambientado em 1948, após o fim da Segunda Guerra Mundial. A
narrativa é desenvolvida com um rigor formal, que nos lembra os grandes
clássicos do cinema para contar a história de dois sobreviventes do Holocausto,
que tentam a reconstrução de suas vidas pela magia do amor. Uma realização
marcante que teve inspiração no romance de Zsuzsa
F. Várkony, instiga para causar uma admirável sintonia com o espectador,
através de uma abordagem direta e sem grandes artifícios pirotécnicos, ao
enfocar de maneira criativa e sensível fatos terríveis de conflitos que
deixaram traumas inesquecíveis em Budapeste.
Um filme singular do pós- guerra com uma beleza estética fascinante,
tanto na direção de arte como na linda fotografia, amparado por um elenco enxuto
e irretocável, tendo no casal de protagonistas interpretações convincentes e
sem reparos. Há muitas similitudes da temática equivalente com o recente drama russo
Uma Mulher Alta (2019), do diretor
Kantemir Balagov, que retravava sua trama em duas jovens mulheres que buscavam
novas vidas com alguma esperança e um certo significado para continuarem
vivendo em meio às lembranças do passado deixadas em seu país como cicatrizes
abertas, na sitiada Leningrado, um dos cercos mais aterrorizantes da história
mundial. Balagov enfatizava a recomposição perseguida pelas personagens que passaram
por momentos de grande tensão, dor e tristeza, advindas das sequelas pelas mortes
decorrentes das perdas irreparáveis. Tóth segue o mesmo caminho para conduzir
seus personagens na tentativa melancólica da busca do sentido da vida após as tragédias
familiares deixadas como legados. A instabilidade emocional tem um clima de
angústia e indecisão nos sentimentos aflorados que irão oscilar entre a ternura
e o ciúme nos embates reveladores sendo decifrados no desenrolar da história.
Aqueles Que Ficaram é
focado em meio ao fim da guerra, no qual Aldo (Károly Hajduk), um ginecologista
de 42 anos irá conhecer Klara (Abigél Szõke), uma adolescente de 16 anos numa
consulta no orfanato acompanhada da tia-avó, sua tutora. Ele perdeu a esposa e
as filhas; ela teve o pai preso, sendo que a mãe e a irmã mais nova morreram
nos conflitos bélicos. A realização não descamba para o dramalhão barato e
recorrente em obras pouco imaginativas, deixando a leveza e a sensibilidade
fisgarem a plateia na relação idílica improvável. O panorama estreito entre os
dois se apoia no vínculo da solidariedade mútua numa relação entre pai e filha
para mudar o destino deles. Embora, por vezes, haja alguns fatores que possam
levar para cruzar a tênue linha divisória do amor fraternal para o de um homem
e uma mulher com as libidos emergidas, como nas cenas em que dividem a mesma
cama na casa do médico, após a fuga da jovem da residência de sua tutora. Tóth
conduz com extrema habilidade o enredo, sem cair nas armadilhas do velho clichê
da exposição casual num clímax propício, driblando com méritos o magnetismo da
atração fatal pelos impulsos sexuais decorrentes dos instintos vitais do comportamento
humano.
Uma obra que contém a delicadeza em consonância com a
sutileza e a harmonia dos encontros de olhares de apegos enciumados de ambos
para com os novos parceiros que se incorporaram no desfecho da trama. É
reveladora e bem retratada a cena do epílogo, no salto do roteiro para três
anos adiante, ao demonstrar as tristezas e os relatos sombrios que deveriam ter
ficado para trás, mas que ainda assombram e registram o passado atormentador
dos dois protagonistas aniquilados pelos fantasmas intermitentes e infinitos
que rondam suas memórias destroçadas pela guerra. Um filme que mantém uma
remanescente poesia da vida dentro de um contexto melancólico de recordações infortunadas
de um tempo pretérito aterrador. O drama celebra as perdas com contundência
irônica e sem desfaçatez e reverencia a dor universal através do luto dos
personagens centrais. São as imagem assustadoras que acompanham os
sobreviventes que sofrem mais que os familiares mortos ou presos, como enfatiza
a garota no desabafo entristecido no prólogo da realização.
Eis um retrato contundente sobre as vítimas do genocídio da
guerra, sendo que Klara ainda guarda no fundo do coração e da alma uma escassa esperança
do retorno de um dos familiares perdidos nos campos de concentração. Mas os efeitos
do fim de uma guerra histórica deixam as marcas indeléveis que irão perdurar
para sempre neste relato silencioso, com desdobramentos de um resgatador sopro
de luz para um novo horizonte nas novas famílias que se formarão naquele painel
de sofrimento que parece não querer parar. A cena de pessoas buscadas à força
em suas casas por delações de compatriotas esmaga os sentimentos humanos das
vidas inocentes sendo ceifadas numa realidade repulsiva. Porém, os novos
elementos redentores irão surgir como pacificadores para um novo olhar da
humanidade dentro de um panorama opressivo que não cai na caricatura fácil e
nem no maniqueísmo de algumas realizações pífias. Aqueles Que Ficaram soa como um poema amargo com transição para
reconstruções de vidas que acreditam no amor como forma de libertação. É o alento
da tentativa de burlar o mistério da morte encravada para uma nova chance de
viver, embora eternamente atormentados pela partida precoce dos entes queridos
da família, diante da constante capacidade de sobrevivência para reflexão nesta
fabulosa obra húngara.
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