terça-feira, 17 de setembro de 2019

Legalidade



Insurreição pela Democracia

O diretor, roteirista e produtor Zeca Brito realiza um grande resgate histórico nacional com o drama sociopolítico Legalidade, de uma época ainda não explorada pelos cineastas e teatrólogos. Através de uma narrativa recheada de ingredientes emocionais, a obra conta a história do movimento ocorrido em 1961, que também empresta o nome ao título do longa-metragem. O governador da época no Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, liderou uma rebelião popular em Porto Alegre que se proliferou por todo o interior do Estado, com a finalidade de assegurar a posse de seu cunhado, o então vice-presidente João Goulart, carinhosamente conhecido como Jango, após a renúncia de Jânio Quadros. Esta é uma obra que vem suprir uma lacuna no cinema brasileiro em relação ao gênero das epopeias políticas, e desconhecida por grande parte da população, que iria culminar com o golpe militar três anos depois. Com sensibilidade e uma mescla de fatos reais e outros de ficção, o realizador cria um ambiente emblemático que dá indícios das mazelas e das fragilidades democráticas no país, bem exemplificada no cenário político e social que antecedia e já indicava os destinos da nação. Há uma verdadeira onda de caça aos comunistas vistos por todos os lados, como no episódio da viagem de Jango ao exterior e a proibição de sua posse pelo alto comando militar: os ministros Odílio Denys, da Guerra; Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica; e Sílvio Heck, da Marinha; com o suposto apoio logístico dos EUA.

Um típico filme revelador sobre os momentos que antecederam o golpe de Estado ocorrido em 1964. Brito é um jovem promissor cineasta gaúcho, de 33 anos, que dirigiu a comédia dramática Em 97 Era Assim (2017), os documentários Glauco do Brasil (2015) e A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro (2017). Divide o roteiro com Leo Garcia em um enredo urdido, no qual desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento para outros. O cenário é o Brasil de 1961, quando Jânio Quadros renunciou seu mandato presidencial em 25 de agosto daquele ano e o vice-presidente João Goulart, irmão de Neusa que era casada com Brizola, seria o sucessor natural ao cargo como previa a Constituição Federal. Mas não foi serena a transição, tendo em vista que setores conservadores da sociedade, liderados por militares da ala radical, avessos à conduta simpática do vice pela reforma agrária e sua viagem em missão oficial ao país comunista da China, obstacularizam sua posse temerosos de suas posições de esquerda. Jango tinha sido o ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas, quando implantou as reformas trabalhistas com substanciais direitos aos trabalhadores. Surge então o movimento da Legalidade para garantir o estado de direito e o cumprimento da norma constitucional da posse comandado por Brizola (Leonardo Machado- de ótima interpretação em seu último papel, pois viria a falecer de câncer logo após as filmagens), que teria mais tarde o apoio e a adesão institucional do comandante do Terceiro Exército, general José Machado Lopes, com sede em Porto Alegre.

O diretor retrata com lucidez e dá luzes ao impasse declarado com a iminência do bombardeio ao Palácio Piratini do governo, que viria confiscar os transmissores da Rádio Guaíba e instalar nos porões do paço para se comunicar com o povo nas ruas e em suas residências. Eram distribuídos revólveres, pistolas e espingardas à população para realizar o motim em nome da defesa do preceito legal constitucional embalados pela marchinha da Legalidade cantada pelos adeptos em todos os cantos e rincões em que chegavam os discursos inflamados do líder rebelde gaúcho. É comovente a sequência no trem em que os passageiros assoviam como forma de resistência para tentar a aquiescência dos soldados presentes, numa inspirada referência ao hino da Marselhesa, do clássico Casablanca (1942), de Michael Curtiz, diante das semelhanças com a situação política efervescente numa cidade inflamada pelos discursos da convincente retórica. Foram 13 dias de pura tensão e a iminência de uma guerra civil estendidos até 7 de setembro, quando houve o acordo salomônico pelo parlamentarismo, com Jango empossado de direito e o deputado federal Tancredo Neves assumindo como primeiro-ministro para governar de fato. Brizola era contrário ao espúrio acordo, pois queria que o levante marchasse até Brasília, mesmo com o provável derramamento de sangue, acusava Jango de ser a rainha da Inglaterra: reina, mas não governa.

Em meio à turbulência política que frustrara o golpe, o roteiro narra os fatos verídicos num processo de pesquisa em livros, testemunhas oculares do ocorrido como políticos, historiadores e jornalistas. Porém insere uma subtrama com situações discutíveis ficcionais irrelevantes, através de um ardiloso triângulo amoroso formado por Cecília (Cleo Pires), uma estranha jornalista brasileira de pouca ética, contratada como correspondente do jornal norte-americano The Washington Post, mas também exercia uma missão de espionagem para os EUA. Ela namora os irmãos Tonho (José Henrique Ligabue), um colega repórter-fotográfico, boêmio, de quem se aproveita para se aproximar de Brizola, e o outro irmão Luiz Carlos (Fernando Alves Pinto), um antropólogo simpatizante de Che Guevara que faz um trabalho com os índios nas missões de São Miguel. Deste relacionamento triangular, surge a personagem Blanca (Letícia Sabatella), como sendo a filha de Cecília, faz algumas investigações nos arquivos da ditadura para descobrir o paradeiro da mãe e a identidade do verdadeiro pai, num salto do tempo de mais de 40 anos. As revelações afloram e o diretor faz uma provocativa comparação conceitual política entre o movimento legalista com o golpe militar instituído posteriormente, como fatos históricos ocorridos nos conturbados períodos de instabilidade institucional dos anos de 1960.

Com um orçamento pequeno de três milhões de reais, há uma apurada ambientação cênica, com cuidados especiais no figurino da época e na direção de arte diante do irretocável apuro técnico, especialmente na recriação da década de 60. Dá consistência e ritmo com imagens antigas de arquivos sendo misturadas com filmagens atuais que irão ajudar a mergulhar no período retratado. Um filme que baliza um fato épico pouco difundido aos brasileiros em geral. Legalidade é um marco no cinema pela sua relevância histórica, embora não seja definitivo, é obrigatório tanto para quem se interessa por História como pela sétima arte. Embora o roteiro resvale na insistência de um artificial romance descartável, não invalida o drama que reflete a incontestável força de uma liderança política vanguardista que amealhou a anuência da população e do dissidente comandante do III Exército. Em um momento oportuno pela manutenção democrática tão torpedeada pela irracionalidade de métodos conservadores e retrógrados, surgem as lembranças de um passado ainda bem recente de um painel triste e vergonhoso de uma época a ser refletida. Apesar de alguns tropeços no desenrolar da trama, fica a inesquecível resistência como legado democrático, que ainda faz a maioria dos espectadores se emocionar, cantar, deixar escorrer algumas lágrimas e aplaudir efusivamente quando aparecem os créditos finais na tela.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Bacurau



A Resistência

Depois do cultuado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de Melhor Filme no Festival do Rio, Kleber Mendonça Filho causou polêmica com Aquarius (2016) pelo protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes, o longa virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. O primeiro longa do diretor refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife, mostrando belos moradias bem protegidas. O retrato do dia a dia de uma dona de casa cansada e com dois filhos, representante típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha. Já na segunda realização, a temática do cotidiano é abordada pela especulação imobiliária desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e os desejos de escolha e opção do cidadão. Trazia um realismo da exacerbação pela intransigência de métodos absurdos pela coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe vendesse seu apartamento para construir um novo prédio no espaço.

Ganhador do prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, Bacurau (nome de um pássaro noturno que inspirou o apelido do último ônibus da madrugada em Recife), é a nova realização de Mendonça Filho, que divide a direção com Juliano Dornelles. Com arrojo é criado um marcante faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata. Naquele singelo lugarejo que empresta seu nome ao título do filme, um distrito fictício do município de Serra Verde, no Oeste de Pernambuco, com locações no povoado de Barra, no sertão de Seridó, entre Rio Grande do Norte e Paraíba, o prefeito demagogo é malvisto por camuflar a água depois da interdição premeditada de uma represa para abastecer a população somente com um caminhão-pipa. Não desiste da campanha para a reeleição que está prestes a começar e sofre represálias dos seus eleitores que não o recebem e se escondem em suas humildes residências.

A trama tem um elenco coeso e sem estrelismo nesta história surreal contada por uma narrativa apreciável, com toques de bom suspense nos artifícios do roteiro dinâmico. As subversões propostas irão ao encontro do espectador para decifrar as sugestões do gênero no seu desenrolar. Teresa (Bárbara Colen) é a jovem que retorna à terra natal para o enterro da avó; Domingas (Sônia Braga) é a única médica, mas exerce um espírito de discutível liderança; Plínio (Wilson Rabelo) é o professor da comunidade e paizão de todos; Acácio, vulgo Pacote (Thomas Aquino) é um criminoso que irá se aliar a Lunga (Silvero Pereira) que reedita o cangaço pela clássica degola, uma analogia ao bandoleiro Lampião das selvas nordestinas em novos tempos, mas sem a Maria Bonita, eles são figuras importantes na resistência heroica; Michael (Udo Kier) é um alemão radicado nos EUA que chefia os milicianos estrangeiros e a crueldade está inerente em seus atos frios e premeditados. A fotografia captada em ambientes peculiares das caatingas do Nordeste foi registrada com extrema elaboração de cores por Pedro Sotero, parceiro nos filmes anteriores de Mendonça Filho. Outro ponto forte é a fascinante trilha sonora, especialmente no prólogo com a canção Não Identificado, de Caetano Veloso, na bela interpretação de Gal Costa, e o magnífico desfecho com Réquiem para Matraga, um verdadeiro hino do protesto, do enigmático cantor e compositor Geraldo Vandré.

O filme começa com a morte de uma lendária habitante de 94 anos, os moradores descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa na internet, exceto nos antigos rolos de papel guardados por um líder local. Os sinais da telefonia móvel também somem misteriosamente e, aos poucos, irão percebendo que fatos estranhos e aterradores na região estão acontecendo. Há uma tensão no ar com os drones no formato de disco voador que circulam pelos céus. Um casal de aparentes motoqueiros inofensivos simula um passeio pelas trilhas e estrangeiros chegam do nada à pequena cidade. Os carros são metralhados e alguns nativos morrem vítimas de tiros sem qualquer explicação plausível para os fatos inusitados que colocam todos em pânico. Sem identificar inicialmente o inimigo e induzir o medo no coletivo para criar um meio de defesa em boa parte do enredo, os diretores tentam fugir das armadilhas sorrateiras entre o bem e o mal, mas deslizam sutilmente para um ardiloso maniqueísmo. As alegorias buscam a empatia do público pela história contada com subsídios básicos e indispensáveis para a construção de um filme revelador das tramoias com artimanhas politiqueiras enjambradas por maus executivos detentores do poder, no caso o prefeito corrupto e sua obstinação pela continuidade em um contexto de opressão psicológica e crimes bárbaros que se sucedem.

Bacurau é importante pela relevância no cenário nacional diante das imagens cruas e os diálogos incisivos com simbologias determinantes. A heterogeneidade rompe com a mesmice do protagonismo único, pois todos os personagens são necessários e se encaixam nesta grande babel construída. Cada um desempenha um papel específico para ceder seu espaço a outro na cena posterior, na qual a situação sociopolítica está presente de maneira metafórica, como na invasão dos colonizadores norte-americanos em conluio com péssimos políticos tupiniquins travestidos de defensores do povo. Os caixões em abundância na cidade para suprir as necessidades da tragédia anunciada funcionam como elementos que contrapõe em uma outra alegoria premonitória das execuções sumárias em São Paulo, vistas na televisão, mas atual para os moradores. É o simbolismo da classe oprimida contra as classes dominantes, em que a vingança é o elemento preponderante para afastar ou dar um basta aos usurpadores. Atual e corrosivo pelo olhar crítico de seus realizadores pelo prisma do inconformismo da corrupção atávica nesta curiosa fábula social sobre a insegurança que vai se instalando e refletirá na tranquilidade estremecida de uma comunidade em polvorosa pelas crueldades que tomam corpo e se avolumam cada vez mais. São os contrastes da atualidade brasileira de anomalias e distanciamentos que avançam com sintonia pesada de fatos violentos e reais em uma narrativa ousada com méritos, sem cair nas obviedades de obras menores. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com qualidade esta emblemática obra sobre a injustiça pela justiça da redenção através da resistência em defesa do bem maior: a vida.