Insurreição pela
Democracia
O diretor, roteirista e produtor Zeca Brito realiza um
grande resgate histórico nacional com o drama sociopolítico Legalidade, de uma época ainda não explorada pelos
cineastas e teatrólogos. Através de uma narrativa recheada de ingredientes
emocionais, a obra conta a história do movimento ocorrido em 1961, que também empresta o nome ao
título do longa-metragem. O governador da época no Rio Grande do Sul, Leonel de
Moura Brizola, liderou uma rebelião popular em Porto Alegre que se proliferou
por todo o interior do Estado, com a finalidade de assegurar a posse de seu
cunhado, o então vice-presidente João Goulart, carinhosamente conhecido como
Jango, após a renúncia de Jânio Quadros. Esta é uma obra que vem suprir uma
lacuna no cinema brasileiro em relação ao gênero das epopeias políticas, e desconhecida
por grande parte da população, que iria culminar com o golpe militar três anos
depois. Com sensibilidade e uma mescla de fatos reais e outros de ficção, o
realizador cria um ambiente emblemático que dá indícios das mazelas e das
fragilidades democráticas no país, bem exemplificada no cenário político e
social que antecedia e já indicava os destinos da nação. Há uma verdadeira onda
de caça aos comunistas vistos por todos os lados, como no episódio da viagem de
Jango ao exterior e a proibição de sua posse pelo alto comando militar: os
ministros Odílio Denys, da Guerra; Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica; e Sílvio
Heck, da Marinha; com o suposto apoio logístico dos EUA.
Um típico filme revelador sobre os momentos que antecederam o
golpe de Estado ocorrido em 1964. Brito é um jovem promissor cineasta gaúcho,
de 33 anos, que dirigiu a comédia dramática Em
97 Era Assim (2017), os documentários Glauco
do Brasil (2015) e A Vida Extra-ordinária
de Tarso de Castro (2017). Divide o roteiro com Leo Garcia em um enredo
urdido, no qual desfila seus personagens na tela, dando estrutura e
cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento para outros. O cenário é o Brasil
de 1961, quando Jânio Quadros renunciou seu mandato presidencial em 25 de
agosto daquele ano e o vice-presidente João Goulart, irmão de Neusa que era
casada com Brizola, seria o sucessor natural ao cargo como previa a
Constituição Federal. Mas não foi serena a transição, tendo em vista que
setores conservadores da sociedade, liderados por militares da ala radical, avessos
à conduta simpática do vice pela reforma agrária e sua viagem em missão oficial
ao país comunista da China, obstacularizam sua posse temerosos de suas posições
de esquerda. Jango tinha sido o ministro do Trabalho no governo de Getúlio
Vargas, quando implantou as reformas trabalhistas com substanciais direitos aos
trabalhadores. Surge então o movimento da Legalidade para garantir o estado de
direito e o cumprimento da norma constitucional da posse comandado por Brizola
(Leonardo Machado- de ótima interpretação em seu último papel, pois viria a
falecer de câncer logo após as filmagens), que teria mais tarde o apoio e a
adesão institucional do comandante do Terceiro Exército, general José Machado
Lopes, com sede em Porto
Alegre.
O diretor retrata com lucidez e dá luzes ao impasse
declarado com a iminência do bombardeio ao Palácio Piratini do governo, que viria
confiscar os transmissores da Rádio Guaíba e instalar nos porões do paço para
se comunicar com o povo nas ruas e em suas residências. Eram distribuídos
revólveres, pistolas e espingardas à população para realizar o motim em nome da
defesa do preceito legal constitucional embalados pela marchinha da Legalidade
cantada pelos adeptos em todos os cantos e rincões em que chegavam os discursos
inflamados do líder rebelde gaúcho. É comovente a sequência no trem em que os
passageiros assoviam como forma de resistência para tentar a aquiescência dos
soldados presentes, numa inspirada referência ao hino da Marselhesa, do clássico Casablanca
(1942), de Michael Curtiz, diante das semelhanças com a situação política
efervescente numa cidade inflamada pelos discursos da convincente retórica. Foram
13 dias de pura tensão e a iminência de uma guerra civil estendidos até 7 de
setembro, quando houve o acordo salomônico pelo parlamentarismo, com Jango
empossado de direito e o deputado federal Tancredo Neves assumindo como
primeiro-ministro para governar de fato. Brizola era contrário ao espúrio
acordo, pois queria que o levante marchasse até Brasília, mesmo com o provável
derramamento de sangue, acusava Jango de ser a rainha da Inglaterra: reina, mas
não governa.
Em meio à turbulência política que frustrara o golpe, o
roteiro narra os fatos verídicos num processo de pesquisa em livros,
testemunhas oculares do ocorrido como políticos, historiadores e jornalistas. Porém
insere uma subtrama com situações discutíveis ficcionais irrelevantes, através
de um ardiloso triângulo amoroso formado por Cecília (Cleo Pires), uma estranha
jornalista brasileira de pouca ética, contratada como correspondente do jornal
norte-americano The Washington Post, mas também exercia uma missão de espionagem
para os EUA. Ela namora os irmãos Tonho (José Henrique Ligabue), um colega
repórter-fotográfico, boêmio, de quem se aproveita para se aproximar de Brizola,
e o outro irmão Luiz Carlos (Fernando Alves Pinto), um antropólogo simpatizante de
Che Guevara que faz um trabalho com os índios nas missões de São Miguel. Deste
relacionamento triangular, surge a personagem Blanca (Letícia Sabatella), como
sendo a filha de Cecília, faz algumas investigações nos arquivos da ditadura
para descobrir o paradeiro da mãe e a identidade do verdadeiro pai, num salto
do tempo de mais de 40 anos. As revelações afloram e o diretor faz uma provocativa
comparação conceitual política entre o movimento legalista com o golpe militar
instituído posteriormente, como fatos históricos ocorridos nos conturbados
períodos de instabilidade institucional dos anos de 1960.
Com um orçamento pequeno de três milhões de reais, há uma apurada
ambientação cênica, com cuidados especiais no figurino da época e na direção de
arte diante do irretocável apuro técnico, especialmente na recriação da década
de 60. Dá consistência e ritmo com imagens antigas de arquivos sendo misturadas
com filmagens atuais que irão ajudar a mergulhar no período retratado. Um filme
que baliza um fato épico pouco difundido aos brasileiros em geral. Legalidade é um marco no cinema pela sua
relevância histórica, embora não seja definitivo, é obrigatório tanto para quem se interessa por História como pela sétima arte. Embora o roteiro
resvale na insistência de um artificial romance descartável, não invalida o drama
que reflete a incontestável força de uma liderança política vanguardista que
amealhou a anuência da população e do dissidente comandante do III Exército. Em
um momento oportuno pela manutenção democrática tão torpedeada pela
irracionalidade de métodos conservadores e retrógrados, surgem as lembranças de
um passado ainda bem recente de um painel triste e vergonhoso de uma época a
ser refletida. Apesar de alguns tropeços no desenrolar da trama, fica a inesquecível
resistência como legado democrático, que ainda faz a maioria dos espectadores se
emocionar, cantar, deixar escorrer algumas lágrimas e aplaudir efusivamente
quando aparecem os créditos finais na tela.
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