segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Mostra de Cinema São Paulo (Não Há Mal Algum)

 










Não Há Mal Algum

Um dos filmes mais aguardados que correspondeu à expectativa depositada é o fabuloso Não Há Mal Algum, vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim. A direção é do festejado cineasta iraniano Mohammad Rasoulof, que também assinou o roteiro, emprestando credibilidade para a calorosa recepção da crítica e laureado pelo público na categoria de Melhor Filme de Ficção Internacional nesta on-line 44ª. Mostra de Cinema de São Paulo. O realizador dirigiu importantes títulos exibidos nas edições anteriores da Mostra de SP anteriores, tais como: O Crepúsculo (2003), A Ilha de Ferro (2005) e Adeus (2011), no qual levou o prêmio de melhor diretor no Um Certo Olhar do Festival de Cannes. É dele também Manuscritos Não Queimam (2013) e A Man of Integrity (2017), obra que foi premiada como melhor filme da seção Um Certo Olhar, em Cannes. Em 2010, Rasoulof foi preso, enquanto trabalhava ao lado do cineasta conterrâneo Jafar Panahi, sendo condenado a um ano de detenção e impedido de deixar seu país desde 2017.

Mesmo com todas as dificuldades de filmar no Irã, realizou este instigante drama sociopolítico em coprodução com a Alemanha e a República Tcheca para abordar uma temática pouco explorada, que é o perfil dos executores para a aplicação da pena de morte. O longa retrata a escolha de quatro homens para serem os carrascos divididos em quatro episódios. Não importa a decisão tomada, ela irá transformar os aspectos psicológicos dos verdugos e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles, direta ou indiretamente. Nos 152 minutos, que passam rapidamente, as histórias são apresentadas como temas cruciais ao redor de questões morais e da pena capital imposta. A liberdade individual tem pouco valor e não pode ser expressa como livre expressão de vontade em um regime tirânico diante das ameaças incontornáveis como verdades absolutas e inquestionáveis, deixando traumas indeléveis em seres humanos submetidos a execuções.

O realizador usa com acidez a frase irônica “se o homem foi condenado à morte, ele deve ter feito algo para estar ali”, sendo repetida reiteradamente. Parte-se da premissa que a polícia e o judiciário não erram, por isto, pressupostamente, não há falha na engrenagem funcional, e sendo assim inexiste espaço para questionamentos sobre alguma perseguição política contrária ao conjunto de leis baseadas no Alcorão que fortalecem o regime teocrático vigente. Portanto, os pressupostos dos ditames do ordenamento jurídico determinam que o cidadão comum se não estivesse envolvido em ilicitudes que acarretam em condenações e, se foi punido, alguma coisa fez e deve ao Estado, por ser irresponsável ou criminoso. O primeiro capítulo não determina os motivos da conduta de Heshmat (Ehsan Mirhosseini), um funcionário compenetrado da classe média e aparente exemplar marido atencioso. Ele anda de carro com a mulher e a filha, depois de buscar a criança na escola, vão ao supermercado e acabam jantando num restaurante. Depois de algum vacilo em ir trabalhar, ao chegar ao local, aperta o botão friamente para revelar seu segredo e a ansiedade incontida da tarefa dolorida da execução dos condenados à forca.

No capítulo 2, “She Said: ‘You Can do It’”, há uma clara e manifesta insurreição do soldado que tentar renegar a qualquer custo cumprir sua tarefa maldita de matar. Tenta fazer um acordo e pagar um companheiro para realizar o ato determinado, tendo em vista que este necessita de dinheiro para os remédios da irmã. No episódio posterior, “Birthday", o rapaz retorna à casa da namorada para o seu aniversário e quer noivar com a garota. Durante o tempo que esteve prestando serviço militar, a família da futura noiva abriga um político refugiado. A festa sofrerá abalos com revelações importantes sobre os fatos que se sucedem. Há um choque de ideias do soldado cumpridor da lei com a situação que lá encontrou. Habilmente o cineasta, após um segredo revelado, aborda os reflexos do passado que irão contaminar uma relação de amor e paixão. Arrependimento e culpa são ingredientes colocados para uma profunda reflexão diante da catarse de mágoas e tristezas que irão marcar para sempre os personagens principais envolvidos. No último episódio, “Kiss Me”, há uma conexão como sequência do segundo, o médico em estado adiantado de uma moléstia, com um olhar distante, sem carteira de habilitação, recebe em sua residência com a esposa uma jovem da Europa. Ele cria abelhas e caça javalis e raposas. O segredo contado à hospede irá mudar seus destinos e a visão do cotidiano de abates de animais, como da raposa e seu olhar de gratidão no epílogo. Uma metáfora da perseguição sobre as mortes brutais do regime totalitário com o dia a dia no deserto que abriga um microcosmo familiar e seus problemas conjunturais do passado que refletem no presente e apontam para um futuro de poucas perspectivas.

Com um elenco de atores coesos e sem reparos nos seus respectivos papéis nas belas imagens em scope de grandes planos gerais iluminadas nos esplendorosos cenários. Destaque para a estupenda fotografia de Ashkan Ashkani, como no último episódio locado em chão batido de terras poeirentas entre montanhas, onde se consagraram Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), e a obra-prima Gosto de Cereja (1997); notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000). Porém, o roteiro lida com a responsabilidade ética e o arrependimento dos escalados para matar, principalmente nos três últimos episódios. Cada história apresenta os danos psicológicos dos executores construídas com cenas de exemplar naturalismo sobre as vidas e as peculiaridades dos amores e amizades de cada um e a relação com o exército. O foco do drama não é a vítima e nem a dolorosa perda da vida, porém se debruça nos dramas pessoais irreparáveis dos algozes cumprindo ordens superiores decorrentes do obrigatório treinamento no serviço militar. Aponta o diretor com lucidez e um olhar melancólico para as mortes praticadas por aqueles homens. As conseqüências são as cicatrizes que permanecem abertas neles pelos atos cometidos involuntariamente. Não Há Mal Algum é uma pequena obra-prima de uma história fragmentada e retumbante na complexidade da essência cinematográfica esmiuçada para uma aprofundada reflexão aterradora dos grotescos julgamentos dos não alinhados ao regime.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Mostra de Cinema São Paulo (Aranha)

 

Aranha

O Chile em coprodução com o Brasil e a Argentina tem um digno representante em exibição nesta on-line 44ª. Mostra de Cinema de São Paulo. O contundente drama sociopolítico Aranha retrata as artimanhas do terrorismo da extrema direita para destituir em 1973 o governo democrático de Salvador Allende, eleito pelo povo em 1970, para instalar a ditadura sob o comando do general Augusto Pinochet. A direção é do conceituado Andrés Wood, que tem uma filmografia respeitada A Febre do Louco (2001), o cultuado Machuca (2004), com o qual obteve sucesso internacional e Violeta Foi para o Céu (2011), uma coprodução que chegou a ser indicada para o Oscar daquele ano, tendo vencido o Festival de Sundance, nos EUA, com os prêmios do público e do júri internacional; melhor atriz em Guadalajara, prêmio do júri em Miami; e ainda um dos finalistas do prêmio Goya, na categoria de produção ibero-americana. Foi sucesso total e campeão de público chileno em 2011, sendo assistido por mais de 400.000 espectadores.

Seu último filme, Aranha, foi produzido em 2019, e está fazendo sucesso na Mostra de SP deste ano, tanto junto ao público como pela maioria da crítica. Com um roteiro dinâmico de Guillermo Calderón, que também escreveu Ema (2019), de Pablo Larraín, o drama faz um retrato fiel do violento grupo nacionalista Pátria e Liberdade, alinhado à ala conservadora chilena e com suposto apoio dos EUA, que organizava ataques e crimes para espalhar desordens com protestos nas ruas. Havia o intuito de derrubar o governo de Allende, tachado de comunista. Organizado pela reacionária e dissimulada candidata a miss de seu país, Inés (Mercedes Morán na fase adulta e Maria Valverde na juventude) e o marido Justo (Felipe Armas), receberam a participação eficiente de Gerardo (Marcelo Alonso já envelhecido e Pedro Fontaine quando jovem). O trio nomeou a liderança para Antonio (Caio Blat), que depois se afastou. Inés e Gerardo mantinham um relacionamento secreto extraconjugal, mas em uma operação, onde eles matam uma pessoa por motivos políticos em circunstâncias de acidente, e um ato de traição que irá separá-los aparentemente para sempre, por um longo período, diante das relações que ficaram abaladas.

O enredo dá um salto de quarenta anos, quando inesperadamente Gerardo surge inspirado para uma possível vingança, e também com o propósito da obsessão de reviver a causa nacionalista do cerceamento das liberdades fundamentais que tanto lutou no passado. Irá enfrentar a resistência de Inés, agora uma empresária de sucesso, e com uma coluna no jornal, que fará de tudo para impedir que sua vida pretérita e do marido doente venham à tona. Ela também sofre pressão do filho que tenta buscar respostas convincentes sobre as articulações dela e do pai na juventude, mas sempre recebe respostas evasivas. O ex-amante é preso em flagrante e acusado de matar um suspeito de assalto na rua. Sente-se ainda um justiceiro para eliminar políticos corruptos. Em sua casa são encontradas diversas armas, pois tem ainda em mente os resquícios de quando integrava o grupo terrorista de outrora. Laudos médicos são falsificados para proteger criminosos da extrema direita, tornando-os inimputáveis, no afã de evitar um julgamento digno.

Um dos méritos do diretor é saber explorar as atrocidades contrárias aos anseios da população que elegeu pelas urnas um governo, sem cair nos excessos. É uma ótima abordagem com dignidade do ocaso de uma era estigmatizada pela barbárie. Já em Machuca havia boa abrangência de fatos sendo denunciados, através de um panorama mais sombrio e melancólico. Aranha traz nas sutilezas as perspicácias bem elaboradas na linha de denúncias eloquentes de um período hostil e tenebroso que viveu o Chile. Um mergulho sobre questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham as situações marcantes que pulverizaram a política e suas consequências sociais que abrem as mazelas para introduzir um regime de tirania marcado pelos fuzilamentos, as sessões de torturas e o triste índice de milhares de desaparecidos, como sugere o enredo, após o golpe militar. O drama social retrata a política suja e seus meandros com os bastidores de um grupo nazifascista enrolado na bandeira do nacionalismo sendo colocado em xeque diante das atrocidades para derrubar o governo de Allende.

Outra ideologia abraçada pelo extremismo é o repugnante xenofobismo da discriminação pela ojeriza aos imigrantes, como no episódio da cena dos haitianos sendo metralhados covardemente. O epílogo deste drama com tom de suspense mostra o latente ódio visceral oriundo dos simpatizantes da repressão. Uma história contada sobre a sociedade chilena elitizada repleta de uma ignorância com tintas fortes da alienação burguesa em conluio com os crimes cruéis. Neste contexto está a própria personagem central que lança sua candidatura à prefeitura. Uma admiradora fervorosa de seus ideais ditados por um brutal reacionarismo na defesa de um capital selvagem embevecido pelo egoísmo num mundinho de cinismo. Quer manter a zona de conforto e os privilégios da riqueza desfrutada pelas simbologias evidentes sobre as futilidades e a pusilânime violência maquiavélica do fim justificando os meios. São apontadas com vigor a gratuidade da ira feroz para atingir o poder. A narrativa vibrante deste relato histórico traz um olhar sobre os infortúnios do cotidiano político e a manutenção do status quo aristocrático ainda presente. Uma extraordinária realização para reflexão sobre as feridas abertas que continuarão latejando pela dor da truculência que dominava um país com uma democracia fragilizada, diante de antagônicos interesses escusos de disputas extremas para forjadas verdades que agasalham traumas não superados.