terça-feira, 3 de novembro de 2020

Mostra de Cinema São Paulo (Aranha)

 

Aranha

O Chile em coprodução com o Brasil e a Argentina tem um digno representante em exibição nesta on-line 44ª. Mostra de Cinema de São Paulo. O contundente drama sociopolítico Aranha retrata as artimanhas do terrorismo da extrema direita para destituir em 1973 o governo democrático de Salvador Allende, eleito pelo povo em 1970, para instalar a ditadura sob o comando do general Augusto Pinochet. A direção é do conceituado Andrés Wood, que tem uma filmografia respeitada A Febre do Louco (2001), o cultuado Machuca (2004), com o qual obteve sucesso internacional e Violeta Foi para o Céu (2011), uma coprodução que chegou a ser indicada para o Oscar daquele ano, tendo vencido o Festival de Sundance, nos EUA, com os prêmios do público e do júri internacional; melhor atriz em Guadalajara, prêmio do júri em Miami; e ainda um dos finalistas do prêmio Goya, na categoria de produção ibero-americana. Foi sucesso total e campeão de público chileno em 2011, sendo assistido por mais de 400.000 espectadores.

Seu último filme, Aranha, foi produzido em 2019, e está fazendo sucesso na Mostra de SP deste ano, tanto junto ao público como pela maioria da crítica. Com um roteiro dinâmico de Guillermo Calderón, que também escreveu Ema (2019), de Pablo Larraín, o drama faz um retrato fiel do violento grupo nacionalista Pátria e Liberdade, alinhado à ala conservadora chilena e com suposto apoio dos EUA, que organizava ataques e crimes para espalhar desordens com protestos nas ruas. Havia o intuito de derrubar o governo de Allende, tachado de comunista. Organizado pela reacionária e dissimulada candidata a miss de seu país, Inés (Mercedes Morán na fase adulta e Maria Valverde na juventude) e o marido Justo (Felipe Armas), receberam a participação eficiente de Gerardo (Marcelo Alonso já envelhecido e Pedro Fontaine quando jovem). O trio nomeou a liderança para Antonio (Caio Blat), que depois se afastou. Inés e Gerardo mantinham um relacionamento secreto extraconjugal, mas em uma operação, onde eles matam uma pessoa por motivos políticos em circunstâncias de acidente, e um ato de traição que irá separá-los aparentemente para sempre, por um longo período, diante das relações que ficaram abaladas.

O enredo dá um salto de quarenta anos, quando inesperadamente Gerardo surge inspirado para uma possível vingança, e também com o propósito da obsessão de reviver a causa nacionalista do cerceamento das liberdades fundamentais que tanto lutou no passado. Irá enfrentar a resistência de Inés, agora uma empresária de sucesso, e com uma coluna no jornal, que fará de tudo para impedir que sua vida pretérita e do marido doente venham à tona. Ela também sofre pressão do filho que tenta buscar respostas convincentes sobre as articulações dela e do pai na juventude, mas sempre recebe respostas evasivas. O ex-amante é preso em flagrante e acusado de matar um suspeito de assalto na rua. Sente-se ainda um justiceiro para eliminar políticos corruptos. Em sua casa são encontradas diversas armas, pois tem ainda em mente os resquícios de quando integrava o grupo terrorista de outrora. Laudos médicos são falsificados para proteger criminosos da extrema direita, tornando-os inimputáveis, no afã de evitar um julgamento digno.

Um dos méritos do diretor é saber explorar as atrocidades contrárias aos anseios da população que elegeu pelas urnas um governo, sem cair nos excessos. É uma ótima abordagem com dignidade do ocaso de uma era estigmatizada pela barbárie. Já em Machuca havia boa abrangência de fatos sendo denunciados, através de um panorama mais sombrio e melancólico. Aranha traz nas sutilezas as perspicácias bem elaboradas na linha de denúncias eloquentes de um período hostil e tenebroso que viveu o Chile. Um mergulho sobre questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham as situações marcantes que pulverizaram a política e suas consequências sociais que abrem as mazelas para introduzir um regime de tirania marcado pelos fuzilamentos, as sessões de torturas e o triste índice de milhares de desaparecidos, como sugere o enredo, após o golpe militar. O drama social retrata a política suja e seus meandros com os bastidores de um grupo nazifascista enrolado na bandeira do nacionalismo sendo colocado em xeque diante das atrocidades para derrubar o governo de Allende.

Outra ideologia abraçada pelo extremismo é o repugnante xenofobismo da discriminação pela ojeriza aos imigrantes, como no episódio da cena dos haitianos sendo metralhados covardemente. O epílogo deste drama com tom de suspense mostra o latente ódio visceral oriundo dos simpatizantes da repressão. Uma história contada sobre a sociedade chilena elitizada repleta de uma ignorância com tintas fortes da alienação burguesa em conluio com os crimes cruéis. Neste contexto está a própria personagem central que lança sua candidatura à prefeitura. Uma admiradora fervorosa de seus ideais ditados por um brutal reacionarismo na defesa de um capital selvagem embevecido pelo egoísmo num mundinho de cinismo. Quer manter a zona de conforto e os privilégios da riqueza desfrutada pelas simbologias evidentes sobre as futilidades e a pusilânime violência maquiavélica do fim justificando os meios. São apontadas com vigor a gratuidade da ira feroz para atingir o poder. A narrativa vibrante deste relato histórico traz um olhar sobre os infortúnios do cotidiano político e a manutenção do status quo aristocrático ainda presente. Uma extraordinária realização para reflexão sobre as feridas abertas que continuarão latejando pela dor da truculência que dominava um país com uma democracia fragilizada, diante de antagônicos interesses escusos de disputas extremas para forjadas verdades que agasalham traumas não superados.

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