segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Francofonia- Louvre Sob Ocupação


Poder da Arte

O cultuado cineasta Aleksandr Sokurov, discípulo do genial compatriota e amigo Andrei Tarkowsky, fazia cinco anos que estava devendo um novo filme para seus fãs, depois da construção magnífica de Fausto (2011), vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, baseado livremente no famoso livro filosófico de Goethe, considerado símbolo cultural da modernidade e de proporções épicas que relata a tragédia do médico e estudioso da astrologia desiludido que faz um pacto com o demônio e recebe as endiabradas energias insufladoras da paixão. Embora houvesse alguma resistência em vê-lo como uma realização dentro do contexto dos déspotas, tendo em vista que os longas da trilogia, até então, eram baseadas em homens políticos de carne e osso, tais como: Hitler em Moloch (1999), Lênin em Taurus (2001) e Hirohito em O Sol (2005), os argumentos contrários e apressados aos poucos se renderam ao diretor russo nas suas incursões criativas para fechar sua tetralogia com chave de ouro, ao apresentar Satanás como seu tirano maior e pai de todos.

Depois da sequência de filmes sobre os opressores que fizeram a humanidade padecer, principalmente com as inúmeras atrocidades dentro de seus respectivos países e a dissecação de um corpo humano para estômagos menos sensíveis, o inventivo realizador volta demonstrando toda sua capacidade inspirada de criação com o cinema na melhor tradição europeia com inegável qualidade em Francofonia, com o subtítulo recebido no Brasil de Louvre Sob Ocupação, deriva de uma narrativa para mesclar docudrama com um ensaio histórico para romper padrões clássicos na abordagem com desenvoltura e iluminar a relação da arte com o poder dos usurpadores, através da sedução pela bela caminhada no Museu do Louvre, o singular templo edificante da civilização na preservação da história. Retorna ao estilo da obra-prima Arca Russa (2002), embora menos glamouroso, onde havia uma simbiose de cinema, história e artes plásticas filmado no antológico plano-sequência único de 99 minutos, sem cortes, atravessando as salas do Museu do Hermitage, em São Petersburgo, ex- Leningrado, transformando a tela num quadro vivo por onde desfilavam personagens da história da Rússia: Pedro, o Grande; Catarina, a Grande; Catarina II, Nicolau e Alexandra.

O cenário de Francofonia é o museu mais famoso do mundo, em Paris, pelo seu acervo representativo, inaugurado em 1793, em que Sokurov ressalta como mola propulsora do período em que a França esteve ocupada pelos nazistas na II Guerra Mundial, em 1940, apontando com ironia e até um certo desprezo para o assumido colaboracionismo de autoridades francesas simpatizantes da causa alemã. Com brilhantismo e ousadia na provocação estética de sobreposição de imagens, vai se aprofundando de forma alegórica para refletir sobre a humanidade e seus valores, embrenhando-se pelas alas e atravessando fronteiras como na visita à Guernica, de Pablo Picasso e Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci. No centro da trama estão duas figuras importantes: Jacques Jaujard (1895-1967), o diretor do Louvre, à época, é um símbolo da resistência, indignado com o governo e seus conchavos com Hitler, e Wolf Metternich (1893-1978), oficial alemão designado para fazer uma espécie de inventário dos monumentos, esculturas e pinturas relevantes na França. A amizade que brotará entre os dois soa como uma resposta à barbárie na busca dos quadros escondidos fora do museu, pois desta união para evitar a danificação da coleção está um alento de civilidade e que nem todos estavam enlouquecidos, havia suspiros de lucidez, tendo em vista que o militar nazista, um aristocrata amante da arte, dificultava ao máximo a remessa para Berlim do acervo listado.

Sokurov é o narrador principal do filme sobre a paixão pela cultura francesa e demonstra seu desconforto no mundo contemporâneo. Está coadjuvado por Marianne que representa o lema basilar da Revolução Francesa de 1789: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, e pelo fantasma de Napoleão Bonaparte (1769-1821) perambulando à procura de quadros de identificação com sua trajetória absolutista que o exaltam no poder, simboliza o antagonismo da beleza daquele museu com obras expropriadas por ele nas suas andanças de colonialismo por países pequenos, um autêntico paradoxo da civilização. Mas ali está um espaço vivo da cultura e da memória dos povos, por isto a narrativa exemplar em várias línguas, não só o francês, para fugir da obviedade e dar universalidade ao tema.

O encontro do diretor com o comandante do navio carregado de obras, por videoconferência, dentro do museu, é a sugestiva interação e a aproximação para diminuir as distâncias no conjunto de aspectos peculiares, artísticos, morais e materiais de épocas dos países e das sociedades em seus ditos picos evolucionistas. Mas a tempestade em alto-mar que quase afunda a embarcação tem como ingrediente metafórico as dificuldades de manter intacto o patrimônio artístico histórico da humanidade para futuras gerações, ou seja, distante do Terceiro Reich. Francofonia renova e não deixa margem para dúvidas no seu libelo contra a opressão ditatorial com um visual arrebatador da preservação da história pela exaltação à arte como forma de sairmos da escuridão pelos caminhos mostrados como irreversíveis no passeio cultural no museu biografado.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

De Longe Te Observo


Relações Complexas

É inquestionável que o cinema latino-americano vem se consolidando nos grandes festivais internacionais da Europa. A Venezuela é um bom exemplo ao abrir espaços com produções bem realizadas. Assim foi com a diretora Mariana Rondon com Pelo Malo (2013), ao abocanhar vários prêmios, entre eles o de melhor longa no Concha de Ouro do Festival de San Sebastián, na Espanha. Agora é a vez do estreante Lorenzo Vigas Castes com De Longe Te Observo, ao arrebatar o Leão de Ouro no Festival de Veneza no ano passado, láurea concedida pela primeira vez para uma produção da América Latina. Os dois longas foram sucessos de público e crítica na Mostra de Cinema de São Paulo, nos anos de 2013 e 2015, respectivamente. Vem provar que existe vida inteligente também lá e não apenas na Argentina, Brasil, Uruguai, Colômbia e Chile que são polos respeitáveis em nosso continente.

O roteiro enxuto e seco é assinado pelo cineasta venezuelano em companhia do festejado roteirista mexicano Guillermo Arriaga, autor da história original que inspirou o enredo da trama, o mesmo das parcerias dos longas bem-sucedidos com o conterrâneo Alejandro González Iñárritu, consagrado diretor de Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006). O cenário é a cidade de Caracas, pobre e caindo aos pedaços, com níveis altíssimos de desemprego. O ator chileno Alfredo Castro, conhecido pelos papéis em Tony Manero (2008), No (2012) e O Clube (2015), todos de Pablo Larraín, interpreta admiravelmente o protagonista Armando, um sorumbático homem de meia-idade que é dono de um laboratório de próteses dentárias e tem por hábito espreitar rapazes em pontos de ônibus, levando-os para sua casa com recompensas de bom dinheiro para se masturbar e observá-los seminus, sem que haja aproximação carnal, num autêntico voyeurismo beirando a um patologismo mórbido.

Numa mescla de crítica social com suspense, Vigas Castes constrói um painel de um drama familiar de alta tensão psicológica, diante da obstinação desmesurada do personagem central em seguir obsessivamente seu pai, um empresário do alto escalão da sociedade, que retorna à capital venezuelana para seguir sua vida voltada para uma casta da sociedade que renega seus pares. Há o ressentimento explícito escancarado no filho pela incômoda ausência paterna pelos vínculos rompidos no passado, como se deduz pelo desenrolar da história que levará ao conturbado encontro com Elder (Luis Silva- ator estreante de ótima atuação que lhe rendeu premiação nos festivais de Biarritz e San Sebastián), que lidera uma gangue juvenil local, demonstra ser homofóbico, desconfiado e violento. Em um dos encontros, agride e rouba o dinheiro e um adorno da residência de Armando.

O filme retrata um complexo relacionamento entre os dois num contexto de mágoas e carências afetivas, com confissões íntimas e a revelação da prisão do pai do garoto num drama intimista que surpreende pelo ingrediente político encravado numa Venezuela envolvida numa crise social imensurável e caótica. Já no início do longa, observa-se cartazes da campanha presidencial de Nicolás Maduro contrastando com o desleixo e o submundo que a população habita pelo descaso do governo. O conservadorismo e o modo emblemático autoritário de Elder estão simbolizados no convívio com Armando e sua delirante patologia doentia, exprimem os dois personagens como metáforas do país no cenário atual de pouca perspectiva para o futuro. É um retrato típico do medo e da vingança embutidos nas entrelinhas da narrativa, porém é abordada como subterfúgios das circunstâncias que apresentam como indicativas da situação que desenha a cegueira dominante dos fatos e dos elementos intrínsecos de uma sociedade enferma. A sexualidade reprimida e a liberação dos sentimentos estão na falta do carinho, atenção e amor para o rapaz que busca referência masculina no enigmático amigo que se aproxima com segundas intenções para uma vingança sem culpa, mas que também sofre das mesmas carências afetivas, tanto da paterna como do Estado em decomposição sócio-econômica para seus filhos.

De Longe Te Observo tem um componente político forte e é realizado com muita sensibilidade pela eficiência, domínio de elenco para um neófito diretor que habilmente sabe usar as elipses precisas, mantendo consistência e coesão em uma performance acima da média na criação de personagens sólidos e psicologicamente bem construídos. Há uma descrição fiel num ambiente degradado pela falta de opção de trabalho, visto com muita sutileza e reflexão sobre um momento delicado que vive os venezuelanos neste manifesto da indignação de um sistema envelhecido pelo caudilhismo ultrapassado, pela amostragem de uma classe pobre sofrida e desamparada pela falta de condições básicas sociais numa realidade injusta com seu povo pela instabilidade anômala, diante da magnífica visão deste drama metafórico construído com pujante vigor sobre os vínculos afetivos corroídos, cuja câmera na mão percorre em um ritmo lento, mas necessário, assume uma posição de observadora dos fatos focados como se estivesse escondida na perseguição do seu objetivo de denúncia contundente no jogo estabelecido de desafios e enigmas para o desfecho inusitado.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Mãe Só Há Uma


Conflito de Identidade

A diretora paulista Ana Muylaert deixou muito boa impressão com Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), depois arrebatou o público e a crítica com Que Horas Ela Volta? (2015), causando furor e ótima repercussão no admirável longa que representou o Brasil no Oscar de 2016. Está de volta em menos de um ano com o sensível drama familiar Mãe Só Há Uma, revisitando o rumoroso caso Pedrinho de Goiânia que tomou conta do noticiário dos jornais impressos e televisivos brasileiros no ano de 2002. Tanto na realidade como na ficção, um jovem de 17 anos se surpreende ao descobrir que a mãe que o criou o havia sequestrado ainda bebê de uma maternidade. Uma bomba de efeito moral e psicológico que devastou diversas vidas e destinos por muitos anos, deixando rastros indeléveis que jamais poderiam ser esquecidos.

O roteiro foi assinado pela cineasta, com a colaboração de Marcelo Caetano, para criar uma trama consistente e de fácil elaboração pelo espectador. O jovem Pierre é protagonizado pelo estreante Naomi Nero- sobrinho do ator Alexandre Nero-, em bom desempenho, um garoto que está longe do politicamente correto, foge das convenções tradicionais do gênero hétero, toca guitarra numa banda, pinta as unhas e os lábios, transa com meninas e meninos, usa lingerie, mas não é gay, embora todos o confundem. Sua vida desaba ao ver sua mãe, intitulada como biológica, ser presa e ir para a cadeia. Naquele momento, estático e perturbado, as revelações de um passado começam a emergir, pois foi subtraído de forma ilegal do hospital, tão logo nasceu. Seus novos parentes verdadeiros logo surgirão, e a verdadeira identidade é revelada como Felipe para uma nova realidade.

O mesmo caso já havia sido abordado pelo competente Caetano Gotardo em O Que se Move (2013), em um dos três episódios das tragédias familiares. A busca da reconstrução do vínculo no restaurante é a mesma enfocada por Gotardo, em que um almoço programado terá consequências desastrosas. O filme de Muylaert inova com relatos sinceros e emociona quando o protagonista diz: “Fui roubado duas vezes. A primeira, na maternidade; a segunda vez, agora por vocês”. É o desabafo de um adolescente que entra em conflito existencial quando descobre que aquela mulher, por quem nutre carinho materno, o raptou, assim como também fizera com sua irmã menor. Ou seja, ambos tiveram o mesmo destino de uma infância roubada. Eis o retrato de um filme pujante da temática da maternidade imposta a qualquer preço. Os conflitos com a nova família, principalmente quanto a sua sexualidade, em que o pai biológico (Matheus Nachtergaele) surta e vê como uma agressão o modo pelo qual o menino se veste de mulher, não gosta de futebol e nega-se a jogar boliche. As descobertas e as opções do garoto em crise com a identidade e seu novo lar, pelo qual sente-se invadido e sem privacidade, diante das intromissões no quarto pela real genitora (Dani Nefussi interpreta as duas mães), além de seus paparicos na tentativa de conquistá-lo.

A diretora enfatiza a dor e a angústia daquela criatura que parece um estranho no ninho, mas todos sofrem, até o novo irmão caçula com seu olhar de tristeza e distanciamento daquele vendaval ali instalado, diante de uma situação complexa que explodiu muitos anos depois do nascimento pela procura obstinada do filho sumido. A realizadora não tem o interesse em tomar partido por ninguém, retrata com isenção um quadro que se desenhou por um crime do passado, colocando ingredientes novos para reflexão. As causas não são enfrentadas e sequer o motivo que levou ao crime, sem que haja culpados diretamente. O espectador faz sua conclusão das consequências nefastas ali apresentadas e deixadas como feridas abertas que ainda não cicatrizaram. É um longo processo de adaptação, tanto dos pais biológicos, como do irmão ao novo integrante do microcosmo familiar, sendo este a maior vítima do imbróglio armado irresponsavelmente. Além de ter que se encaixar no novo contexto, terá que resolver situações do cotidiano que incomodam terceiros.

Um filme que cativa pela consternação e mexe com princípios e paradigmas normativos de uma sociedade conservadora, bem explorado pela cineasta no seu drama anterior. Traz à baila discussões sobre a ética dos princípios que norteiam a família, pouco se importando com a tristeza de quem vê tudo desabar no feliz mundo restrito que vivia com amigos através do som da guitarra ainda retumbando nos ouvidos. A humilde casa de madeira tinha um afeto mais próximo, sem simbolismos. A busca do silêncio do quarto para entender a guinada dos rumos que o destino lhe aprontou de Pierre para Felipe é uma realidade insofismável que afloram sentimentos e desejos neste belo drama sobre o destino e as arapucas que a vida apronta com doses excessivas de maldade num mundo de egoísmos e aparências.

Mãe Só Há Uma tem méritos na abordagem sobre o comportamento pelas sutilezas sugeridas na sintonia de uma questão contemporânea da juventude atual ao retratar com neutralidade uma sexualidade libertária na fase típica das incertezas das descobertas. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com qualidade este retrato intimista para um desfecho abrupto sem redenção, com a tensão nos contraplanos suaves, dando leveza na proposta, sem se importar com diálogos prolixos ou estéreis. Os sentimentos são captados e a proposta vai ao encontro da plateia com harmonia e deixa marcas perturbadoras com lucidez. Há elementos psicológicos bem caracterizadores e envolventes registrados com rara qualidade.