Poder da Arte
O cultuado cineasta Aleksandr Sokurov, discípulo do genial
compatriota e amigo Andrei Tarkowsky, fazia cinco anos que estava devendo um
novo filme para seus fãs, depois da construção magnífica de Fausto (2011), vencedor do Leão de Ouro
no Festival de Veneza, baseado livremente no famoso livro filosófico de Goethe,
considerado símbolo cultural da
modernidade e de proporções épicas que relata a tragédia do médico e estudioso da astrologia desiludido que faz um pacto com o
demônio e recebe as endiabradas energias insufladoras da paixão. Embora
houvesse alguma resistência em vê-lo como uma realização dentro do contexto dos
déspotas, tendo em vista que os longas da trilogia, até então, eram baseadas em
homens políticos de carne e osso, tais como: Hitler em Moloch (1999), Lênin em Taurus
(2001) e Hirohito em O Sol (2005), os
argumentos contrários e apressados aos poucos se renderam ao diretor russo nas
suas incursões criativas para fechar sua tetralogia com chave de ouro, ao apresentar
Satanás como seu tirano maior e pai de todos.
Depois da sequência de filmes sobre os opressores que
fizeram a humanidade padecer, principalmente com as inúmeras atrocidades dentro
de seus respectivos países e a dissecação de um corpo humano para estômagos
menos sensíveis, o inventivo realizador volta demonstrando toda sua capacidade
inspirada de criação com o cinema na melhor tradição europeia com inegável
qualidade em Francofonia, com o
subtítulo recebido no Brasil de Louvre
Sob Ocupação, deriva de uma narrativa para mesclar docudrama com um ensaio
histórico para romper padrões clássicos na abordagem com desenvoltura e
iluminar a relação da arte com o poder dos usurpadores, através da sedução pela
bela caminhada no Museu do Louvre, o singular templo edificante da civilização
na preservação da história. Retorna ao estilo da obra-prima Arca Russa (2002), embora menos
glamouroso, onde havia uma simbiose de cinema, história e artes plásticas
filmado no antológico plano-sequência único de 99 minutos, sem cortes,
atravessando as salas do Museu do Hermitage, em São Petersburgo ,
ex- Leningrado, transformando a tela num quadro vivo por onde desfilavam
personagens da história da Rússia: Pedro, o Grande; Catarina, a Grande;
Catarina II, Nicolau e Alexandra.
O cenário de Francofonia
é o museu mais famoso do mundo, em Paris, pelo seu acervo representativo, inaugurado
em 1793, em que Sokurov
ressalta como mola propulsora do período em que a França esteve ocupada pelos
nazistas na II Guerra Mundial, em 1940, apontando com ironia e até um certo
desprezo para o assumido colaboracionismo de autoridades francesas
simpatizantes da causa alemã. Com brilhantismo e ousadia na provocação estética
de sobreposição de imagens, vai se aprofundando de forma alegórica para
refletir sobre a humanidade e seus valores, embrenhando-se pelas alas e
atravessando fronteiras como na visita à Guernica,
de Pablo Picasso e Mona Lisa, de Leonardo
Da Vinci. No centro da trama estão duas figuras importantes: Jacques Jaujard
(1895-1967), o diretor do Louvre, à época, é um símbolo da resistência,
indignado com o governo e seus conchavos com Hitler, e Wolf Metternich
(1893-1978), oficial alemão designado para fazer uma espécie de inventário dos
monumentos, esculturas e pinturas relevantes na França. A amizade que brotará
entre os dois soa como uma resposta à barbárie na busca dos quadros escondidos
fora do museu, pois desta união para evitar a danificação da coleção está um
alento de civilidade e que nem todos estavam enlouquecidos, havia suspiros de
lucidez, tendo em vista que o militar nazista, um aristocrata amante da arte,
dificultava ao máximo a remessa para Berlim do acervo listado.
Sokurov é o narrador principal do filme sobre a paixão pela
cultura francesa e demonstra seu desconforto no mundo contemporâneo. Está coadjuvado
por Marianne que representa o lema basilar da Revolução Francesa de 1789:
“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, e pelo fantasma de Napoleão Bonaparte
(1769-1821) perambulando à procura de quadros de identificação com sua
trajetória absolutista que o exaltam no poder, simboliza o antagonismo da
beleza daquele museu com obras expropriadas por ele nas suas andanças de
colonialismo por países pequenos, um autêntico paradoxo da civilização. Mas ali
está um espaço vivo da cultura e da memória dos povos, por isto a narrativa
exemplar em várias línguas, não só o francês, para fugir da obviedade e dar
universalidade ao tema.
O encontro do diretor com o comandante do navio carregado de
obras, por videoconferência, dentro do museu, é a sugestiva interação e a
aproximação para diminuir as distâncias no conjunto de aspectos peculiares,
artísticos, morais e materiais de épocas dos países e das sociedades em seus ditos
picos evolucionistas. Mas a tempestade em alto-mar que quase afunda a
embarcação tem como ingrediente metafórico as dificuldades de manter intacto o
patrimônio artístico histórico da humanidade para futuras gerações, ou seja,
distante do Terceiro Reich. Francofonia renova
e não deixa margem para dúvidas no seu libelo contra a opressão ditatorial com
um visual arrebatador da preservação da história pela exaltação à arte como
forma de sairmos da escuridão pelos caminhos mostrados como irreversíveis no passeio
cultural no museu biografado.