sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Mãe Só Há Uma


Conflito de Identidade

A diretora paulista Ana Muylaert deixou muito boa impressão com Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), depois arrebatou o público e a crítica com Que Horas Ela Volta? (2015), causando furor e ótima repercussão no admirável longa que representou o Brasil no Oscar de 2016. Está de volta em menos de um ano com o sensível drama familiar Mãe Só Há Uma, revisitando o rumoroso caso Pedrinho de Goiânia que tomou conta do noticiário dos jornais impressos e televisivos brasileiros no ano de 2002. Tanto na realidade como na ficção, um jovem de 17 anos se surpreende ao descobrir que a mãe que o criou o havia sequestrado ainda bebê de uma maternidade. Uma bomba de efeito moral e psicológico que devastou diversas vidas e destinos por muitos anos, deixando rastros indeléveis que jamais poderiam ser esquecidos.

O roteiro foi assinado pela cineasta, com a colaboração de Marcelo Caetano, para criar uma trama consistente e de fácil elaboração pelo espectador. O jovem Pierre é protagonizado pelo estreante Naomi Nero- sobrinho do ator Alexandre Nero-, em bom desempenho, um garoto que está longe do politicamente correto, foge das convenções tradicionais do gênero hétero, toca guitarra numa banda, pinta as unhas e os lábios, transa com meninas e meninos, usa lingerie, mas não é gay, embora todos o confundem. Sua vida desaba ao ver sua mãe, intitulada como biológica, ser presa e ir para a cadeia. Naquele momento, estático e perturbado, as revelações de um passado começam a emergir, pois foi subtraído de forma ilegal do hospital, tão logo nasceu. Seus novos parentes verdadeiros logo surgirão, e a verdadeira identidade é revelada como Felipe para uma nova realidade.

O mesmo caso já havia sido abordado pelo competente Caetano Gotardo em O Que se Move (2013), em um dos três episódios das tragédias familiares. A busca da reconstrução do vínculo no restaurante é a mesma enfocada por Gotardo, em que um almoço programado terá consequências desastrosas. O filme de Muylaert inova com relatos sinceros e emociona quando o protagonista diz: “Fui roubado duas vezes. A primeira, na maternidade; a segunda vez, agora por vocês”. É o desabafo de um adolescente que entra em conflito existencial quando descobre que aquela mulher, por quem nutre carinho materno, o raptou, assim como também fizera com sua irmã menor. Ou seja, ambos tiveram o mesmo destino de uma infância roubada. Eis o retrato de um filme pujante da temática da maternidade imposta a qualquer preço. Os conflitos com a nova família, principalmente quanto a sua sexualidade, em que o pai biológico (Matheus Nachtergaele) surta e vê como uma agressão o modo pelo qual o menino se veste de mulher, não gosta de futebol e nega-se a jogar boliche. As descobertas e as opções do garoto em crise com a identidade e seu novo lar, pelo qual sente-se invadido e sem privacidade, diante das intromissões no quarto pela real genitora (Dani Nefussi interpreta as duas mães), além de seus paparicos na tentativa de conquistá-lo.

A diretora enfatiza a dor e a angústia daquela criatura que parece um estranho no ninho, mas todos sofrem, até o novo irmão caçula com seu olhar de tristeza e distanciamento daquele vendaval ali instalado, diante de uma situação complexa que explodiu muitos anos depois do nascimento pela procura obstinada do filho sumido. A realizadora não tem o interesse em tomar partido por ninguém, retrata com isenção um quadro que se desenhou por um crime do passado, colocando ingredientes novos para reflexão. As causas não são enfrentadas e sequer o motivo que levou ao crime, sem que haja culpados diretamente. O espectador faz sua conclusão das consequências nefastas ali apresentadas e deixadas como feridas abertas que ainda não cicatrizaram. É um longo processo de adaptação, tanto dos pais biológicos, como do irmão ao novo integrante do microcosmo familiar, sendo este a maior vítima do imbróglio armado irresponsavelmente. Além de ter que se encaixar no novo contexto, terá que resolver situações do cotidiano que incomodam terceiros.

Um filme que cativa pela consternação e mexe com princípios e paradigmas normativos de uma sociedade conservadora, bem explorado pela cineasta no seu drama anterior. Traz à baila discussões sobre a ética dos princípios que norteiam a família, pouco se importando com a tristeza de quem vê tudo desabar no feliz mundo restrito que vivia com amigos através do som da guitarra ainda retumbando nos ouvidos. A humilde casa de madeira tinha um afeto mais próximo, sem simbolismos. A busca do silêncio do quarto para entender a guinada dos rumos que o destino lhe aprontou de Pierre para Felipe é uma realidade insofismável que afloram sentimentos e desejos neste belo drama sobre o destino e as arapucas que a vida apronta com doses excessivas de maldade num mundo de egoísmos e aparências.

Mãe Só Há Uma tem méritos na abordagem sobre o comportamento pelas sutilezas sugeridas na sintonia de uma questão contemporânea da juventude atual ao retratar com neutralidade uma sexualidade libertária na fase típica das incertezas das descobertas. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com qualidade este retrato intimista para um desfecho abrupto sem redenção, com a tensão nos contraplanos suaves, dando leveza na proposta, sem se importar com diálogos prolixos ou estéreis. Os sentimentos são captados e a proposta vai ao encontro da plateia com harmonia e deixa marcas perturbadoras com lucidez. Há elementos psicológicos bem caracterizadores e envolventes registrados com rara qualidade.

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