Conflito de
Identidade
A diretora paulista Ana Muylaert deixou muito boa impressão
com Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), depois
arrebatou o público e a crítica com Que
Horas Ela Volta? (2015), causando furor e ótima repercussão no admirável longa
que representou o Brasil no Oscar de 2016. Está de volta em menos de um ano com
o sensível drama familiar Mãe Só Há Uma,
revisitando o rumoroso caso Pedrinho de Goiânia que tomou conta do noticiário
dos jornais impressos e televisivos brasileiros no ano de 2002. Tanto na
realidade como na ficção, um jovem de 17 anos se surpreende ao descobrir que a
mãe que o criou o havia sequestrado ainda bebê de uma maternidade. Uma bomba de
efeito moral e psicológico que devastou diversas vidas e destinos por muitos
anos, deixando rastros indeléveis que jamais poderiam ser esquecidos.
O roteiro foi assinado pela cineasta,
com a colaboração de Marcelo Caetano, para criar uma trama consistente e de
fácil elaboração pelo espectador. O jovem Pierre é protagonizado pelo estreante
Naomi Nero- sobrinho do ator Alexandre Nero-, em bom desempenho, um garoto que está longe do politicamente correto, foge das convenções tradicionais do gênero
hétero, toca guitarra numa banda, pinta as unhas e os lábios, transa com
meninas e meninos, usa lingerie, mas não é gay, embora todos o confundem. Sua
vida desaba ao ver sua mãe, intitulada como biológica, ser presa e ir para a
cadeia. Naquele momento, estático e perturbado, as revelações de um passado
começam a emergir, pois foi subtraído de forma ilegal do hospital, tão logo
nasceu. Seus novos parentes verdadeiros logo surgirão, e a verdadeira
identidade é revelada como Felipe para uma nova realidade.
O mesmo caso já havia sido
abordado pelo competente Caetano Gotardo em O Que se Move (2013), em um dos três
episódios das tragédias familiares. A busca da reconstrução do vínculo no
restaurante é a mesma enfocada por Gotardo, em que um almoço programado terá
consequências desastrosas. O filme de Muylaert inova com relatos sinceros e
emociona quando o protagonista diz: “Fui roubado duas vezes. A primeira, na
maternidade; a segunda vez, agora por vocês”. É o desabafo de um adolescente
que entra em conflito existencial quando descobre que aquela mulher, por quem
nutre carinho materno, o raptou, assim como também fizera com sua irmã menor. Ou
seja, ambos tiveram o mesmo destino de uma infância roubada. Eis o retrato de
um filme pujante da temática da maternidade imposta a qualquer preço. Os
conflitos com a nova família, principalmente quanto a sua sexualidade, em que o
pai biológico (Matheus Nachtergaele) surta e vê como uma agressão o modo pelo
qual o menino se veste de mulher, não gosta de futebol e nega-se a jogar
boliche. As descobertas e as opções do garoto em crise com a identidade e seu
novo lar, pelo qual sente-se invadido e sem privacidade, diante das
intromissões no quarto pela real genitora (Dani Nefussi interpreta as duas
mães), além de seus paparicos na tentativa de conquistá-lo.
A diretora enfatiza a dor e a angústia daquela criatura que
parece um estranho no ninho, mas todos sofrem, até o novo irmão caçula com seu
olhar de tristeza e distanciamento daquele vendaval ali instalado, diante de
uma situação complexa que explodiu muitos anos depois do nascimento pela procura
obstinada do filho sumido. A realizadora não tem o interesse em tomar partido
por ninguém, retrata com isenção um quadro que se desenhou por um crime do
passado, colocando ingredientes novos para reflexão. As causas não são enfrentadas
e sequer o motivo que levou ao crime, sem que haja culpados diretamente. O
espectador faz sua conclusão das consequências nefastas ali apresentadas e
deixadas como feridas abertas que ainda não cicatrizaram. É um longo processo
de adaptação, tanto dos pais biológicos, como do irmão ao novo integrante do
microcosmo familiar, sendo este a maior vítima do imbróglio armado
irresponsavelmente. Além de ter que se encaixar no novo contexto, terá que
resolver situações do cotidiano que incomodam terceiros.
Um filme que cativa pela consternação e mexe com princípios
e paradigmas normativos de uma sociedade conservadora, bem explorado pela
cineasta no seu drama anterior. Traz à baila discussões sobre a ética dos
princípios que norteiam a família, pouco se importando com a tristeza de quem
vê tudo desabar no feliz mundo restrito que vivia com amigos através do som da
guitarra ainda retumbando nos ouvidos. A humilde casa de madeira tinha um afeto
mais próximo, sem simbolismos. A busca do silêncio do quarto para entender a
guinada dos rumos que o destino lhe aprontou de Pierre para Felipe é uma
realidade insofismável que afloram sentimentos e desejos neste belo drama sobre
o destino e as arapucas que a vida apronta com doses excessivas de maldade num
mundo de egoísmos e aparências.
Mãe Só Há Uma tem méritos
na abordagem sobre o comportamento pelas sutilezas sugeridas na sintonia de uma
questão contemporânea da juventude atual ao retratar com neutralidade uma
sexualidade libertária na fase típica das incertezas das descobertas. São
elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com qualidade este retrato
intimista para um desfecho abrupto sem redenção, com a tensão nos contraplanos
suaves, dando leveza na proposta, sem se importar com diálogos prolixos ou
estéreis. Os sentimentos são captados e a proposta vai ao encontro da plateia
com harmonia e deixa marcas perturbadoras com lucidez. Há elementos
psicológicos bem caracterizadores e envolventes registrados com rara qualidade.
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