terça-feira, 12 de julho de 2016

Julieta


Tragédia Grega

O cultuado diretor espanhol Pedro Almodóvar está de volta no seu clássico estilo de filmar os melodramas profundos de outrora, embora sem se reinventar, mantém a fidelidade que o consagrou. Apresentado no 69º Festival de Cannes de 2016, Julieta é baseado nos três contos Acaso, Logo e Destino da escritora canadense Alice Munro, do livro Fugitiva, publicado em 2004, mas que chegou no Brasil somente em 2006. Eis uma dobradinha apontada por muitos críticos como improvável, tendo em vista a sobriedade e a lentidão das tramas sombrias da autora nos cenários gelados de seu país, escolhida Nobel da Literatura em 2013, que poderia ofuscar ou contrapor com a irreverência do realizador. Porém, o resultado foi bem absorvido por esta fusão de extremos, ao associar elementos de mistério com os anseios femininos para reflexão no cinema.

O longa apresenta um bom domínio estético da narrativa no formato de uma tragédia grega, já indicado na capa do livro da protagonista em sua leitura no trem. O roteiro tem dois tempos distintos: o presente na meia idade e o passado da vida na juventude em flashbacks demorados. O filme é contado na primeira pessoa, através de diários retirados das gavetas que apresentam comportamentos de ações e reações para elucidar o mistério que registra didaticamente a transformação da personagem-título (a belíssima Adriana Ugarte quando jovem e Emma Suárez na meia-idade) que busca a origem do segredo como mola condutora do enredo. Ela leciona mitologia clássica e está prestes a se mudar de Madri para Portugal, para acompanhar o namorado Lorenzo (Dario Grandinetti), mas os rumos da viagem mudarão repentinamente graças a um encontro casual na rua com Beatriz (Michelle Jenner), uma antiga amiga de sua filha Antía (Blanca Parés) que lhe fará desenterrar os enigmas do passado.

A fórmula do cineasta apresenta a desconfiança pelo ciúme que abala o relacionamento com o companheiro intrigado com a desistência abrupta de Julieta, ainda mais quando ela resolve se mudar para o antigo prédio em que vivia em Madri, sem maiores explicações. Lá irá refletir o tempo que passou, escrevendo uma carta para a filha, relembrando tudo o que aconteceu entre as duas. Almodóvar cria um cenário elegante e aprazível com a casa com vista para o mar, embora um local trágico pela tempestade metafórica que irá marcar sua vida. Traz também requintes de suspense quando explora com força as cores fortes, mas harmônicas, com predominância do vermelho nos listrados e xadrezes sem ser gritantes ou com agressão visual, sempre presentes. A personagem central dos anos de 1980 é moderna e veste-se com roupas da época, tem os cabelos loiros fashion; já na fase da maturidade é uma mulher sóbria e com olhar distante pela dor da ausência e das desgraças que aconteceram em sequência, dando um semblante de tristeza e desesperança.

Num contexto típico e revelador dentro de um cenário almodovariano, com um enredo pontilhado por traições, revelações e atitudes cruéis, como o desaparecimento inusitado de Antía por 12 anos sem nenhuma justificativa aparente como uma peça surpreendente na atmosfera de dúvidas. Há uma razoável lucidez aflorada na revolta da filha para atingir o sentimento oriundo da maternidade exposta pela suposta culpa da mãe pelos acontecimentos trágicos shakesperianos que se desenrolam paradoxalmente na vingança como estopim da morte paterna. Ainda assim, não conquista plenamente o espectador, ao se estabelecer a relação com realizações anteriores arrebatadoras como A Pele que Habito (2011); o brilho e eloquência inerente em Abraços Partidos (2009); o sempre lembrado Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988); o notável Fale com Ela (2002); Má Educação (2004); Volver (2006) é a ode máxima ao feminismo; assim como em Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999).

Habilmente o diretor conduz o espectador por caminhos pouco óbvios. O filme remete para questionamentos de ciúmes e culpa de Julieta com Xoan (Daniel Grao), pai da filha que conheceu no trem de forma fortuita, ao trocar de banco por desconfiar da maneira nada sutil de um estranho passageiro, a primeira morte entre outras na sua saga de desgraças. Também é enfatizada a relação conturbada com o pai da protagonista, diante das circunstâncias do novo relacionamento com a cuidadora de sua mãe. O triângulo amoroso pouco convencional, às vezes com conotação de traição, se faz presente em três casos na história, em todas há a morte como fuga de escape de um ingrediente indigesto para reflexão do complexo de culpa, do arrependimento fugaz no tema do coma terminal das vítimas, da consciência abalada pelos fantasmas que emergem. Retrata com dignidade a criação dos personagens na trajetória como peças que vão se encaixando no tabuleiro hostil da vida.

Julieta não empolga, mas não chega a decepcionar, fica num plano intermediário, embora mantenha o rigor formal característico de seus melodramas familiares, sendo este com sabor déjà vu. Dá para dizer que é mais uma obra com a grife Almodóvar, onde focaliza personagens combalidos pelas suas confissões mostradas como se fossem purificar a própria alma com um viés de um suposto pedido de perdão pelos pecados praticados nas sucessões de acontecimentos que vão desfilando pela tela. Há os grandes dramas pessoais absorvidos pelas fraquezas e as vicissitudes fragilizadas como decorrências do ser humano, numa trama que se delineia com verossimilhança no desfecho. Tudo vai no embalo da bonita trilha sonora para revisitar uma extensa filmografia peculiar, através de um olhar nos sentimentos das mulheres atormentadas pelas transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento feminino.

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