Tragédia Grega
O cultuado diretor espanhol Pedro Almodóvar está de volta no
seu clássico estilo de filmar os melodramas profundos de outrora, embora sem se
reinventar, mantém a fidelidade que o consagrou. Apresentado no 69º Festival
de Cannes de 2016, Julieta é baseado
nos três contos Acaso, Logo e Destino da escritora canadense Alice Munro, do livro Fugitiva, publicado em 2004, mas que chegou
no Brasil somente em 2006. Eis uma dobradinha apontada por muitos críticos como
improvável, tendo em vista a sobriedade e a lentidão das tramas sombrias da
autora nos cenários gelados de seu país, escolhida Nobel da Literatura em 2013,
que poderia ofuscar ou contrapor com a irreverência do realizador. Porém, o
resultado foi bem absorvido por esta fusão de extremos, ao associar elementos
de mistério com os anseios femininos para reflexão no cinema.
O longa apresenta um bom domínio estético da narrativa no
formato de uma tragédia grega, já indicado na capa do livro da protagonista em
sua leitura no trem. O roteiro tem dois tempos distintos: o presente na meia
idade e o passado da vida na juventude em flashbacks demorados. O filme é
contado na primeira pessoa, através de diários retirados das gavetas que
apresentam comportamentos de ações e reações para elucidar o mistério que registra
didaticamente a transformação da personagem-título (a belíssima Adriana Ugarte
quando jovem e Emma Suárez na meia-idade) que busca a origem do segredo como
mola condutora do enredo. Ela leciona mitologia clássica e está prestes a se
mudar de Madri para Portugal, para acompanhar o namorado Lorenzo (Dario
Grandinetti), mas os rumos da viagem mudarão repentinamente graças a um
encontro casual na rua com Beatriz (Michelle Jenner), uma antiga amiga de sua
filha Antía (Blanca Parés) que lhe fará desenterrar os enigmas do passado.
A fórmula do cineasta apresenta a desconfiança pelo ciúme que
abala o relacionamento com o companheiro intrigado com a desistência abrupta de
Julieta, ainda mais quando ela resolve se mudar para o antigo prédio em que
vivia em Madri, sem maiores explicações. Lá irá refletir o tempo que passou,
escrevendo uma carta para a filha, relembrando tudo o que aconteceu entre as
duas. Almodóvar cria um cenário elegante e aprazível com a casa com vista para
o mar, embora um local trágico pela tempestade metafórica que irá marcar sua
vida. Traz também requintes de suspense quando explora com força as cores
fortes, mas harmônicas, com predominância do vermelho nos listrados e xadrezes sem
ser gritantes ou com agressão visual, sempre presentes. A personagem central
dos anos de 1980 é moderna e veste-se com roupas da época, tem os cabelos loiros
fashion; já na fase da maturidade é uma mulher sóbria e com olhar distante pela
dor da ausência e das desgraças que aconteceram em sequência, dando um semblante
de tristeza e desesperança.
Num contexto típico e revelador dentro de um cenário
almodovariano, com um enredo pontilhado por traições, revelações e atitudes
cruéis, como o desaparecimento inusitado de Antía por 12 anos sem nenhuma
justificativa aparente como uma peça surpreendente na atmosfera de dúvidas. Há
uma razoável lucidez aflorada na revolta da filha para atingir o sentimento
oriundo da maternidade exposta pela suposta culpa da mãe pelos acontecimentos trágicos
shakesperianos que
se desenrolam paradoxalmente na vingança como estopim da morte paterna. Ainda
assim, não conquista plenamente o espectador, ao se estabelecer a relação com
realizações anteriores arrebatadoras como
A Pele que Habito (2011); o brilho e eloquência inerente em Abraços Partidos (2009); o sempre lembrado Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos
(1988); o notável Fale com Ela
(2002); Má Educação (2004); Volver (2006) é a ode máxima ao feminismo;
assim como em Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999).
Habilmente o diretor conduz o espectador por caminhos pouco
óbvios. O filme remete para questionamentos de ciúmes e culpa de Julieta com Xoan
(Daniel Grao), pai da filha que conheceu no trem de forma fortuita, ao trocar
de banco por desconfiar da maneira nada sutil de um estranho passageiro, a
primeira morte entre outras na sua saga de desgraças. Também é enfatizada a
relação conturbada com o pai da protagonista, diante das circunstâncias do novo
relacionamento com a cuidadora de sua mãe. O triângulo amoroso pouco
convencional, às vezes com conotação de traição, se faz presente em três casos
na história, em todas há a morte como fuga de escape de um ingrediente
indigesto para reflexão do complexo de culpa, do arrependimento fugaz no tema do
coma terminal das vítimas, da consciência abalada pelos fantasmas que emergem.
Retrata com dignidade a criação dos personagens na trajetória como peças que
vão se encaixando no tabuleiro hostil da vida.
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