terça-feira, 5 de julho de 2016

As Montanhas se Separam


Identidade Perdida

O festejado cineasta chinês Jia Zhang-ke tem em seus filmes uma preocupação recorrente com a globalização e por consequência a perda das raízes de seu povo. Assim foi com Em Busca da Vida (2006), Memórias de Xangai (2010) e com Um Toque de Pecado (2013) chega ao ápice com este drama social sobre a eclosão violenta como o estopim de uma sociedade amordaçada por muitos anos e ainda convivendo com um poder ditatorial, como a referência induzida na estátua do líder revolucionário Mao Tsé-Tung. É dele também o instigante Plataforma (2000), uma abordagem dos efeitos da abertura capitalista na fechada sociedade chinesa, em que a migração interna parece ser a única alternativa para toda uma geração, como da trupe de atores que assume outros empregos. Já em Prazeres Desconhecidos (2002), tratava dos efeitos dessa abertura nos adolescentes, perdidos entre a cultura de seu país e o ocidente. O primeiro longa do diretor foi o premiado Pickpocket (1997).

Com sua última realização, As Montanhas se Separam, conta uma história em três tempos sobre a era da globalização no mundo capitalista, ao abordar o relacionamento de três amigos em comum nos anos de 1999, 2014 e 2025. Começa com a comemoração da entrada do ano novo para acompanhar a trajetória de Tao (Tao Zhao), uma vendedora de uma pequena loja de eletrônicos na província de Shanxi, que está quase engrenando um namoro com o amigo Liangzi (Jing Dong Liang), rapaz humilde que trabalha como mineiro e apaixonado pela bonita moça que será disputada com um antigo amigo de infância da dupla, Jinsheng (Yi Zhang), um típico deslumbrado por ser um novo riquinho dizendo que “não para de contar dinheiro” de seu posto de gasolina que herdou. Esnoba o carrão novo último tipo, sujeito prepotente que se sente o novo dono do mundo. Logo, a relação de amizade do trio entra em choque, pois o abastado pede para o pretendente da moça que se afaste dela. Diante da negativa, acaba comprando a mina de carvão que trabalha o operário para ameaçá-lo e despedi-lo como represália. Naquela disputa tudo vale e não há limites e nem espaço para os três estarem juntos, até conseguir se casar, afastar em definitivo o concorrente, como na velha máxima de Maquiavel: “Os fins justificam os meios”.

O drama dá um salto no segundo ato para 2014, momento crucial para a trama, pois o casal aparecerá divorciado. Ele em Xangai com a guarda do filho menor; ela permanecerá na sua província remoendo a perda da criança. Surge Liangzi, seu velho amor do passado, casado e com um bebê recém-nascido, porém gravemente enfermo. O filme toma outros contornos com a morte do patriarca da personagem central e a aproximação de Dollar (Zijian Dong), o filho com o nome sugestivo dado pelo pai, que também troca sua identidade para Peter. O diretor coloca então as diferenças entre a mãe e o filho que estão afastados há anos e chegou para o funeral do avô. As raízes e as tradições desmoronam numa China flertando com o capitalismo, além dos vínculos estremecidos e a cultura esbofeteada no terceiro ato, em 2025, num cenário doloroso, em que Dollar para se comunicar com o próprio pai, agora ambos residindo na Austrália, terá que contratar uma intérprete chinesa, uma espécie de segunda mãe que terá uma participação importante para suprir a carência afetiva confundida com o complexo da relação edipiana do garoto já com 18 anos. Emerge do contexto e dói na alma a vida solitária, sem carinho e com rompimento tanto de vínculo maternal como paternal.

As Montanhas se Separam é um filme metafórico da desraização do povo chinês, em que um jovem adolescente demonstra toda sua infelicidade e a extrema solidão com a perda da identidade num contexto melancólico com extraordinário senso narrativo da complexidade neste emblemático drama universal apontado pelo diretor como causa dos efeitos devastadores da globalização pela ocidentalização nas aldeias, enfatizados com um profundo amargor. Além de abordar a violência implícita das perdas morais e éticas que destroem uma comunidade, através da magnífica construção dos personagens entediados aos poucos se revelam na tela, evolui para uma crise de valores e como decorrência da história individual de cada um deles que será abalada pelas atitudes coletivas em iminente desintegração pela depravação do ser humano diante da complacência e a falta de indignação.

A juventude está presente no último episódio, Zhang-ke retrata com dignidade os anseios do rapaz por um resultado mais compensador, embora a ganância pela omissão paterna esteja bem simbolizada no materialismo obsessivo pelo fluxo intermitente de uma nação em efervescente transição cultural e econômica dá o tom dos problemas sociais. Elogiável o elenco, bem como a bela trilha sonora adequada por ser correta e sem interferir nos diálogos, acompanha Dollar na sua trajetória de mudanças e reaproximações. Um filme arrebatador na essência que deixa uma ponta de esperança na bela imagem da mãe dançando no epílogo como uma reflexão dos tempos de um país corrompido.

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