Identidade Perdida
O festejado cineasta chinês Jia Zhang-ke tem em seus filmes
uma preocupação recorrente com a globalização e por consequência a perda das
raízes de seu povo. Assim foi com Em
Busca da Vida (2006), Memórias de Xangai
(2010) e com Um Toque de Pecado (2013)
chega ao ápice com este drama social sobre a eclosão violenta como o estopim de
uma sociedade amordaçada por muitos anos e ainda convivendo com um poder
ditatorial, como a referência induzida na estátua do líder revolucionário Mao
Tsé-Tung. É dele também o instigante Plataforma
(2000), uma abordagem dos efeitos da abertura capitalista na fechada sociedade
chinesa, em que a migração interna parece ser a única alternativa para toda uma
geração, como da trupe de atores que assume outros empregos. Já em Prazeres Desconhecidos (2002), tratava dos
efeitos dessa abertura nos adolescentes, perdidos entre a cultura de seu país e
o ocidente. O primeiro longa do diretor foi o premiado Pickpocket (1997).
Com sua última realização, As Montanhas se Separam, conta uma história em três tempos sobre a
era da globalização no mundo capitalista, ao abordar o relacionamento de três
amigos em comum nos anos de 1999, 2014 e 2025. Começa com a comemoração da
entrada do ano novo para acompanhar a trajetória de Tao (Tao Zhao), uma
vendedora de uma pequena loja de eletrônicos na província de Shanxi, que está
quase engrenando um namoro com o amigo Liangzi (Jing Dong Liang), rapaz humilde
que trabalha como mineiro e apaixonado pela bonita moça que será disputada com
um antigo amigo de infância da dupla, Jinsheng (Yi Zhang), um típico deslumbrado
por ser um novo riquinho dizendo que “não para de contar dinheiro” de seu posto
de gasolina que herdou. Esnoba o carrão novo último tipo, sujeito prepotente
que se sente o novo dono do mundo. Logo, a relação de amizade do trio entra em
choque, pois o abastado pede para o pretendente da moça que se afaste dela.
Diante da negativa, acaba comprando a mina de carvão que trabalha o operário
para ameaçá-lo e despedi-lo como represália. Naquela disputa tudo vale e não há
limites e nem espaço para os três estarem juntos, até conseguir se casar,
afastar em definitivo o concorrente, como na velha máxima de Maquiavel: “Os
fins justificam os meios”.
O drama dá um salto no segundo ato para 2014, momento
crucial para a trama, pois o casal aparecerá divorciado. Ele em Xangai com a
guarda do filho menor; ela permanecerá na sua província remoendo a perda da
criança. Surge Liangzi, seu velho amor do passado, casado e com um bebê
recém-nascido, porém gravemente enfermo. O filme toma outros contornos com a
morte do patriarca da personagem central e a aproximação de Dollar (Zijian
Dong), o filho com o nome sugestivo dado pelo pai, que também troca sua
identidade para Peter. O diretor coloca então as diferenças entre a mãe e o
filho que estão afastados há anos e chegou para o funeral do avô. As raízes e
as tradições desmoronam numa China flertando com o capitalismo, além dos
vínculos estremecidos e a cultura esbofeteada no terceiro ato, em 2025, num
cenário doloroso, em que
Dollar para se comunicar com o próprio pai, agora ambos
residindo na Austrália, terá que contratar uma intérprete chinesa, uma espécie
de segunda mãe que terá uma participação importante para suprir a carência afetiva
confundida com o complexo da relação edipiana do garoto já com 18 anos. Emerge
do contexto e dói na alma a vida solitária, sem carinho e com rompimento tanto
de vínculo maternal como paternal.
As Montanhas se
Separam é um filme metafórico da desraização do povo chinês, em que um jovem
adolescente demonstra toda sua infelicidade e a extrema solidão com a perda da
identidade num contexto melancólico com extraordinário senso narrativo da
complexidade neste emblemático drama universal apontado pelo diretor como causa
dos efeitos devastadores da globalização pela ocidentalização nas aldeias,
enfatizados com um profundo amargor. Além de abordar a violência implícita das
perdas morais e éticas que destroem uma comunidade, através da magnífica
construção dos personagens entediados aos poucos se revelam na tela, evolui
para uma crise de valores e como decorrência da história individual de cada um
deles que será abalada pelas atitudes coletivas em iminente desintegração pela
depravação do ser humano diante da complacência e a falta de indignação.
A juventude está presente no último episódio, Zhang-ke
retrata com dignidade os anseios do rapaz por um resultado mais compensador, embora
a ganância pela omissão paterna esteja bem simbolizada no materialismo obsessivo
pelo fluxo intermitente de uma nação em efervescente transição cultural e
econômica dá o tom dos problemas sociais. Elogiável o elenco, bem como a bela trilha
sonora adequada por ser correta e sem interferir nos diálogos, acompanha Dollar
na sua trajetória de mudanças e reaproximações. Um filme arrebatador na
essência que deixa uma ponta de esperança na bela imagem da mãe dançando no
epílogo como uma reflexão dos tempos de um país corrompido.
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