sexta-feira, 23 de março de 2012

Shame

















Vício do Sexo

Steve McQueen é um diretor britânico e polêmico (não confundir com o ator de Papillon (1973) e Inferno da Torre (1974), morto em 1980), realizou o festejado e intenso Hunger (2008), seu primeiro longa-metragem sobre a solidão e a liberdade, com interpretação de Michael Fassbender no papel de um soldado guerrilheiro do IRA preso e em greve de fome na cadeia. Causou uma impressão alentadora em sua estreia.

Agora com Shame (vergonha seria a tradução literal), segundo longa do cineasta e vencedor do Prêmio da Crítica do Festival de Veneza, com o mesmo ator encarnando Brandon-interpretração pálida-, um nova-iorquino quase quarentão, bem-sucedido, residente na linda cobertura de Manhattan, não gosta de manter vínculos afetivos com as mulheres. Foge como o diabo da cruz. Vive para a prática sexual compulsiva de um amante sedento, que busca resolver seus problemas e frustrações praticando sexo como um vício incontrolável. Mas com a chegada da irmã Sissy (Carey Mullingan- boa atuação, esteve recentemente em Drive), uma jovem rebelde e repleta de problemas, complicada e com tendências suicidas, leva o irmão a perder a calma e o controle sobre sua vida privada e o mundo restrito e fechado que leva.

Sissy é vista como um fardo pesado e invasora do recanto para as necessidades patológicas de Brandon, pois o apartamento das compulsões por orgias e masturbações não é mais inviolável. As taras doentias estão sendo reprimidas e vão para os ambientes sórdidos das ruas e dos labirintos escuros, como alguns bares e restaurantes frequentados por pessoas esquisitas e de índole da pior espécie. A degradação humana se estabelece e parece ser bem-vinda no universo reprimido da vítima dos prazeres desconexos.

O diretor aborda a compulsão como uma doença do ser humano, tal qual uma outra qualquer, mas seu objetivo se esvai e perde-se na estética e nas longas cenas de plano-sequência, desnecessárias e cansativas, causando grande aborrecimento e bocejos nos espectadores como a maninha cantando New York, New York, de Frank Sinatra; ou o ménage à trois de Brandon nos cabarés; ou ainda as cenas no interior da estação do metrô, embora os flashbacks fossem recorrentes, pouco adiantou, tendo em vista que as elipses custaram para serem realizadas.

O pecado do filme é não mostrar o passado irmãos doentios, sabe-se apenas que vierem da Irlanda e nada mais. O vício de Brandon e sua mania por sexo remunerado para as prostitutas, sugerem que o amor e o envolvimento estão ausentes, como na cena com a bela negra, onde o rapaz sucumbe e fracassa sexualmente, após um clima romântico de uma relação com vínculos que se desenhava num horizonte obscuro. Sua tendência é pela banalidade pervertida, talvez um desvio de conduta, como se vê em seus acessos assíduos às redes de pornografia da internet.

Outro grande problema do longa é estar divorciado de uma proposta concreta e profunda sobre a doença que atingiu celebridades como o ator Michael Douglas; o ex-jogador da NBA Winston Bennett, que atuou entre 1989 e 1992 pelo Cleveland Cavaliers; e o mais famoso caso do jogador de golfe Tiger Woods. Liberdade e solidão estão bem presentes, mas dissociados do contexto da película, diante do aprofundamento extremamente raso sobre a reflexão que deveria ser melhor observada, faltando um olhar mais contundente e um passeio pelo interior das criaturas abandonadas.

Shame é um filme focado num cinema menor, com rodagem de cenas lembrando videoclipes de pornô, distanciado e descompromissado com as causas, deixando que os efeitos fluíssem soltos, sem empolgar ou cativar numa dramaticidade opaca, inclusive nas próprias cenas toscas de sexo explícito. Frio em tudo, desde as causas até as consequências, numa conclusão melancólica e chata neste esquecível ensaio sobre os viciados e doentes sexuais.

terça-feira, 20 de março de 2012

Pina -3D



















A Dança de Pina

Wim Wenders é um diretor de dramas fortes e profundos, sem esquecer o insuperável documentário Buena Vista Social Club (1999) entre tantas realizações consistentes. Agora retorna novamente ao gênero documental, totalmente voltado para o sensorial, a leveza da alma e do espírito, pois como fica registrado de forma inequívoca em Pina-3D: “dance, dance, senão estaremos perdidos”, ou ainda como diz uma das bailarinas na homenagem, ao lembrar que a mestre repetia “a dança diz melhor do que se falar”.

Wenders lidou bem com a arte clássica como poucos, embora seja um cineasta mais voltado para as feridas sociais e as angústias derrotistas de seus personagens, em dramas memoráveis como os inesquecíveis Paris, Texas (1984) e Asas do Desejo (1987), não deixou de se revelar um talentoso condutor da grande dama do balé e coreógrafa da Companhia Tanztheater Wuppertal da Alemanha, embora seja um tributo analítico com imagens antigas da artista mesclado com depoimentos sinceros de quem trabalhou com ela são ouvidos em off, embora as imagens os retratem silenciosos, mas não falta a emoção ao abordar o sofrimento, a dor, a tristeza e a alegria da equipe teatral, como bem expressado pelos discípulos de Pina Bausch.

Um documentário que em tudo está bem ajustado, onde os detalhes da expoente da dança contaminam o cineasta e tudo parece andar com a perfeição, como a insuperável trilha sonora dando clímax nas cenas dos planos e contraplanos, embalados pela leveza quando necessário e dureza em outras cenas, não faltando nem a canção O Leãozinho, cantada em português por Caetano Veloso, para deleite, prazer e orgulho dos brasileiros, representados pelo nosso compositor.

A coreografia se estende em vários lugares inusitados, como pelas ruas, nos parques, bosques com água vertendo, ou ainda no interior do bonde aéreo da Wuppertall, que serviu de cenário, pois Pina Bausch gostava de interagir com os moradores da cidade alemã, que num primeiro momento mostravam-se resistentes, embora estivesse promovendo mundialmente o lugar. Os bailarinos conseguiram a compreensão e o apoio dos residentes, graças a insistência da coreógrafa, que abriu caminho para Wenders filmar sem rejeição, após sua morte, razão pela qual o filme quase foi arquivado, só não o fazendo por pressão dos artistas da companhia.

Nas diversas coreografias de gestos e movimentos singulares temos uma moça sendo enterrada viva com pás de terras, a dança dentro d’água, com as expressões de dor e ardor, satisfação e recompensa numa eloquente dimensão de um universo de vidas dedicadas a dançar. Há ainda a exuberante A Sagração da Primavera, de Stravinsky, na cena da relação sexual sugerida, depois que a jovem ocupa um espaço vazio do palco, logo entram as bailarinas em conjunto e os homens vêm depois, começando a grande caçada numa coreografia expandindo em dramaticidade, aproximada com grandiloquência em 3D, para exprimir os rostos contraídos e tensos. Mas logo Wenders afasta a câmera e o palco se esvazia, restando a solidão de um mundo difícil e moribundo como uma catarse de dor oriunda da emoção, sob o olhar simples e sem cobranças acintosas da legendária Pina Bausch, sem estrelismos, arrogância ou chiliques.

Cria-se um cerimonial dedicado à coreógrafa alemã, símbolo do século XX em transição para o XXI, numa espécie de veneração pelos dançarinos, onde a saudade é vertida como uma lacuna de um vazio existencial de alguém que partiu muito cedo, deixando órfãos centenas ou milhares de artistas e fãs, num filme extraordinário e inesquecível pela sua sensibilidade e leveza pelo amor à dança como prazer maior da existência humana, embora para isso haja um longo caminho para se trilhar, mas com magnífica harmonia e imensidão que contemplam o prazer de se viver.

É justo o tributo em Pina- 3D, nesta mini obra-prima documental e injustamente derrotada no Oscar em sua categoria, onde a utilização do 3D funcionou como um suporte complementar e não apenas como entretenimento barato e pirotécnico principal, com todo o magnetismo da força cinematográfica e do reconhecimento da artista falecida em 2009, aos 68 anos, vítima de câncer, mas que Wenders resgata e homenageia com extremo bom gosto esta fantástica coreógrafa dos sonhos e dos espaços conquistados pelos bailarinos, num filme que ultrapassa a classificação de documentário para valorizar o cinema como um todo e especialmente a dança.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Febre do Rato

















Cotidiano de um Poeta

O 8º. Festival de Verão do RS de Cinema Internacional findou em grande estilo, propiciando aos gaúchos verem Febre do Rato, sob a direção de Cláudio Assis, em seu terceiro e mais maduro longa-metragem. Lançou-se ao cinema com dois bons filmes Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006). Mostrou novamente sua versatilidade e competência com este belo drama do cotidiano de um poeta irrequieto. Não confundir com os outros nacionais A Erva do Rato (2008), de Júlio Bressane e nem com Reis e Ratos (2012), de Mauro Lima.

Febre do Rato (expressão popular típica da cidade de Recife que designa alguém que está fora de controle) tem a trama centrada na figura de Zizo (Irandhir Santos- bom desempenho), um poeta anarquista que acaba por bancar a publicação de seu tabloide que leva o nome do filme. É seu guru o teórico político russo Bakunin, um dos principais expoentes do anarquismo em meados do século XIX, tendo a foto pendurada no barraco. Ao conhecer Eneida (Nanda Costa- bela e sensual), suas convicções começam a entrar em conflito e há um questionamento interno, pois a musa causa um furor nos seus princípios, fazendo-o um homem apaixonado e desnorteado.

O longa tem como proposta a poesia do povo, embora com discursos agressivos e contestadores em várias situações, tanto pelas palavras em versos do poeta, uma espécie de alter ego do diretor, um cineasta inconformado com o sistema, desde as mazelas sociais apontadas e denunciadas principalmente em Baixio das Bestas. Esteticamente o filme lembra o festejado A Festa da Menina Morta (2008), com Matheus Nachtergale que também dirigiu, tanto pelos rituais religiosos e as similitudes de um povo sofrido nas favelas, inclusive com a boa participação do ator também neste longa, principalmente pela sua controvertida relação com a mulher a quem ama muito, sintetizada na frase “ela é o homem da minha vida”, numa inversão e consequente rompimento de valores e contravenções da sociedade.

Cláudio Assis é um diretor que não se submete a dogmas e paradigmas daqueles filmes bem feitinhos e ajustadinhos ou que indique alguma propaganda ou louvação de um gênero, ainda que seu filme seja regional através da típica linguagem nordestina, a universalidade do cinema está acima e se sobrepõe peremptoriamente. Não pertence a uma casta de cineastas politicamente corretos, como bem enfatiza tanto em seu discurso no cinema pelos atos do poeta maldito, bem como em entrevistas. Segue uma linha dos realizadores malditos ou marginais, tais como: Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Ozualdo Candeias.

Fica evidente o protesto da insurreição, como nas cenas realizadas no dia da Independência do Brasil. Surge a revolta contrária à sociedade de valores apodrecidos e decadentes mostrados com contundência, como na celebração logo após os desfiles militares de 7 de setembro, se convenciona o brado contrário ao sistema e é dito naquela cena marcante: “nós também temos o direito de errar”, gizando como se fosse um grito de dor dos manifestantes agredidos e presos, numa prévia do desenlace final inesperado, mas sem tragicidade ou pessimismo, pois ficaram no grupo que se banha no tanque com água, simbolizado o local pelo início de tudo, como as reivindicações do tripé: amor, sexo e comida, palavras mágicas nos versos e nos pedidos para aquela camada da sociedade esquecida e relegada à margem dos aquinhoados.

Um filme em preto e branco sempre é arriscado, embora O Artista (2011), de Michel Hazanavicius, grande ganhado do Oscar, esteja aí para desmentir e servir como exceção, pois há uma rejeição e um preconceito quando não há o colorido. Os locais que serviram de cenário em Recife não poderiam retratar cores estonteantes, se a proposta principal do filme era enfocar os desvalidos das favelas fétidas e imundas, como os enxotados do conforto. Impossível não elogiar a adequada trilha sonora em harmonia e bem ajustada com o desenrolar do longa, em compasso invejável.

O cineasta conduziu com competência, mesmo que a morte estivesse rondando o roteiro e pudesse desarticular o discurso da dignidade, soube lidar bem com ela no epílogo e despistar com elegância, deixando bem evidente seu propósito, onde tem o poeta como a simbologia da resistência, criando vínculos com espectadores desde o início com o panfletário jornal passando de mão em mão. Atinge o clímax na cena final da redenção no companheirismo e da amizade neste fabuloso filme que se insere como uma obra maior e destacada no cenário nacional, apesar de alguns excessos verborrágicos e apelativos, como o uso excessivo do palavrão desnecessário e do nudismo exacerbado, não chega a afetar ou obscurecer o excelente resultado final e merecedor da consagração no Festival de Paulínia.

Debate em Porto Alegre

Febre do Rato teve sessão de pré-estreia em Porto Alegre nesta quinta-feira (15) no encerramento do 8º. Festival de Verão do RS de Cinema Internacional, com farta distribuição de cerveja, sorvete, picolé, hambúrguer e entrada gratuita aos espectadores; já a estreia nacional está prevista para maio. O longa venceu como Melhor Filme no Festival de Paulínia deste ano, além de Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Fotografia, Melhor Montagem, Melhor Trilha Sonora, Melhor Direção de Arte e o Prêmio da Crítica. Também participou do Festival de Recife e de Rotterdam.

Após a exibição do filme, o diretor Cláudio Assis esteve num bate-papo com o público, acompanhado da atriz Mariana Nunes, responderam questões e fizeram alguns comentários sobre as filmagens e a proposta do filme.

A atriz Mariana Nunes mostrou serenidade e lucidez, esclarecendo aos cinéfilos curiosos algumas dúvidas, como da prisão de alguns atores no dia das gravações, por estarem nus, parecendo reagir aos policiais, embora fossem da equipe de filmagem, envolvendo a polícia de Pernambuco num conflito depois solucionado; bem como a cena em que o ator Irandhir Santos sendo retirado da frente dos canhões, é real.

Já o diretor pareceu um pouco perturbado e por vezes agressivo e extremamente ofensivo com os espectadores nos debates, agredindo a classe dos jornalistas e chamando-os de covardes e fdp. Xingou também os colegas cineastas como Fernando Meirelles, João e Walter Salles e Heitor Dhalia, demonstrando um ódio irascível e ressentimento contido numa linguagem chula. Atacou ainda a Rede Globo e alguns diretores de cinema, tachando-os de sem escrúpulos e sem dignidade, que se vendem para a TV, enfatizando com extrema amargura e fazendo uso de palavras de baixo calão e inadequadas para o seleto público que o olhava atônito, talvez por tentar fazer gênero ou ter tomado algumas cervejas além da conta.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Um Dia


















Destino Traiçoeiro

A diretora Lone Scherfig é conhecida no Brasil pelo seu elogiado longa Educação (2009), sobre uma garota de 16 anos, conflitada com a família no subúrbio londrino em 1961, sofre com o tédio de seus dias de adolescente e aguarda impacientemente a chegada da vida adulta. Logo se vê atraída por um homem charmoso e cosmopolita de mais de trinta anos e um mundo novo se abre diante de si, deixando-a em um dilema entre a educação formal e o aprendizado da vida. Agora a diretora brinda os espectadores com sua mais recente obra Um Dia, um misto quente de comédia romântica com drama, baseado no best-seller de David Nicholls, com mais de 1,3 milhão de exemplares vendidos e publicado em 37 países.

O enredo é bem espirituoso e digno dos melhores roteiros, tendo a trama como protagonistas principais Emma (Anne Hathaway- em mais uma atuação de luxo da bela e estonteante nova-iorquina do Brooklyn, nascida em 12 de novembro de 1982) e Dexter (Jim Sturgess- que não decepciona). Eles fazem um casal de formandos que se conhecem realmente no dia da formatura na faculdade, em 15 de julho de 1988, e acabam por ficar juntos na intimidade, embora de forma despretensiosa, mais pelo acaso do que por razões óbvias.

O ritual dos encontros é repetido anualmente, sempre no dia 15 de julho, para festejar mais um ano de formatura e coincidentemente o início de uma grande amizade e o amor que cresce geometricamente com o tempo, mas é abafado visceralmente pela negação dos destinos cruzados que ambos levam. Este é o mote do filme que serve de um cronograma sombrio e paradoxal para seu desenlace.

Dexter é um playboy irresistível e sonhador de um mundo como fosse um grande cenário imaginário para os seus deleites. Tem problemas com o pai que o lembra e faz alusões da referida data com a dos festejos de um santo da região. Suas visitas à mãe gravemente enferma são conturbadas. Os encontros e desencontros são contumazes nas vidas dos dois jovens amigos, que teimam em considerar o relacionamento como uma simples amizade, embora profunda pela atmosfera criada em torno dos dois e os fatos sejam contrários aos destinos que eles buscam como uma fuga aleatória. Já Emma, oriunda da classe operária, tem bons princípios e regramentos para uma convivência estável, sonha em tornar o mundo bem melhor, não é feliz com seu marido, um colega dela e de Dexter na faculdade, que também se casa e tem uma linda filha.

O filme se desenrola num clima de incertezas e Emma tem tudo para ser a razão da existência do amigo, que sempre lhe procura nos piores dias das lágrimas contidas, das discussões exacerbadas e com críticas ásperas. Sobram poucos dos bons momentos cruciais para compartilhar em diversões, apoios e risos, nos dias 15 de julho, num relacionamento que se estende por mais de 20 anos e, aos poucos, vão percebendo o quanto são importantes aqueles fortuitos encontros agendados, ou aguardados ansiosamente no calendário.

A diretora parece encaminhar os destinos numa solução simples. O filme mantém a atenção do espectador, mesmo que a previsibilidade do epílogo estivesse na iminência, mas com estilo sutil surpreende com a reviravolta do roteiro, deixando um jogo de planos e cenas eficientes construídos em flasbacks mostrar os momentos de alguns encontros ainda não revelados, segurando firme o público, não deixando cair a peteca como se imaginava.

Scherfig revela segurança e harmonia na estrutura dramática mesclada com boas doses de humor, sem ser piegas e deixando acesa a chama da expectativa até o final inesperado deste bom longa-metragem, que aborda os perigos de se brincar com o destino. Faz um aprofundamento sensível e com bastante clareza sobre o amor sucumbindo por culpa dos seus protagonistas. Ou seja, as coisas são fáceis, mas os seres humanos parecem querer dificultar ao máximo as próprias razões existenciais e não contam com as armadilhas do destino.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Drive



















Solidão e Violência

O dinamarquês Nicolas Winding Refn é um diretor pouco conhecido, mas vem tentando se firmar no cenário internacional desde Pusher (1996), Medo X (2003), com John Turturro e Guerreiro Silencioso (2009), todos os títulos são inéditos nos cinemas do Brasil, pois foram lançados somente em DVD. Agora se consagra de forma definitiva ao atingir o ápice da carreira com este soberbo Drive, numa adaptação livre do best-seller homônimo de James Sallis. Um típico filme cult é este seu último longa de invejável performance.

O cineasta dá uma demonstração maiúscula de seu talento e lucidez de maneira esplendorosa, neste suspense mesclado com faroeste urbano insuperável pelas suas qualidades de estrutura dramática, embalado por uma instigante trilha sonora magistral que dá o clímax com canções fascinantes para as cenas que se sucedem numa atmosfera adequada, tendo como seu criador o surpreendente Cliff Martinez; bem como a montagem não merece reparos, diante das elipses sempre no ponto do roteiro de Hossein Amini.

A trama tem uma narrativa certeira de um motorista de dublê de ator principal, que também trabalha numa oficina mecânica e à noite conduz carros “envenenados” para que seus parceiros pratiquem pequenos roubos à mão armada, visando complementar seu sustento e preencher seu enorme vazio existencial. O rapaz perdido em suas lembranças é apenas chamado de Garoto (Ryan Gosling). O ator tem um desempenho simplesmente antológico e só não ganhou o Oscar de melhor na categoria, porque injustamente não concorreu. Já interpretou bons personagens como o idealista no recente Tudo pelo Poder (2011).

Garoto é uma criação ambiciosa e memorável de um solitário homem, de olhar fixo e sem piscar, sempre com um palito na boca, às vezes mastigando e em outras estático, ao melhor estilo dos cowboys personificados por John Wayne, Clint Eastwood, Giuliano Gemma, Franco Nero e tantos outros. Neste simbólico faroeste aparece como se fosse um defensor dos oprimidos, através da bela criação psicológica e da estrutura dos vingadores silenciosos e sequiosos pela desintegração dos oponentes. Logo esbarra num relacionamento complexo e vê a protegida, sua vizinha Irene (Carey Mulligan- de boa atuação e é a mesma do filme Educação, de 2009) às voltas com o filho e metida numa baita encrenca arrumada pelo marido prisioneiro, que é solto e tem dívidas impagáveis com grupos perigosos que lhe davam proteção na cadeia e estão cobrando seus créditos de forma agressiva e nada amistosa. Garoto se envolve de corpo e alma e o longa vira uma nitroglicerina pura, não só nas perseguições de carros turbinados como na explosão da violência contida, sem ser gratuita ou apelativa, mas marcante pela degradação do ser humano.

Drive tem várias semelhanças e influências, como do inesquecível clássico dos anos 60 Sem Destino (1969), dirigido por Dennis Hopper, com atuação impecável de Peter Fonda, pelas perseguições emblemáticas de automóveis nos filmes do gênero; mas é imperativo lembrar À Prova de Morte (2007), de Quentin Tarantino com seu parceiro Robert Rodriguez, que tem na estética uma alusão explícita ao tradicional banho de sangue, pelas corridas alucinadas, muita velocidade e choques violentos e devastadores, com socos e porradas na cara ao melhor estilo. Tanto os personagens de Tarantino como de Refn são pessoas similares por serem solitárias e perturbadas no seu convívio social, aflorando uma iminente vontade de gritar e esmurrar.

Mas há ainda a semelhança dos gêneros e graus em todos os sentidos como de Onde os Fracos Não Têm Vez (2007), dos irmãos Coen, naquela monumental construção de violência explícita e mortes aterrorizantes. Há cenas bem parecidas, mas o cineasta revela sua inspiração e mostra sua originalidade nos diálogos e nas cores de um belo lusco-fusco, num colorido acinzentado com poucas luzes nos cenários, faz deste um suspense por vezes noir como uma magia no seu desempenho, numa trama de personagens perdidos e sós, na busca de um futuro promissor, que levam para um epílogo digno de uma obra-prima, neste filme que aborda com profundidade a violência, a solidão e os amores em cisão. Por tudo isto, pode ser comparado sem exagero ou demérito ao já clássico Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, onde o taxista protagonizado por Robert de Niro está na iminência de explodir sua violência contra uma sociedade injusta e caindo de podre.

Um longa-metragem que aflora a dignidade pelo seu poder de abordagem contundente dentro de uma narrativa eletrizante num clima de policial noir, que só não ganhou várias estatuetas no Oscar, por ter sido alijado criminosamente da disputa. Porém não impediu de revelar sua singularidade e a demonstração de um cinema de autor num visual retrô, num filme de grandes exercícios memoráveis de estilos revigorantes com identidade própria, inscreve-se como um dos 10 melhores de 2012, que já lhe rendeu o prêmio de melhor diretor no último Festival de Cannes.