Hilton Lacerda estreia como diretor do premiado longa Tatuagem que conquistou os prêmios no
41º. Festival de Gramado de melhor filme do júri e de crítica, ator para
Irandhir Santos e trilha musical para DJ Santos; no Festival do Rio deste ano
recebeu o prêmio especial de júri oficial de filme, melhor ator para Jesuíta
Barbosa e ator coadjuvante para Rodrigo Garcia; ganhou ainda como melhor longa
em ficção pelo júri popular e melhor longa latino-americano pela Fipresci
(crítica internacional). Começou bem sua nova carreira por trás das câmeras,
depois de escrever roteiros por muitos anos e ser reconhecido no cinema de
Pernambuco pelos filmes de Cláudio Assis: Amarelo
Manga (2002), Baixio das Bestas
(2006) e Febre do Rato (2011);
notabilizou-se também pelos roteiros de Baile
Perfumado (1997), de Paulo Caldas e A
Festa da Menina Morta (2008), de Matheus Nachtergaele.
A trama é bem urdida com ambientação em 1978, num pós-regime
militar, diante do golpe de 1964 que dá seus últimos suspiros, ainda que mantendo
uma ferrenha censura e submetendo os censores às ordens superiores rígidas,
como na cena da proibição da peça, sob o pífio argumento da moral e dos bons
costumes infringidos. Clécio (Irandhir) é o líder da trupe de artistas teatrais
que se apresentam no Chão de Estrelas, um cabaré anarquista em más condições de
infraestrutura, de aspecto mambembe e com mínimas condições técnicas, diante
dos recursos financeiros escassos, numa história que retrata o provocador grupo
anárquico de uma cidade do Nordeste que questiona uma moral deturpada e os
costumes sendo ultrajados, onde o poder ainda está sob o comando e diretrizes de
exceção, numa época de democracia inexistente sob todos os pontos de vista. Os
espetáculos se sustentavam pelo deboche escrachado e perturbador, com o
objetivo de causar ruptura nos paradigmas moralistas e conservadores.
O musical de protesto encenado sobre os glúteos do ser
humano é demolidor, embora esteja bem próximo da tênue linha que separa da
vulgaridade e por consequência a forma apelativa. Aproxima-se do teatro de
revista como uma ideia narrativa, mas logo é abandonada, dando lugar ao teatro
de rua libertário encontrado na contracultura estética do tropicalismo de
Oiticica; ou no teatro de oficina do irreverente Zé Celso Martinez; bem como o
famoso grupo Dzi Croquettes, referências culturais que povoavam os anos de 1960
e 1970. Por vezes o roteiro escorrega, em outras se levanta, e o filme vai em
frente, com o epílogo à espera para saudar com a marchinha de carnaval celebrizada
por Dalva de Oliveira Bandeira Branca
(1970), de Max Nunes e Laércio Alves, pedindo paz e um futuro melhor que se
desenha no horizonte.
Um drama do cotidiano com raízes sociais, onde o diretor
reúne um painel de contestadores contra o poder público, através de uma casta
de intelectuais, artistas e um público predominantemente homossexual. Além da
liderança de Clécio, há seu melhor amigo Paulete (Rodrigo), a principal vedete
do palco estrelado, que irá apresentar seu cunhado Fininha (Jesuíta), um
soldado raso de 18 anos, oriundo do interior pernambucano, que convive com uma
família pobre e conservadora. Surge a grande reviravolta na vida dele e de
Clécio, quando se apaixonam e ensejam cenas tórridas de sexo. O milico de homossexualidade
latente mostrava-se desconfortável no serviço militar, com sinais evidentes de
estar enrustido no quartel, tatua o corpo com a letra “C” numa dúbia referência.
Chega a ser visto como um espião do Exército junto aos artistas irreverentes do
teatro, o que causa embaraços e um mal-estar entre todos.
A comparação com o filme Febre
do Rato é inevitável, embora Lacerda refute e afirme que sua obra é o
futuro idealizado, enquanto que o de Assis é o passado. Febre do Rato é em preto e branco e os locais que serviram de
cenário não poderiam retratar uma colorido estonteante, se a proposta principal
era enfatizar o lado negativo de desvalidos das favelas fétidas e imundas
enxotados do conforto; enquanto que Tatuagem
é rodado em cores e há otimismo, com uma estrutura colocada nas diferenças
sexuais como pano de fundo, aborda despudoradamente um poder dominante que
ficou para trás. Mas em ambos há o poeta como a simbologia da resistência.
Tatuagem é um bom
filme sobre a inversão de valores, apesar de alguns excessos verborrágicos e um
nudismo exacerbado, não chega a afetar ou obscurecer o resultado final. Traz na essência um viés homossexual que serve de base para tripudiar
o rompimento das contravenções de uma sociedade ultrapassada, como no grito de
liberdade da trupe teatral que acredita no futuro e deixa registrada uma
satisfatória contribuição das marcas da história, através de um cineasta
promissor do polo do cinema de Pernambuco, um dos mais importantes do país. Mostra-se
criativo ao discutir um Brasil do presente e o seu passado como parâmetro para
dar voz às utopias, ainda que seu filme seja regional com uma típica linguagem
nordestina.