segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Tatuagem


As Utopias

Hilton Lacerda estreia como diretor do premiado longa Tatuagem que conquistou os prêmios no 41º. Festival de Gramado de melhor filme do júri e de crítica, ator para Irandhir Santos e trilha musical para DJ Santos; no Festival do Rio deste ano recebeu o prêmio especial de júri oficial de filme, melhor ator para Jesuíta Barbosa e ator coadjuvante para Rodrigo Garcia; ganhou ainda como melhor longa em ficção pelo júri popular e melhor longa latino-americano pela Fipresci (crítica internacional). Começou bem sua nova carreira por trás das câmeras, depois de escrever roteiros por muitos anos e ser reconhecido no cinema de Pernambuco pelos filmes de Cláudio Assis: Amarelo Manga (2002), Baixio das Bestas (2006) e Febre do Rato (2011); notabilizou-se também pelos roteiros de Baile Perfumado (1997), de Paulo Caldas e A Festa da Menina Morta (2008), de Matheus Nachtergaele.

A trama é bem urdida com ambientação em 1978, num pós-regime militar, diante do golpe de 1964 que dá seus últimos suspiros, ainda que mantendo uma ferrenha censura e submetendo os censores às ordens superiores rígidas, como na cena da proibição da peça, sob o pífio argumento da moral e dos bons costumes infringidos. Clécio (Irandhir) é o líder da trupe de artistas teatrais que se apresentam no Chão de Estrelas, um cabaré anarquista em más condições de infraestrutura, de aspecto mambembe e com mínimas condições técnicas, diante dos recursos financeiros escassos, numa história que retrata o provocador grupo anárquico de uma cidade do Nordeste que questiona uma moral deturpada e os costumes sendo ultrajados, onde o poder ainda está sob o comando e diretrizes de exceção, numa época de democracia inexistente sob todos os pontos de vista. Os espetáculos se sustentavam pelo deboche escrachado e perturbador, com o objetivo de causar ruptura nos paradigmas moralistas e conservadores.

O musical de protesto encenado sobre os glúteos do ser humano é demolidor, embora esteja bem próximo da tênue linha que separa da vulgaridade e por consequência a forma apelativa. Aproxima-se do teatro de revista como uma ideia narrativa, mas logo é abandonada, dando lugar ao teatro de rua libertário encontrado na contracultura estética do tropicalismo de Oiticica; ou no teatro de oficina do irreverente Zé Celso Martinez; bem como o famoso grupo Dzi Croquettes, referências culturais que povoavam os anos de 1960 e 1970. Por vezes o roteiro escorrega, em outras se levanta, e o filme vai em frente, com o epílogo à espera para saudar com a marchinha de carnaval celebrizada por Dalva de Oliveira Bandeira Branca (1970), de Max Nunes e Laércio Alves, pedindo paz e um futuro melhor que se desenha no horizonte.

Um drama do cotidiano com raízes sociais, onde o diretor reúne um painel de contestadores contra o poder público, através de uma casta de intelectuais, artistas e um público predominantemente homossexual. Além da liderança de Clécio, há seu melhor amigo Paulete (Rodrigo), a principal vedete do palco estrelado, que irá apresentar seu cunhado Fininha (Jesuíta), um soldado raso de 18 anos, oriundo do interior pernambucano, que convive com uma família pobre e conservadora. Surge a grande reviravolta na vida dele e de Clécio, quando se apaixonam e ensejam cenas tórridas de sexo. O milico de homossexualidade latente mostrava-se desconfortável no serviço militar, com sinais evidentes de estar enrustido no quartel, tatua o corpo com a letra “C” numa dúbia referência. Chega a ser visto como um espião do Exército junto aos artistas irreverentes do teatro, o que causa embaraços e um mal-estar entre todos.

A comparação com o filme Febre do Rato é inevitável, embora Lacerda refute e afirme que sua obra é o futuro idealizado, enquanto que o de Assis é o passado. Febre do Rato é em preto e branco e os locais que serviram de cenário não poderiam retratar uma colorido estonteante, se a proposta principal era enfatizar o lado negativo de desvalidos das favelas fétidas e imundas enxotados do conforto; enquanto que Tatuagem é rodado em cores e há otimismo, com uma estrutura colocada nas diferenças sexuais como pano de fundo, aborda despudoradamente um poder dominante que ficou para trás. Mas em ambos há o poeta como a simbologia da resistência.

Tatuagem é um bom filme sobre a inversão de valores, apesar de alguns excessos verborrágicos e um nudismo exacerbado, não chega a afetar ou obscurecer o resultado final. Traz na essência um viés homossexual que serve de base para tripudiar o rompimento das contravenções de uma sociedade ultrapassada, como no grito de liberdade da trupe teatral que acredita no futuro e deixa registrada uma satisfatória contribuição das marcas da história, através de um cineasta promissor do polo do cinema de Pernambuco, um dos mais importantes do país. Mostra-se criativo ao discutir um Brasil do presente e o seu passado como parâmetro para dar voz às utopias, ainda que seu filme seja regional com uma típica linguagem nordestina.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Blue Jasmine



As Irmãs

Woody Allen mesmo se reinventando, ou ainda seguindo sua trajetória de comédias de costumes ou dramáticas, seu sarcasmo e sua ironia sempre estão presentes como marcas registradas de sua obra. Neste seu 43º longa-metragem, além de diretor é o roteirista em Blue Jasmine, retomando com vigor sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do dia a dia. Evidente que poucos filmes se comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida cotidiana na época da Grande Depressão dos EUA.

Depois que começou sua fase europeia, ao filmar em lugares distantes de sua querida Nova Iorque, iniciando por Londres com Ponto Final- Match Point (2005), um dos melhores dos últimos anos; Scoop- O Grande Furo (2006); e O Sonho de Cassandra (2007). Seguiu como turista com sua câmera na mão e ancorou na Espanha com Vicki Cristina Barcelona (2008). Passou pelos EUA de regresso e assinou Tudo Pode Dar Certo (2009), onde escolhe com perfeição seu alter ego como Boris (Larry David), no papel de um velho rabugento. Retorna para a Inglaterra e realiza Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010); passa pela França para dirigir Meia-Noite em Paris (2011) e finaliza com Para Roma, com Amor (2012).

Blue Jasmine aborda com interesse as neuroses e os relacionamentos despudorados, bem como as traições com métodos de sedução nada convencionais, como numa terapia não ortodoxa decorrente das angústias atormentadoras. Seus personagens muitas vezes são reescritos, às vezes com bons resultados e em outros apenas discretos. Mais uma vez parte dos desajustes familiares, como de Jasmine (Cate Blanchett- a atriz australiana está magnífica e é séria candidata ao Oscar) que se muda para o modesto apartamento, em São Francisco, da irmã de criação Ginger (Sally Hawkins), logo após ter desfeito seu casamento com o mulherengo Hal (Alec Baldwin), um rico empresário que se mete em arriscados negócios, tendo inclusive falido o cunhado Al (Louis C. K.), casado com Ginger, fazendo-o perder todas as economias guardadas por anos.

Para boa parte da crítica há uma forte semelhança do longa de Allen com a peça clássica Um Bonde Chamado Desejo (1947), de Tennessee Williams, diante das semelhanças com a socialite nova-iorquina num mundo de futilidades que de repente está em ruínas pela falência financeira decorrente da perda do marido e o posterior suicídio. A peça apresenta DuBois, uma decadente sulista com pretensões de virtude e cultura que, através da fantasia, busca encobrir, para si mesma e para os outros, a realidade. Disfarça suas desilusões através da ideia de se mostrar atraente e com possibilidade de novas conquistas amorosas.

No filme embalado por um bonito e recorrente jazz, a protagonista vai ao encontro da irmã, uma pessoa simples que trabalha como empacotadora. As companhias são outras obviamente, seu mundo agora mudou e a vida parece contrariar, embora seja um alerta para aquela construção falsa de um castelo de areia desmoronando. Sua fragilidade aflora e se entope de antidepressivos, deixando-a desnorteada e vazia, sem um sentido claro sobre a existência e sua continuação. A cabeça roda, tudo parece perdido, mas surge a grande chance de reeguer-se, quando encontra por acaso numa festa um pretendente bonitão (Peter Sarsgaard), viúvo rico e com um projeto político para o futuro bem definido, quer fazê-la primeira-dama. A protagonista atrapalha-se ao falsear a identidade e se faz passar por uma designer de interiores. O mundo cai novamente na sua cabeça, diante de um encontro inusitado.

A mentira pune e não tem perdão na visão de Allen, assim como a frivolidade presente a faz voltar às ruas perambulando, numa construção psicológica que retrata a bancarrota humana depreendida. Jasmine nunca perde sua pompa aristocrática, interpretada com elegância e verve dramática por Blanchett, numa imagem que retrata o orgulho ferido e o preconceito à irmã simplória e seu namorado bronco Chilli (Bobby Cannavale), embora infamemente estereotipado, é um rapaz apaixonado com pouca cultura, às vezes violento, quando se sente menosprezado. Na sua trajetória pelo recomeço, passa por um consultório dentário, onde é recepcionista de Flicker (Michael Stuhlbarg) numa situação constrangedora de assédio.

Allen nunca negou sua influência pelo cineasta da alma Ingmar Bergman, como em Setembro (1987) e Interiores (1978), tendo por característica quase sempre mergulhar no interior humano na busca obsessiva das neuroses presentes em seus personagens, dando soluções nada pragmáticas. Blue Jasmine aborda as consequências de uma realidade num mundo de vaidades pelos desatinos de verdades ignoradas. O cineasta enfoca as demasiadas preocupações de como as pessoas veem os outros, como metáfora da cegueira de suas vidas alimentadas ilusoriamente por sentimentos frívolos de uma sociedade elitista esfarelada e corrompida por futilidades e desmandos. Os flashbacks são colocados como referência para o presente e estimulam o espectador a acompanhar os desdobramentos e avanços da narrativa no inteligente roteiro, como pedras no tabuleiro de um jogo de xadrez, deixando a dor provocada pela angústia ganhar força e tornar-se consistente nesta bela comédia dramática sobre os desajustes familiares e seus vínculos destroçados por diferenças sociais e culturais expressas entre as irmãs.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Exercício do Caos



Pai e Filhas

O primeiro longa-metragem de ficção produzido no Maranhão tem na direção o estreante Frederico Machado, que também é responsável pelo roteiro, fotografia e produção. O Exercício do Caos teve um orçamento de R$110 mil pela Lume Filmes, da qual é fundador, ocupando apenas dez salas no país e faz parte da trilogia Trindade Dantesca, sendo que o segundo filme deverá estrear em 2014 com o título de O Signo das Tetas, em coprodução com Cuba. Machado é quase que um visionário, um desbravador que acredita na ideia da proposta de um cinema autoral puramente artesanal, distante das mega produções, abre um novo polo desta forma e contribui para outras realizações comprometidas com a arte e a cultura, ainda que o caminho seja árduo e espinhoso na sua trajetória.

A trama é contada em três atos sucessivos: O Exercício, O Limbo e O Caos, retratando em tom de suspense existencial mesclado com drama psicológico a história de um pai austero (Auro Juriciê) que vive em companhia de suas três filhas na fase da adolescência (Izabella, Thalyta e Thainá Souza- nenhuma é atriz profissional e são irmãs de fato) numa fazenda no interior do Maranhão. Trabalham na roça obstinadamente de dia para comerem à noite. Plantam, colhem e descascam mandioca para produzir farinha, que serve de alimento básico para a família e também como meio de produção para o sustento.

As garotas sofrem muito com o inusitado desaparecimento da mãe (Elza Gonçalves), supostamente raptada pelo caboclo de branco que surge ao entardecer na beira do rio, uma lenda recorrente na região, passada por gerações que divulgam o fato, inclusive o próprio pai, um homem humilde que se deixa envolver por insinuações maldosas do perigoso e tarado capataz (Di Ramalho) de olhos maliciosos voltados para as filhas ingênuas. Além das provocações de traição há as alegadas ameaças de cobrança do patrão das terras pela produtividade insuficiente.

O filme tem escassos diálogos permeados por um sufocante silêncio, diante de uma comunicação com o mundo apenas pelo rádio, numa época de discursos inflamados de Collor de Mello tentando chegar à presidência da República, através da sua retórica antes do escândalo do impeachment. Não há água potável, luz elétrica, televisão, celular e internet, num cenário de muita dificuldade pela sobrevivência e promessas políticas vazias contrastando com uma pobreza devastadora para os trabalhadores da terra. Há fragilidades de empregados decorrentes de um espertalhão mau-caráter que usa a figura paterna para explorá-la sem piedade. A mãe flutua na mata e surge na igrejinha como um fantasma que se liberta e ao mesmo tempo afaga as meninas do iminente perigo, diante da desintegração psicológica do marido em processo de loucura e perda da razão, vai se distanciando da lucidez pelo vício do álcool.

Os fragmentos são evidentes da destruição de um núcleo familiar, com uma trilha sonora adequada para dar a estrutura tensionada do lugar. Machado abre lacunas e impõe a atenção do espectador num drama com tintas marcantes sobre o medo, com imagens bonitas sendo cortadas em planos bem elaborados para uma proposta estética de metalinguagem inovadora, afastando-se do didatismo exagerado de algumas produções brasileiras como em O Tempo e o Vento (2012), de Jayme Monjardim e Colegas (2012), de Marcelo Galvão; aproxima-se em muito pela qualidade de um cenário tipicamente rural, longe da civilização urbana, com o longa pernambucano Na Quadrada das Águas Perdidas (2011), dos diretores estreantes Wagner Miranda e Marcos Carvalho; embora bem distante, traz o medo e a solidão como reflexão de O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho.

O Exercício do Caos deve ser saudado pelos méritos evidentes de uma produção de poucos recursos, embora não seja revolucionário ou um filme singular, deixa um resultado bem satisfatório, acima da média de grandes produções vazias e de propostas inócuas, considerando-se um elenco em que apenas os adultos já haviam pisado num teatro amador em São Luís e as jovens intérpretes nunca atuaram. Eis um filme sobre a forma de manter-se vivo, a solidão permanente e a perda da lucidez gradativa, através de uma violência psicológica sugerida pelo equilíbrio, porém instigante e reflexiva.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Lore



Filhos do Nazismo

Vem da Alemanha, em coprodução com a Austrália e Reino Unido, Lore, segundo longa-metragem da australiana Cate Shortland, responsável também pelo roteiro, ganhou 17 prêmios internacionais: entre eles os festivais de Locarno, Hamburgo, Estocolmo e Valladolid. Aborda magnificamente uma Alemanha pós-guerra na primavera de 1945 mergulhada no nazismo ensandecido do Führer se esvaindo e as consequências danosas irremediavelmente para os filhos dos colaboradores, simpatizantes e oficiais, como no caso do casal fugitivo após a morte inesperada de seu mentor máximo Adolf Hitler.

O filme foi adaptado do livro The Dark Room, de Rachel Seiffert, sendo a protagonista que empresta o nome ao título interpretada pela atriz estreante Saskia Rosendahl, em desempenho impecável e convincente pela forma comedida. Seu pai (Hans-Jochen Wagner), um oficial da polícia SS foge às pressas e logo é seguido pela mãe (Ursina Lardi), desintegrando o núcleo da família. A jovem recebe instruções para levar seus quatro irmãos mais novos, entre eles um bebê, ao encontro da casa da avó, uma fiel e ferrenha defensora do Führer na distante Hamburgo. Tem que cruzar por dentro da aterradora Floresta Negra, com o perigo de animais selvagens, enfrentar o frio e a fome, além dos soldados das forças aliadas vencedoras espalhados pelo seu interior, liderados pelos norte-americanos nada amigáveis, como se vê nas imagens do comboio de caminhões.

O Terceiro Reich chegara ao fim e é demonstrado o abandono dos pais aos próprios filhos, embora sem quebrar o vínculo com o nazismo derrotado do exército alemão em colapso. A neta Lore reflete a situação e o destino que terá que seguir inevitavelmente, pois sempre fora induzida a escorraçar e odiar o povo semita, achando-os uns porcos imundos, mas sua relação com o misterioso rapaz judeu Thomas (Kai Malina), diante de sua solidariedade para atravessar os percalços da odisseia travada pela sobrevivência, a faz repensar seu preconceito de ojeriza antissemita inoculada pela família simpática ao regime alemão nefasto, ora derrotado. E ao quebrar os bibelôs de barro que adornam a residência da avó engajada, há o rompimento dos paradigmas preconceituosos raciais, na bela cena metafórica.

A diretora, que anteriormente realizou Somersault (2003), retrata um país falido e esmiúça com profundidade as consequências trágicas que levaram ao transtorno psicológico da protagonista e seus irmãos defenestrados por uma causa inverossímil. Um caminho de extrema violência com rastros de mortes estúpidas, passando por estupros sugeridos num clímax equilibrado e coerente, através de uma história com suavidade contraditória pela barbárie. Há uma sutileza embrutecida por um panorama do holocausto que deixou feridas abertas de difícil cicatrização, embora a sensibilidade da realizadora para permear a selvageria intercalada por momentos líricos doloridos faz desta película um manifesto contundente, sem se deixar cair no maniqueísmo ou na mesmice de câmaras de gás esperando pessoas amontoadas dentro de trens rumo à morte.

O drama retrata a escuridão que se encontra a protagonista e o interior da sua alma atingido pela brutalidade de uma nação putrificada por um insano no poder, que levou seus filhos para o caos e a humilhação passando por gerações, na metáfora dos pais em relação à saga de Lore e seus irmãos, como uma alegoria da Alemanha para seu povo numa dor de fracassados vistos por anos e anos como uma raça tristemente afamada, fruto da ruína desencadeada por Hitler e sua aversão contrária à permanência dos judeus no mundo, pregando o extermínio em massa.

Lore não é uma defesa intransigente de uma verdade absoluta, porque o drama aprofunda-se ao ingressar com força no microcosmo familiar em decomposição, onde as vítimas são todas aquelas que não fizeram ou não participaram diretamente da barbárie neste fabuloso filme sobre a infância perdida e a alegoria de uma nação destruída pela insensatez e arrogância dos gabinetes e quartéis, deixando como reflexão maior a confiança no lugar do ódio pela luta da sobrevivência humana. São os reflexos de uma guerra que faz o espectador ter uma visão menos dualista, ao deixar fluir a equidistância da imparcialidade para elaborar uma posição mais crítica e menos escassa da realidade. Eis um filme que se insere entre as melhores produções de 2013.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Juan e Evita- Uma História de Amor



Bastidores do Poder

A trajetória de um dos maiores mitos da política na América do Sul entrecortada pelos jogos de poder com toda sua emblemática relação com o povo argentino e a grande paixão por uma jovem atriz de rádio, eis os principais ingredientes do roteiro que enfoca o romance de María Eva Duarte (Julieta Díaz), conhecida como Evita (1919-1952), torna-se uma líder política e casa-se antes da eleição com o todo poderoso general Juan Domingo Perón (Osmar Núñez) e assume a condição de primeira-dama no longa de estreia de Paula Luque, que também assina o roteiro, Juan e Evita- Uma História de Amor, ganhador do prêmio de melhor filme em Bogotá. A diretora é a mesma de um imbróglio recente em seu país sobre a cinebiografia do ex-presidente Néstor Kirchner (1950-2010), que foi retirada do cineasta uruguaio Adrián Caetano e passada para as suas mãos. Após a estreia fracassada da versão oficial de Luque em 93 salas de cinema do país, em novembro de 2012, a versão oficiosa e inacabada do uruguaio vazou na internet no início deste mês, houve comparações e muita polêmica.

O drama é ambientado em 1944, num período de 18 meses, após um terremoto na cidade de San Juan, o coronel viúvo aproxima-se da bonita Eva, dando início à famosa relação de amor abalada pela ditadura no país. A cineasta retrata a história da vida daquela moça interiorana e o caminho meteórico que ela percorreu na vida pública até falecer em apenas sete anos. Saiu do anonimato para se tornar uma das mulheres mais importantes e poderosas do planeta, num mundo em que desconhecia os meandros e falcatruas, mesmo com os mistérios e obscuridades de sua trajetória ela foi marcante, uma celebridade pelo seu sucesso absoluto pessoal e político da vida, para em seguida deparar-se com a morte prematura, vira “santa Evita dos pobres” num processo de catarse coletiva pela sacralização.

Embora a película não aprofunde o governo peronista, sem ter um olhar mais crítico, fica evidente que Evita era uma figura chave de um regime ancorado no paternalismo de um caudilho. A primeira-dama é apresentada como resistente pela sua imagem personalista de pessoa forte, às vezes alheia e logo superior e dona da situação conturbada que rodeava o casal. Perón fraquejava como um grande estadista, mas tinha ao lado um esteio sobre o qual o governo ora oscilava, ora ascendia. Ganha voz própria pela sua ambição de pretensões sociais, como o assistencialismo aos pobres e o sistema de poder pela sedução das massas, de uma coletividade. O regime está corrompido, mas cambaleia e sustenta-se com muita fragilidade pela demagogia.

Um filme em que Perón é visto acumulando a vice-presidência, secretário geral do Trabalho e Previdência Social e ainda ministro das Forças Armadas, numa época turbulenta de crise entre os EUA e a Alemanha. A Argentina mergulhada numa crise política sem precedentes. Luque enfatiza a aproximação e a participação direta em decisões fundamentais de Evita no governo do presidente militar Edelmiro Farrell, com um apoio parcial do exército, tendo a marinha como oposição e dividindo o poder, levando Perón à iminente renúncia.

O longa é dividido em três episódios na vida do mitológico casal: o amor, o ódio e a revolução, sendo que a prisão de Perón enraivece os defensores do assistencialismo e faz eclodir uma greve patrocinada pelos sindicatos simpatizantes. A bandeira do paternalismo é desfraldada e mexe com o imaginário do povo que vai às ruas e o faz voltar nos braços da multidão enlouquecida, como se vê em imagens por flashbacks da época, onde centenas de milhares de pessoas tomam as ruas de Buenos Aires, a Praça de Maio em direção à Casa Rosada, diante do acordo de Farrell com o ex-vice para libertá-lo.

Juan e Evita- Uma História de Amor conta a história do casal protagonista, com recheios políticos suaves nos bastidores que bem poderiam render um filme mais realista e contundente e não tão comprometido em ser simpático ao peronismo. Segue um roteiro didático de boa dose equilibrada de dramaticidade, numa relação amorosa que deu tango, tragédia e uma reverência incomum até hoje. Mas o filme para por aí, não menciona e nem faz qualquer alusão ao período posterior de Isabelita Perón, que governou de 1974 a 1976, foi a última esposa do general desde 1961. É intencional, faz concessões para manter de certa forma imaculada a imagem de Juan Domingo, sem um mergulho nas crises do governo. É induzida uma reflexão de um homem bom e voltado para as dificuldades de seu povo, sem arranhar a imagem construída neste drama político romanceado em plena era do rádio, realizado de forma linear para agradar os argentinos, dá uma razoável contribuição.