quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Blue Jasmine



As Irmãs

Woody Allen mesmo se reinventando, ou ainda seguindo sua trajetória de comédias de costumes ou dramáticas, seu sarcasmo e sua ironia sempre estão presentes como marcas registradas de sua obra. Neste seu 43º longa-metragem, além de diretor é o roteirista em Blue Jasmine, retomando com vigor sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do dia a dia. Evidente que poucos filmes se comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida cotidiana na época da Grande Depressão dos EUA.

Depois que começou sua fase europeia, ao filmar em lugares distantes de sua querida Nova Iorque, iniciando por Londres com Ponto Final- Match Point (2005), um dos melhores dos últimos anos; Scoop- O Grande Furo (2006); e O Sonho de Cassandra (2007). Seguiu como turista com sua câmera na mão e ancorou na Espanha com Vicki Cristina Barcelona (2008). Passou pelos EUA de regresso e assinou Tudo Pode Dar Certo (2009), onde escolhe com perfeição seu alter ego como Boris (Larry David), no papel de um velho rabugento. Retorna para a Inglaterra e realiza Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010); passa pela França para dirigir Meia-Noite em Paris (2011) e finaliza com Para Roma, com Amor (2012).

Blue Jasmine aborda com interesse as neuroses e os relacionamentos despudorados, bem como as traições com métodos de sedução nada convencionais, como numa terapia não ortodoxa decorrente das angústias atormentadoras. Seus personagens muitas vezes são reescritos, às vezes com bons resultados e em outros apenas discretos. Mais uma vez parte dos desajustes familiares, como de Jasmine (Cate Blanchett- a atriz australiana está magnífica e é séria candidata ao Oscar) que se muda para o modesto apartamento, em São Francisco, da irmã de criação Ginger (Sally Hawkins), logo após ter desfeito seu casamento com o mulherengo Hal (Alec Baldwin), um rico empresário que se mete em arriscados negócios, tendo inclusive falido o cunhado Al (Louis C. K.), casado com Ginger, fazendo-o perder todas as economias guardadas por anos.

Para boa parte da crítica há uma forte semelhança do longa de Allen com a peça clássica Um Bonde Chamado Desejo (1947), de Tennessee Williams, diante das semelhanças com a socialite nova-iorquina num mundo de futilidades que de repente está em ruínas pela falência financeira decorrente da perda do marido e o posterior suicídio. A peça apresenta DuBois, uma decadente sulista com pretensões de virtude e cultura que, através da fantasia, busca encobrir, para si mesma e para os outros, a realidade. Disfarça suas desilusões através da ideia de se mostrar atraente e com possibilidade de novas conquistas amorosas.

No filme embalado por um bonito e recorrente jazz, a protagonista vai ao encontro da irmã, uma pessoa simples que trabalha como empacotadora. As companhias são outras obviamente, seu mundo agora mudou e a vida parece contrariar, embora seja um alerta para aquela construção falsa de um castelo de areia desmoronando. Sua fragilidade aflora e se entope de antidepressivos, deixando-a desnorteada e vazia, sem um sentido claro sobre a existência e sua continuação. A cabeça roda, tudo parece perdido, mas surge a grande chance de reeguer-se, quando encontra por acaso numa festa um pretendente bonitão (Peter Sarsgaard), viúvo rico e com um projeto político para o futuro bem definido, quer fazê-la primeira-dama. A protagonista atrapalha-se ao falsear a identidade e se faz passar por uma designer de interiores. O mundo cai novamente na sua cabeça, diante de um encontro inusitado.

A mentira pune e não tem perdão na visão de Allen, assim como a frivolidade presente a faz voltar às ruas perambulando, numa construção psicológica que retrata a bancarrota humana depreendida. Jasmine nunca perde sua pompa aristocrática, interpretada com elegância e verve dramática por Blanchett, numa imagem que retrata o orgulho ferido e o preconceito à irmã simplória e seu namorado bronco Chilli (Bobby Cannavale), embora infamemente estereotipado, é um rapaz apaixonado com pouca cultura, às vezes violento, quando se sente menosprezado. Na sua trajetória pelo recomeço, passa por um consultório dentário, onde é recepcionista de Flicker (Michael Stuhlbarg) numa situação constrangedora de assédio.

Allen nunca negou sua influência pelo cineasta da alma Ingmar Bergman, como em Setembro (1987) e Interiores (1978), tendo por característica quase sempre mergulhar no interior humano na busca obsessiva das neuroses presentes em seus personagens, dando soluções nada pragmáticas. Blue Jasmine aborda as consequências de uma realidade num mundo de vaidades pelos desatinos de verdades ignoradas. O cineasta enfoca as demasiadas preocupações de como as pessoas veem os outros, como metáfora da cegueira de suas vidas alimentadas ilusoriamente por sentimentos frívolos de uma sociedade elitista esfarelada e corrompida por futilidades e desmandos. Os flashbacks são colocados como referência para o presente e estimulam o espectador a acompanhar os desdobramentos e avanços da narrativa no inteligente roteiro, como pedras no tabuleiro de um jogo de xadrez, deixando a dor provocada pela angústia ganhar força e tornar-se consistente nesta bela comédia dramática sobre os desajustes familiares e seus vínculos destroçados por diferenças sociais e culturais expressas entre as irmãs.

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