Woody Allen mesmo se reinventando, ou ainda seguindo sua
trajetória de comédias de costumes ou dramáticas, seu sarcasmo e sua ironia
sempre estão presentes como marcas registradas de sua obra. Neste seu 43º longa-metragem, além de diretor é o roteirista em Blue Jasmine, retomando com vigor
sua capacidade de construção de um cinema voltado
para as inquietações angustiantes do dia a dia. Evidente que poucos filmes se
comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa,
talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985),
naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da
tela indo ao encontro da garçonete que
assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida cotidiana na época da Grande Depressão dos EUA.
Depois que começou sua fase europeia, ao filmar em lugares
distantes de sua querida Nova Iorque, iniciando por Londres com Ponto Final- Match Point (2005),
um dos melhores dos últimos anos; Scoop- O Grande Furo (2006); e O Sonho de Cassandra
(2007). Seguiu como turista com sua câmera na mão e ancorou na Espanha
com Vicki Cristina Barcelona (2008).
Passou pelos EUA de regresso e assinou Tudo
Pode Dar Certo (2009), onde escolhe com perfeição seu
alter ego como Boris (Larry
David), no papel de um velho rabugento. Retorna para a Inglaterra e
realiza Você Vai Conhecer o Homem dos Seus
Sonhos (2010); passa pela França para dirigir Meia-Noite
em Paris (2011) e finaliza com Para Roma, com Amor (2012).
Blue Jasmine aborda com
interesse as neuroses e os relacionamentos despudorados, bem como as traições com
métodos de sedução nada convencionais, como numa terapia não ortodoxa
decorrente das angústias atormentadoras. Seus personagens muitas vezes são
reescritos, às vezes com bons resultados e em outros apenas discretos. Mais uma
vez parte dos desajustes familiares, como de Jasmine (Cate Blanchett- a atriz
australiana está magnífica e é séria candidata ao Oscar) que se muda para o
modesto apartamento, em São Francisco, da irmã de criação Ginger (Sally
Hawkins), logo após ter desfeito seu casamento com o mulherengo Hal (Alec
Baldwin), um rico empresário que se mete em arriscados negócios, tendo
inclusive falido o cunhado Al (Louis C. K.), casado com Ginger, fazendo-o
perder todas as economias guardadas por anos.
Para boa parte da crítica há uma forte semelhança do longa
de Allen com a peça clássica Um Bonde Chamado
Desejo (1947), de Tennessee Williams, diante das semelhanças com a
socialite nova-iorquina num mundo de futilidades que de repente está em ruínas
pela falência financeira decorrente da perda do marido e o posterior suicídio. A peça apresenta DuBois, uma
decadente sulista com pretensões de virtude e cultura que, através da fantasia,
busca encobrir, para si mesma e para os outros, a realidade. Disfarça suas
desilusões através da ideia de se mostrar atraente e com possibilidade de novas
conquistas amorosas.
No filme embalado
por um bonito e recorrente jazz, a protagonista vai ao encontro da irmã, uma
pessoa simples que trabalha como empacotadora. As companhias são outras
obviamente, seu mundo agora mudou e a vida parece contrariar, embora seja um
alerta para aquela construção falsa de um castelo de areia desmoronando. Sua
fragilidade aflora e se entope de antidepressivos, deixando-a desnorteada e
vazia, sem um sentido claro sobre a existência e sua continuação. A cabeça
roda, tudo parece perdido, mas surge a grande chance de reeguer-se, quando
encontra por acaso numa festa um pretendente bonitão (Peter Sarsgaard), viúvo
rico e com um projeto político para o futuro bem definido, quer fazê-la
primeira-dama. A protagonista atrapalha-se ao falsear a identidade e se faz
passar por uma designer de interiores. O mundo cai novamente na sua cabeça,
diante de um encontro inusitado.
A mentira pune e
não tem perdão na visão de Allen, assim como a frivolidade presente a faz
voltar às ruas perambulando, numa construção psicológica que retrata a
bancarrota humana depreendida. Jasmine nunca perde sua pompa aristocrática,
interpretada com elegância e verve dramática por Blanchett, numa imagem que
retrata o orgulho ferido e o preconceito à irmã simplória e seu namorado bronco
Chilli (Bobby Cannavale), embora infamemente estereotipado, é um rapaz
apaixonado com pouca cultura, às vezes violento, quando se sente menosprezado.
Na sua trajetória pelo recomeço, passa por um consultório dentário, onde é
recepcionista de Flicker (Michael Stuhlbarg) numa situação constrangedora de
assédio.
Allen nunca negou sua influência pelo cineasta da alma
Ingmar Bergman, como em Setembro
(1987) e Interiores (1978), tendo por
característica quase sempre mergulhar no interior humano na busca obsessiva das
neuroses presentes em seus personagens, dando soluções nada pragmáticas. Blue Jasmine aborda as consequências de
uma realidade num mundo de vaidades pelos desatinos de verdades ignoradas. O
cineasta enfoca as demasiadas preocupações de como as pessoas veem os outros,
como metáfora da cegueira de suas vidas alimentadas ilusoriamente por sentimentos
frívolos de uma sociedade elitista esfarelada e corrompida por futilidades e
desmandos. Os flashbacks são colocados como referência para o presente e
estimulam o espectador a acompanhar os desdobramentos e avanços da narrativa no
inteligente roteiro, como pedras no tabuleiro de um jogo de xadrez, deixando a
dor provocada pela angústia ganhar força e tornar-se consistente nesta bela
comédia dramática sobre os desajustes familiares e seus vínculos destroçados
por diferenças sociais e culturais expressas entre as irmãs.
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