As Irmãs
Karim Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as
perdas, a opressão feminina, o abandono e os encontros inusitados. Estas
temáticas são encontradas no bom e dinâmico Madame
Satã (2001); no excelente O Céu de
Suely (2006), alcança seu apogeu e brilha com o drama sobre a classe pobre
brasileira, na qual a protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir
dinheiro suficiente e comprar passagens de ônibus, ir para bem longe e iniciar uma
nova vida com seu filho; em codireção com Marcelo Gomes realizou o
controvertido Viajo Porque Preciso, Volto
Porque Te Amo (2009), em que o foco está na saudade da esposa e da família deixada
para trás; em O Abismo Prateado
(2011), há a criatura abandonada e a epopeia para encontrar o caminho de volta
para a lucidez, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo
inexplicável com o rompimento do vínculo do amor; já no magnífico Praia do Futuro (2014), é o olhar com
maturidade sobre a relação homoafetiva pelo vínculo amoroso estabelecido entre um
salva-vidas com um turista alemão, em uma estrutura impecável e sem
superficialidades, diante de lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um fascinante
resultado inspirado no cinema de Rainer Werner Fassbinder, como o próprio
diretor assumiu ser um admirador de suas obras.
Vencedor na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes
deste ano e indicado para representar o Brasil no Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro de 2020, superando o cultuado Bacurau
(2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, A Vida Invisível, último longa-metragem de Aïnouz, é um melodrama
familiar pujante na sua essência. Foi adaptado do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da autora pernambucana Martha
Batalha, tendo como cenário o Rio de Janeiro, dos anos de 1950 até os dias
atuais. As protagonistas são as irmãs inseparáveis Eurídice (Carol Duarte), uma
jovem pianista talentosa, de 18 anos, mas muito introvertida e reprimida
sexualmente, que tem como referência e projeção Guida (Julia Stockler), de 20
anos, a irmã mais velha, o oposto dela, por ter um temperamento extrovertido e
com uma mente mais aberta. Ambas vivem em um rígido regime patriarcal de
educação atrelada ao moralismo exacerbado dos ditos bons costumes, em que o pai
(António Fonseca) não tolera a desobediência e a liberdade buscada pelas
filhas. Diante do impasse conservador determinante, irão trilhar dois destinos
diferentes por caminhos inimagináveis que abalarão seus futuros para sempre.
Guida foge de casa com o namorado, um marinheiro grego, em busca da felicidade;
enquanto isto Eurídice se esforça para tornar-se uma renomada pianista, viajar
para a Áustria, e fazer testes em um famoso conservatório. Casa-se de maneira
abrupta com um homem tosco e ciumento (Gregório Duvivier), com o objetivo de
realizar seu sonho e ser afortunada na música.
O realizador lança tintas fortes e dá uma virada no dinâmico
roteiro escrito por ele em parceria com Murilo Hauser e Inés Bortagaray. O casamento
sem amor e a insistência do marido em ter filhos de imediato, o que poderia
atrapalhar a carreira de Eurídice na maternidade não planejada, e com a volta
iminente ao Rio, são ingredientes novos mesclados com o retorno repentino de
Gilda para casa, um ano depois, grávida e decepcionada com o namorado. Sem a
compreensão do austero pai e com a subserviência da mãe, a filha mais velha irá
acabar numa espécie de albergue comunitário, em que a responsável cuida das
crianças para que as mães trabalhem. O filme é conduzido com rara sensibilidade
e sutileza na construção de uma trajetória melancólica dos destinos inversos
traçados pela intolerância paterna, com resultados nefastos e devastadores naquele
microcosmo familiar dilacerado por caprichos hostis arraigados nos ditames
truculentos de uma época de costumes machistas, ainda remanescentes nos dias de
hoje, embora em grau um pouco menor. Há uma exposição de fragilidades das irmãs
vitimadas pelos absurdos advindos de hábitos antiquados em que as duas tentam se
reencontrar. São as tentativas de uma procura inglória e devastadora. Mas as
cartas escritas que nunca chegaram à destinatária trarão novas luzes como um
sopro de resgate pela dignidade quando reveladas de maneira nada convencional
no desfecho emocional. Para isto haverá a aparição na soberba interpretação de
Fernanda Montenegro, no papel de uma das irmãs envelhecida, mesmo que por
poucos minutos, iluminará a telona.
O resgate da liberdade alcançado por uma das personagens,
depois de anos bem distantes da juventude, instiga a manutenção ainda vigente
daquele vínculo inseparável entre elas. Distante do meio conservador e repressor
da origem dos conflitos, há revelações perturbadoras sobre a mulher humilde que
acolheu Lídia e a amparou com dignidade, compaixão e sem censura nos tristes
episódios que se sucederam e colocaram em xeque toda uma situação anômala do reacionarismo.
Foi a forma de emancipar-se das amarras do passado e seus fantasmas, ainda que
corresse os riscos inerentes na saga da estranha trajetória até o esquecimento
e do abandono familiar. As mortes reveladas no epílogo surgem como as tristes perdas
existentes, um tema recorrente na filmografia do cineasta com seus personagens revestidos
de grande humanismo como elementos essenciais, apresentando suas dores, medos e
ansiedades. Numa marcante imagem de uma tomada estupenda no prólogo se decifra
no desfecho a aniquiladora solidão mesclada com a busca da independência presente
somando-se às dores pretéritas que ficaram para trás, registradas pela linda
fotografia da francesa Hélène Louvart e ao som da significativa trilha sonora do
alemão Benedikt Schiefer.
A reflexão passa também pelo destemor e fragilidades das
irmãs com a clarividência do propósito no futuro como ingredientes de subsídios
para a iniciativa da dura realidade autônoma, após os transtornos dos percalços
oferecidos pelo destino. As perdas são reflexos de um contexto de diferenças,
mas que vão se encaixar e tornar uma relação madura e consistente, já com a
presença de uma das personagens como símbolo do passado na ausência transformadora
da rotina. São causas e contrastes por extensão, após o baque pessoal de uma falsa
notícia da morte da desaparecida. O tempo dá um salto para uma outra realidade,
com a sugestão da emoção motivadora da existência, diante da sensação de vazio e
isolamento. Eis uma abordagem marcante e intensa com uma atmosfera singular
sobre a natureza do universo feminino e sua luta diária no meio machista, num
retrato sobre a gravidez não programada, a prostituição como sobrevivência, faz
com que o drama tome contornos impactantes para um desfecho duro e amargo. A Vida Invisível é o filme mais profundo,
equilibrado e abrangente de Aïnouz.
Por ser complexo e eloquente na meditação sobre o conservadorismo familiar, o
castramento da liberdade individual pela opressão, o estupro conjugal como
forma de propriedade do corpo da mulher pelo marido e a procriação como
elemento fim, sufocante e angustiante em sua plenitude, torna-se a obra-prima
do diretor.