quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A Odisseia dos Tontos




Vingança pela Dignidade

Vem da Argentina em coprodução com a Espanha esta badalada comédia A Odisseia dos Tontos. Dirigida com bom humor e algumas sutilezas por Sebastián Borensztein, em seu quinto longa-metragem, que tem em sua filmografia os poucos expressivos La Suerte Está Echada (2005) e Sin Memoria (2010), e o surpreendente Koblic (2016), sobre um oficial da Aeronáutica contrário aos meios violentos para eliminar os opositores. O cineasta ficou conhecido com o retumbante sucesso Um Conto Chinês (2011), com uma temática aparentemente simples, mas enganosa no aprofundamento da mesma, pois fazia lembrar um rendoso blockbuster. Não era e estava longe de ser um produto apenas comercial, embora tenha levado em seu país mais de um milhão de espectadores ao cinema. O enredo tinha uma situação inusitada como a noiva morta por uma vaca que caiu na sua cabeça, dentro de um barco num bucólico rio na China, no exato momento do noivado, antes mesmo de colocar as alianças, numa cena tragicômica. Havia o veterano da guerra das Malvinas, que vivia do comércio de ferragens em Buenos Aires, um tipo estranho que contava todos os parafusos nas caixas ao receber do fornecedor e brigava com eles pela falta de produtos exatos. Um sujeito extremamente metódico que apagava a luz no rádio-relógio minuciosamente sempre às 23h, recortava notícias bizarras dos jornais de todo o mundo e não era nada cortês com os clientes.

Agora em seu último filme, em parceria com Eduardo Sacheri, o realizador escreveu o roteiro baseado em um livro sobre a grave crise econômica de 2001, em que o governo da época congelou as contas bancárias de toda a população diante dos desafios no mercado global, liberando míseros saques semanais, sendo denominado de Corralito, possivelmente influenciado no confisco da poupança e conta corrente dos brasileiros ocorrido em 1990, no governo do presidente Fernando Collor de Mello e sua equipe chefiada pela ministra da Economia, Zélia Cardoso. Com alguma inspiração é criada uma instigante comédia dramática de costumes que transita para a fábula adulta até chegar ao desfecho com uma desnecessária sugestão de autoajuda, flutuando por uma irreverência com alguma grosseria, para sintetizar os dramas advindos da desforra dos desvalidos para com os usurpadores naquela distante província de Buenos Aires aparentemente pacata. A trama gira em torno de um grupo de moradores que decide reunir uma vultosa quantia de dólares para comprar um armazém falido de grãos abandonado em uma propriedade agroindustrial. Porém, antes de poderem colocar em prática o audacioso projeto de uma cooperativa, um golpe orquestrado por um gerente de banco com um advogado faz com que eles percam todo o dinheiro juntado com dificuldade e esforço descomunal.

Um plano é montado com ardil para que a justiça seja feita a qualquer preço e que irá se evidenciar na cena final. Foram focados todos os planos e sonhos obstruídos e sepultados pelos acontecimentos do impacto causado em cada indivíduo com o libertador estopim pela narrativa humorada. Os desdobramentos se sucedem pelo fio condutor do personagem principal, Fermín (Ricardo Darín), um ex-jogador de futebol argentino famoso com sua esposa, Lidia (Verónica Llinás) e o filho do casal, Rodrigo (Chino Darín- contracenando com o pai pela primeira vez). Juntam-se a eles: o borracheiro Antônio (Luis Brandoni), o comerciante Belaúnde (Daniel Aráoz), o ex-soldado Medina (Carlos Belloso) que lutou na guerra das Malvinas, e a viúva Carmen (Rita Cortese). O alvo do grupo indignado e solidário é o esperto advogado ricaço Fortunato (Andrés Parra), que em conluio com o gerente da instituição financeira deu o golpe milionário e enterrou toda a fortuna num blindado cofre subterrâneo em uma fazenda de sua propriedade. Estão presentes no conflito para uma reflexão os dignos valores dados às vidas e a solidariedade nas amizades, exaltando-se com empatia a ética e a antiética num paradoxo dos princípios morais corrompidos em meio a uma crise socioeconômica.

O longa retrata a burocracia na polícia e o jeitinho fraudulento para trapacear, na cena proposta em que o banqueiro e o advogado levam vantagem. O impasse da derrota logo dará lugar para a frustrada situação em que a retaliação para defender o patrimônio roubado irá prevalecer com a investida intensa dos oprimidos aos opressores para restabelecer a busca da dignidade do roubo oficializado como visto na típica comédia de humor negro Relatos Selvagens (2014), de Damián Szifron, com mais de 2,8 milhões de espectadores na Argentina, bem como nos magníficos O Segredo dos Seus Olhos (2009), de Juan José Campanella e em Abutres (2010), de Pablo Trapero, onde a corrupção e os desatinos da justiça andam de mãos dadas, em um brutal atentado aos direitos humanos. Também no mais recente sucesso brasileiro Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, há a resistência e a agressão das famílias acuadas pela invasão de alienígenas em seu território invadido e dilapidado, na qual a situação sociopolítica está presente de maneira metafórica, como na invasão dos colonizadores norte-americanos em sintonia com péssimos políticos tupiniquins travestidos de defensores do povo. Tanto em Bacurau como em A Odisseia dos Tontos os diretores habilmente colocam o simbolismo da classe oprimida contra a classe dominante, em que a vingança é o elemento preponderante para afastar ou dar um basta aos usurpadores. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com méritos esta emblemática realização sobre a injustiça pela justiça da redenção através da fantasiosa missão pela recuperação do dinheiro roubado.

Em seu filme anterior, Borensztein não perdoava o recente passado de seu povo, como a infausta batalha das Malvinas, ao fazer alusão da vaca em queda livre com o discurso de um dirigente russo, com um fato pitoresco igual, que poderia ser a verdadeira causa do absurdo que se torna real nos confrontos entre os homens, da inverossimilhança de Kafka para a realidade que bate à porta do protagonista, vindo do Oriente para o Ocidente. Em A Odisseia dos Tontos, está esboçada a magia que prevalece e dita os rumos que são destinados aos personagens vingadores e vingados. Descarta as muitas obviedades e tempera a solidariedade encontrada na dor pela perda dos dólares com a doçura do riso de um povo que caçoa a si mesmo, tornando palatável e deliciosa esta boa comédia de costumes com abordagens bem fundamentadas. No momento em que a estima é cutucada em alta dosagem, logo os valores se abastardam e destroem a harmonia com o vínculo existente da civilização, passa para a selvageria desenfreada que choca a criação equilibrada e a lucidez se esvai de forma definitiva e eloquente num clímax arrebatador pela maturidade estética do bom cinema. Eis uma prazerosa reflexão sobre os desiguais seres humanos que chegam aos seus destinos e encontram seus vínculos fraternos, sem desprezar a mordaz ironia da crítica social como reflexo deste hospício chamado mundo. Com bons elogios da crítica, é o postulante da Argentina indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2020.

Um comentário:

André disse...

Excelente visão do filme.