terça-feira, 26 de novembro de 2019

A Vida Invisível



As Irmãs

Karim Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as perdas, a opressão feminina, o abandono e os encontros inusitados. Estas temáticas são encontradas no bom e dinâmico Madame Satã (2001); no excelente O Céu de Suely (2006), alcança seu apogeu e brilha com o drama sobre a classe pobre brasileira, na qual a protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro suficiente e comprar passagens de ônibus, ir para bem longe e iniciar uma nova vida com seu filho; em codireção com Marcelo Gomes realizou o controvertido Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), em que o foco está na saudade da esposa e da família deixada para trás; em O Abismo Prateado (2011), há a criatura abandonada e a epopeia para encontrar o caminho de volta para a lucidez, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo inexplicável com o rompimento do vínculo do amor; já no magnífico Praia do Futuro (2014), é o olhar com maturidade sobre a relação homoafetiva pelo vínculo amoroso estabelecido entre um salva-vidas com um turista alemão, em uma estrutura impecável e sem superficialidades, diante de lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um fascinante resultado inspirado no cinema de Rainer Werner Fassbinder, como o próprio diretor assumiu ser um admirador de suas obras.

Vencedor na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes deste ano e indicado para representar o Brasil no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2020, superando o cultuado Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, A Vida Invisível, último longa-metragem de Aïnouz, é um melodrama familiar pujante na sua essência. Foi adaptado do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da autora pernambucana Martha Batalha, tendo como cenário o Rio de Janeiro, dos anos de 1950 até os dias atuais. As protagonistas são as irmãs inseparáveis Eurídice (Carol Duarte), uma jovem pianista talentosa, de 18 anos, mas muito introvertida e reprimida sexualmente, que tem como referência e projeção Guida (Julia Stockler), de 20 anos, a irmã mais velha, o oposto dela, por ter um temperamento extrovertido e com uma mente mais aberta. Ambas vivem em um rígido regime patriarcal de educação atrelada ao moralismo exacerbado dos ditos bons costumes, em que o pai (António Fonseca) não tolera a desobediência e a liberdade buscada pelas filhas. Diante do impasse conservador determinante, irão trilhar dois destinos diferentes por caminhos inimagináveis que abalarão seus futuros para sempre. Guida foge de casa com o namorado, um marinheiro grego, em busca da felicidade; enquanto isto Eurídice se esforça para tornar-se uma renomada pianista, viajar para a Áustria, e fazer testes em um famoso conservatório. Casa-se de maneira abrupta com um homem tosco e ciumento (Gregório Duvivier), com o objetivo de realizar seu sonho e ser afortunada na música.

O realizador lança tintas fortes e dá uma virada no dinâmico roteiro escrito por ele em parceria com Murilo Hauser e Inés Bortagaray. O casamento sem amor e a insistência do marido em ter filhos de imediato, o que poderia atrapalhar a carreira de Eurídice na maternidade não planejada, e com a volta iminente ao Rio, são ingredientes novos mesclados com o retorno repentino de Gilda para casa, um ano depois, grávida e decepcionada com o namorado. Sem a compreensão do austero pai e com a subserviência da mãe, a filha mais velha irá acabar numa espécie de albergue comunitário, em que a responsável cuida das crianças para que as mães trabalhem. O filme é conduzido com rara sensibilidade e sutileza na construção de uma trajetória melancólica dos destinos inversos traçados pela intolerância paterna, com resultados nefastos e devastadores naquele microcosmo familiar dilacerado por caprichos hostis arraigados nos ditames truculentos de uma época de costumes machistas, ainda remanescentes nos dias de hoje, embora em grau um pouco menor. Há uma exposição de fragilidades das irmãs vitimadas pelos absurdos advindos de hábitos antiquados em que as duas tentam se reencontrar. São as tentativas de uma procura inglória e devastadora. Mas as cartas escritas que nunca chegaram à destinatária trarão novas luzes como um sopro de resgate pela dignidade quando reveladas de maneira nada convencional no desfecho emocional. Para isto haverá a aparição na soberba interpretação de Fernanda Montenegro, no papel de uma das irmãs envelhecida, mesmo que por poucos minutos, iluminará a telona.

O resgate da liberdade alcançado por uma das personagens, depois de anos bem distantes da juventude, instiga a manutenção ainda vigente daquele vínculo inseparável entre elas. Distante do meio conservador e repressor da origem dos conflitos, há revelações perturbadoras sobre a mulher humilde que acolheu Lídia e a amparou com dignidade, compaixão e sem censura nos tristes episódios que se sucederam e colocaram em xeque toda uma situação anômala do reacionarismo. Foi a forma de emancipar-se das amarras do passado e seus fantasmas, ainda que corresse os riscos inerentes na saga da estranha trajetória até o esquecimento e do abandono familiar. As mortes reveladas no epílogo surgem como as tristes perdas existentes, um tema recorrente na filmografia do cineasta com seus personagens revestidos de grande humanismo como elementos essenciais, apresentando suas dores, medos e ansiedades. Numa marcante imagem de uma tomada estupenda no prólogo se decifra no desfecho a aniquiladora solidão mesclada com a busca da independência presente somando-se às dores pretéritas que ficaram para trás, registradas pela linda fotografia da francesa Hélène Louvart e ao som da significativa trilha sonora do alemão Benedikt Schiefer.

A reflexão passa também pelo destemor e fragilidades das irmãs com a clarividência do propósito no futuro como ingredientes de subsídios para a iniciativa da dura realidade autônoma, após os transtornos dos percalços oferecidos pelo destino. As perdas são reflexos de um contexto de diferenças, mas que vão se encaixar e tornar uma relação madura e consistente, já com a presença de uma das personagens como símbolo do passado na ausência transformadora da rotina. São causas e contrastes por extensão, após o baque pessoal de uma falsa notícia da morte da desaparecida. O tempo dá um salto para uma outra realidade, com a sugestão da emoção motivadora da existência, diante da sensação de vazio e isolamento. Eis uma abordagem marcante e intensa com uma atmosfera singular sobre a natureza do universo feminino e sua luta diária no meio machista, num retrato sobre a gravidez não programada, a prostituição como sobrevivência, faz com que o drama tome contornos impactantes para um desfecho duro e amargo. A Vida Invisível é o filme mais profundo, equilibrado e abrangente de Aïnouz. Por ser complexo e eloquente na meditação sobre o conservadorismo familiar, o castramento da liberdade individual pela opressão, o estupro conjugal como forma de propriedade do corpo da mulher pelo marido e a procriação como elemento fim, sufocante e angustiante em sua plenitude, torna-se a obra-prima do diretor.

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