quarta-feira, 26 de julho de 2017

De Canção em Canção


Sussurros e Contemplações

Terrence Malick tem por formação a filosofia e é chamado de cineasta bissexto e ermitão. Levava uma vida enclausurada e não é de dar entrevistas, raramente é fotografado e passava anos sem filmar. Perfeccionista em seu trabalho, é conhecido por rodar centenas de negativos e usa seu tempo burilando material para editar uma obra. Realizou em 2011 o fabuloso A Árvore da Vida, que lhe deu a Palma de Ouro em Cannes. Porém, ultimamente, não está deixando passar muito tempo para lançar um novo longa e já é visto em público, abandonando gradativamente a clausura. Em forma de continuidade realizou Amor Pleno (2012), filosofando sobre o amor e as paixões desencontradas, o vazio existencial e a busca pelo imaginário da completude da vida. Se no drama transcendental anterior falava sobre a ausência de Deus, interligando religião com a perda de um dos três filhos, questionando a opressão do pai, no filme subsequente reverteu a situação e fez uma verdadeira ode a Cristo pelos ensinamentos de uma padre exilado que lutava arduamente com os desígnios da vocação. Em 2015, filmou Cavaleiro de Copas, tão irregular como o antecessor, ambas as produções descartáveis.

De Canção em Canção é seu oitavo longa-metragem, uma obra com uma trama novamente experimental sobre o nada e o tudo, ou o nada sobre o nada, recheado de traições, culpas, ressentimentos e retornos às mancheias, num enredo pouco convencional que prima pela inconstância e uma indefinição estéril. O roteiro é de idas e vindas, sussurros do início ao fim, com palavras e juras de amor brotando e se dispersando com o andar da história. A abusiva narrativa em off com diálogos repletos de lugares-comuns é debilitada e logo se esvai num cenário de personagens que flutuam como zumbis à procura de algo sem muita clarividência, em que as evasivas estão preponderantes e transbordam sobre a consistência cinematográfica de uma realidade objetiva. Tanto na forma como no conteúdo há o empirismo estético e recorrente de figuras humanas flanando de um lado para outro, sem se encontrar com o que querem ou nem sabem o que procuram. Descontextualizado e solto para manejar em off com som, imagem e música, resultando numa miscelânea desastrosa de montagem que sucumbe. Faltou clímax para a realização de Malick, que se passa nos bastidores de um efervescente festival de rock e suas tendências musicais em Austin, no Texas.

O enredo foca em dois casais: os compositores Faye (Rooney Mara) e BV (Ryan Gosling), o magnata da música (Michael Fassbender) com a sonhadora garçonete Rhonda (Natalie Portman). Eles perseguem o sucesso através de um cenário de rock and roll, sedução, decepções, flertes, sexo e drogas. Os personagens se encontram e trocam de parceiros em relações livres e bissexuais numa ampla cobertura com uma bela paisagem, mas sem a essência do cinema, através de uma explanação pulverizada que carrega no artificialismo, sem vínculo com uma existência distante e completamente vazia. Interagem com seus ídolos John Lydon, Red Hot Chili Peppers, Florence Welch e Pati Smith. Tudo é falso, nada é verdadeiro. Desfilam colagens de imagens numa fotografia esplendorosa em contraluz, o corte seco num enquadramento enviesado de rios, pássaros, um céu carregado com contrastes, um templo religioso, uma lanchonete, e por aí vai. Uma pretensa ousadia, mas sem densidade dramatúrgica no contexto das cenas que se tornam áridas por ausência rítmica de elaboração plausível.

De Canção em Canção está mais próximo de Amor Pleno, do que de A Árvore da Vida, completamente distanciado dos inesquecíveis Terra de Ninguém (1973) e Cinzas no Paraíso (1978), e do extraordinário drama de guerra Além da Linha Vermelha (1998), que realizou vinte anos depois do último sucesso cultuado, retornando em 2005 com O Novo Mundo. Malick, aos 73 anos, parece ter perdido o gosto de escrever seus roteiros e filmar. Dá sinais evidentes de cansaço e está cada vez mais indolente, como demonstra nas suas três últimas realizações tediosas. São filmes com roteiros soltos embevecidos de devaneios enfadonhos que logo cairão no esquecimento. Abusa do experimentalismo e da repetitiva contemplação, um método perigoso que acaba se tornando obsoleto.

Da trilha sideral, nem o blues Rollin’ and Tumblin, tantas vezes regravado, desta vez por Bob Dylan, salva o prolixo longa da mesmice, que tem um elenco recheado de estrelas, além dos personagens principais, os coadjuvantes têm nomes conhecidos como Holly Hunter, Cate Blanchett, Bérénice Marlohe e Val Kilmer, que não conseguem dar equilíbrio e sustentar, soçobra por falta de uma direção que se mostra frouxa. Sobra pouco, ou quase nada deste drama que tinha tudo para arrebatar, mas pelo contrário, faz as salas perderem boa parte dos espectadores antes do epílogo previsível, de pouca lucidez, que prega um moralismo barato: para ser feliz tem que ter uma vida simples. É o tédio fastidioso que danifica a ideia da continuidade, causando bocejos, diante do excessivo esvaziamento da proposta. Parece ser o crepúsculo de um notável diretor que perdeu a inspiração, embora tenha inegável talento já demonstrado em sua apreciada filmografia pungente. Talvez um período sabático lhe fizesse bem para um novo ciclo de fertilidade.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Frantz


O Perdão

O prolífico cineasta francês François Ozon, nome constante em festivais como Cannes e Berlim nos últimos anos, está de volta com Frantz, uma adaptação livre da peça escrita por Maurice Rostand, que já havia sido adaptada para o cinema por Ernst Lubitsch em Não Matarás (1932). Um dos filmes mais badalados no último Festival Varilux, com sucesso de público e visto com entusiasmo pela crítica internacional. O drama histórico recebeu onze indicações ao Prêmio César, o Oscar da França, abocanhando a láurea de melhor fotografia que oscila do preto e branco nos momentos de tristeza para o colorido que pressupõe a esperança fugaz, sem a pretensão estilística, mas como um ingrediente eficiente da narrativa, e ainda agraciou com o prêmio de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a bela Paula Beer, pelo seu desempenho irretocável no papel principal como Anna.

Depois dos longas O Refúgio (2009), Potiche-Esposa Troféu (2010), Dentro de Casa (2012) e Jovem e Bela (2013), o diretor constrói um painel contundente ambientado numa pequena cidade alemã, em 1919, após a desastrada Primeira Guerra Mundial, na qual a protagonista chora constantemente no túmulo de seu noivo alemão- que empresta o nome ao título da realização-, morto em uma batalha na França. Porém, num dia qualquer, encontra Adrien (Pierre Niney- magnífica interpretação), um rapaz francês que foi soldado e lutou pelo seu país, que por ironia ou compaixão, também leva flores no jazigo do suposto amigo que teria conhecido em Paris, logo após o revés da Alemanha no conflito bélico, causando repulsa e inflamando ressentimentos hostis da população dos derrotados.

Frantz acompanha e retrata com sutileza a aproximação do misterioso forasteiro e da moça condoída. Ambos sofrem pela perda da mesma pessoa, por situações diferentes e adversas, que se conhecem por acaso no cemitério e iniciam uma busca do passado e seus enigmas ocultos que aos poucos se decifram. O pai da vítima resiste em receber em sua casa um inimigo francês, mas a mãe vê com bons olhos a amizade com alguém que teria convivido com seu filho antes de sua morte trágica. Anna, que reside no mesmo teto com o sogro e a sogra, uma espécie de filha adotada por eles, faz a interação dolorida e tenta conciliar as mentiras e omitir a verdade por ser dura demais para todos. É o desencanto de uma geração que perdeu a juventude nos campos ensanguentados da guerra sem limites, alimentados pelos pais dos jovens que os incentivam e os mandam para morrer no front de forma brutal em nome da pátria, como na comovente cena do bar em que tomam cerveja e lastimam o revés, mas há o protesto como um desabafo angustiado do pai que deixa a pergunta no ar para a reflexão sobre as perdas de seus filhos, num questionamento legítimo e lúcido: Quem são os verdadeiros responsáveis?

Um drama que conta a história dura e cruel sobre a culpa e a busca do perdão dos resquícios logo após a guerra, em que dois países europeus se envolveram e perderam muitos compatriotas pela truculência exacerbada de bestiais interesses econômicos e políticos. Os momentos de prazer e alegria que teriam passado os amigos estão pontilhados em ficções como os passeios turísticos pelo Museu do Louvre e a fixação pelo quadro O Suicida (1880), de Édouard Manet. O encantamento dos pais de Frantz com o amigo estrangeiro desemboca na volta da alegria de viver, construído num imagninário falso de fantasias alegóricas como areias movediças para o esperado perdão de um segredo inimaginável. São situações criadas com esmero pelo diretor na sua versatilidade temática e o aprofundamento de questões instigantes numa trama bem urdida sobre as cinzas que pairam da loucura dos conflitos interpessoais coletivos.

Ozon se utiliza muito bem dos recursos para elaborar um cenário convincente da época em Frantz, como o trem cortando as estradas e seu uivo estridente como um silvo agudo de um animal angustiado que traz para os passageiros a melancolia e a agonia da ausência dos entes queridos próximos, simbolizado no olhar atônito e de tristeza da personagem central em sua viagem em busca da verdade e das revelações que lhe aguardam na aristocrática família francesa, bem como as causas e efeitos que proliferam para o remorso que acompanha o ex-soldado. Não há vítimas e nem algozes, todos são culpados e responsáveis pela chacina dos mortos numa guerra irracional. Um filme dilacerante e imparcial pelo olhar comovente deste realizador surpreendente em seus desenlaces para um reflexivo e perturbador desfecho de muito humanismo durante o luto familiar, os traumas decorrentes, e suas alternâncias com a dignidade questionada como um fardo insustentável e pesado que tomam dimensões estratosféricas.