segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Marighella

Resistência à Ditadura

Com um viés sombrio do destino pelas fragilidades democráticas que cercam o Brasil, o filme Marighella chegou aos cinemas 52 anos após o assassinato do revolucionário baiano, neto de escravos, para abordar as violentas ações e reações durante a ditadura militar imposta em 1964. A estreia se dá dois anos após sua previsão inicial e quase quatro anos depois de concluído, por entraves burocráticos de liberação de recursos junto à ANCINE para distribuição, que soaram como boicote e censura prévia. Propõe um amplo debate sobre as liberdades cerceadas durante o famigerado período dos anos de chumbo. Carlos Marighella (Seu Jorge- de impecável atuação pelo domínio de postura e imposição correta de sua voz potente) era poeta, escritor e deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro, cofundador da Aliança Libertadora Nacional, em 1967, um dos principais grupos de resistência que praticava oposição armada ao regime. Foi considerado pelo governo autoritário da época como o inimigo número 1 do país. Retrata entre tantas tropelias um grande assalto em um trem na cidade de São Paulo, em 1968, para obter um forte carregamento de armas, além da prática de assaltos a bancos para saldar os custos financeiros inerentes e viver na clandestinidade.

O ator Wagner Moura, celebrizado no papel do Capitão Nascimento, nos filmes Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 (2010), de José Padilha, faz sua estreia como diretor e mostra alguns méritos por trás das câmeras, como escalar um bom elenco, câmera na mão trêmula em momentos tensos com aproximação em plano fechado dos personagens onde se percebe até a respiração, ao melhor estilo de Padilha, planos-sequência de tirar o fôlego, silêncio e olhares tensos em outras cenas bem conduzidas, além das imagens moderadas de torturas nos calabouços. Comete alguns excessos, como a espetacularização de tiros em demasia, como nos velhos faroestes onde as balas não acabam nunca, além de uma tênue glamourização do biografado. Com um roteiro instigante assinado por Moura e Felipe Braga, o filme foi baseado no livro Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, do jornalista Mário Magalhães, concentrou o enredo entre os anos de 1964 a 1969, ao som da canção de protesto Pequena Memória para um Tempo Sem Memória, do inesquecível Gonzaguinha, mesclada em outras cenas com versos da música Monólogo ao Pé do Ouvido, de Chico Science e Nação Zumbi, na qual são lançadas odes a Zapata, Zumbi, Antônio Conselheiro e Sandino, bem como outras canções nacionais, em versões hip hop, para comentar a miséria.

As atrocidades da luta armada são marcantes na trama, de ambas as partes, com o foco de alertar o espectador, principalmente os jovens que não viveram aquele período de exceção, e o futuro incerto de todos carregados pela intolerância política de tempos nebulosos, ao colocar em lados opostos membros da família brasileira, contrapondo ativistas de esquerda e os relatos sinceros e destemidos sobre os rachas existentes no âmbito da própria organização, com a direita e seus defensores ferozes de um regime autocrático. Esta cinebiografia que deriva para a ação e o suspense sobre a história de um ativista que se intitula um herói, ou anti-herói, do patriota que diz amar sua nação. “Um homem que não teve tempo para ter medo”, como ele mesmo assevera, ou ao responder “eu sou brasileiro”, do questionamento de um jornalista francês sobre seu perfil de inspiração, se ele era maoísta, trotskista ou leninista.

A truculência era uma marca recorrente dos que defendiam o regime, como por exemplo, a inserção de um manifesto no rádio com a conivência de seu responsável (Herson Capri) que irá causar repulsa nas forças governistas, onde o delegado Luciano (Bruno Gagliasso- pífia atuação num papel caricato e sem autenticidade, afundou no estereótipo), numa reedição baseada no frio e temido delegado Fleury do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), que liderou a caçada aos opositores e irá partir para uma ofensiva sem limites com imagens reveladoras para provocar a plateia sobre os acontecimentos históricos que ficaram catalogados naquele ciclo discricionário. Seus alvos são, além de Marighella, Branco que foi inspirado em Joaquim Câmara Ferreira, conhecido como o Comandante Toledo (Luiz Carlos Vasconcelos- excelente interpretação), também os jovens guerrilheiros Bella (Bella Camero), Humberto (Humberto Carrão), Jorge (Jorge Paz), Frei Henrique (Henrique Vieira), além de investigar o garoto Carlinhos, filho do protagonista que reside na Bahia.

Embora tenha uma linha própria em sua estética, há similitude em conteúdo e proposta com as ousadas  minisséries Anos Durados (1986) e Anos Rebeldes (1992), ambas do novelista Gilberto Braga, e com o extraordinário longa-metragem Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias. O sequestro do embaixador dos EUA também foi enfatizado no filme O Que É Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, baseado no livro homônimo do jornalista Fernando Gabeira, que mostra a luta armada contra a ditadura militar no final da década de 60, após a publicação do AI-5. O cenário criado é fiel à época com os antigos carros Fuscas e Vemaguetes, para uma narrativa em tom intenso, seco e direto com as artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das angústias políticas de dúvidas e aflições constantes. Há tensão entre polícia e revolucionários, o amor fraternal entre o protagonista e seu filho no mar em um dos raros momentos de sensibilidade que intercalam a efervescente situação para atingir o clímax, com cenas de construções de personagens fortes, mas psicologicamente abalados. Moura lança um olhar de preocupação com as iminentes vulnerabilidades de nosso sistema político corroído por um conservadorismo que pode desconstruir e levar ao retrocesso institucional, sem cair no maniqueísmo contumaz de algumas realizações pouco consistentes

Marighella é uma realização que contém densidade sobre um ciclo manchado de sangue por um sistema opressor, em que a reconstrução das vidas pela perda da própria identidade decorre do devastador estigma do nefando golpe que deixaram registradas as cicatrizes com suas profundas marcas duradouras, mencionadas no prólogo. Ainda que haja algumas derrapadas que beiram a patriotadas, como nos pós-créditos em que o Hino Nacional é cantado pelos personagens como uma desatinada louvação religiosa. O filme não é conclusivo sobre o biografado e os rumos que a política brasileira seguiu, mas há uma proposta ambiciosa sobre a engrenagem que envolve os meandros intrínsecos e extrínsecos, como a participação dos EUA em 1964, e o destino do Brasil como um Estado democrático. A abordagem pontua as dúvidas preocupantes que rondam este painel difuso na sua essência. Sem ser folhetinesco como apregoa a parcela conservadora, embora haja a identificação pelo engajamento do realizador, é um relato significativo e relevante por seu aspecto histórico de um convalescente regime vergado da democracia para o perigoso estado de exceção, sob o manto do autoritarismo do passado, para reflexão do presente, de uma nação debilitada institucionalmente.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Mostra de Cinema São Paulo (Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite)

Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite

Um filme que surpreendeu positivamente nesta on-line e presencial 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite, uma coprodução do Afeganistão com o Irã. A direção e o roteiro são de Ramin Rasouli, nascido em Herat, no Afeganistão, em 1978, fez carreira no Irã e hoje reside na Holanda. O cineasta tem em sua filmografia dez curtas-metragens e dois longas, tendo estreado com Lina, que entrou no circuito de festivais em 2017. Agora, em seu segundo longa-metragem, conta as histórias de uma jovem pastora, um menino caçador de pássaros que vive dentro de uma tanque de guerra sucateado e uma professora de luto pela perda do marido. O realizador cria um painel fascinante de três dramas pessoais decorrentes das atrocidades cometidas pelos talibãs ao assumir o governo após uma eleição suspeita.

A realização parece ter sido filmada em 2021, após a tomada do poder pelo Talibã depois da saída dos americanos, embora a produção seja do ano de 2020. O cenário é um deserto no interior do Afeganistão que apresenta carroças, fenos para os animais, burros, grutas e estradas poeirentas sob o comando do regime sanguinário ali instalado. O Talibã surgiu em setembro de 1994, no Candaar, como uma alternativa caracterizada pela predominância pachtun, grupo étnico majoritário no país e pelo rigor religioso extremo. Foi vendida à população uma falsa expectativa de que acabaria com o constante estado de guerra interno e com os abusos dos senhores belicistas pela ideologia fundamentalista. Na realidade, as mulheres perderam praticamente todos seus direitos, as crianças são impedidas de estudar e os direitos humanos ficaram cada vez mais minguados. Pela similitude, o notável filme A Caminho de Kandahar (2001), de Mohsen Makhmalbaf, já havia escancarado todas as mazelas implantadas pelo regime opressor do Talibã, assim como os rastros de destruição humanitária deixados por este governo corrupto, extremista, teocrático, islâmico e machista. Mostrava a violência deixada pelas cicatrizes em cenas marcantes na viagem de uma jornalista que precisava chegar à Kandahar para encontrar a irmã e impedir que ela se matasse. Cruel em todos os sentidos, mas com uma nesga de esperança na figura de um médico encontrado naquele trajeto coberto de oportunistas, com pessoas famintas, mutiladas física e emocionalmente, e mulheres infelizes sem identidade.

Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite faz um impressionante registro através de narrativas que se entrelaçam depois que uma escola local foi incendiada com crianças sendo queimadas pelos fundamentalistas, escapando apenas duas que carregam as marcas do passado. Uma delas está no início deste filme instigante na personagem da pastora que arrisca a pele para tentar salvar uma soldado norte-americana após um acidente de helicóptero, que confessa um hediondo crime de guerra, ou seja, o ataque a uma casa abandonada que matou mulheres e crianças por engano, sendo confundidas com guerrilheiros armados. O outro sobrevivente é um jovem caçador de pássaros que se abriga em um tanque de guerra estragado no meio do deserto. Ele vive ali com suas músicas proibidas de que tanto gosta, mas tem um plano de fazer funcionar aquele armamento importante. Conta com a troca mercantilista de armas para consertar o motor através de um mecânico que faz qualquer negócio para sobreviver. Em outra ponta da trama está uma professora viúva sedenta de vingança pelos responsáveis do regime que causaram a morte de seu marido. A surpresa virá no epílogo, quando irá se defrontar com o novo governador da região e um segredo irá ser descoberto com astúcia e uma boa ironia do destino.

Rasouli conduz com senso crítico apurado e uma correta imparcialidade este seu segundo longa-metragem recheado de reviravoltas. O enredo vai se dissipando com o desenrolar das histórias, e o condutor da carroça, uma espécie de Uber no deserto, terá sua identidade aos poucos dissipada ao fazer jogo duplo, não por mera opção, mas por medo e pavor dos soldados do governo vigente comandados pelos temidos talibãs que matam, executam e tocam fogo nas escolas para espalhar o medo. Um regime autoritário que coage sem dó e nem piedade no Afeganistão de ontem e de hoje. Eis um filme atualíssimo pelo exercício no presente que faz parte de uma mentalidade e suas tendências que por ora está em vigor. Não há mocinhos contra bandidos diante da nefasta interferência direta dos Estados Unidos, bem simbolizado pelo horror da guerra através da personagem resgatada do helicóptero, em que foi a única sobrevivente, na figura de testemunha confessa das atrocidades e o descaso com vidas humanas inocentes sumariamente executadas por erro grosseiro.

O drama não se presta para contar uma história, mas para entrelaçar três episódios contundentes e informativos como se percebe do seu desfecho. Serve como uma delação potente à situação caótica dos habitantes no Afeganistão com a forte devastação da população de trabalhadores desprotegidos. Um admirável e impactante filme a ser visto por todos que desejam compreender a história recente do Oriente Médio, com cenas de uma fascinante fotografia contrapondo com um cenário de assombrosa crueldade, na qual a dignidade se esvai em seres humanos sem alma, sem brilho e muitas vezes de anônimos. É contagiante na essência cinematográfica pela intensidade dos fatos intercalados que se sucedem numa atmosfera criada em torno de uma mentalidade de ideias e pensamentos sobre costumes ultrapassados. O espectador não fica alheio e é convidado de maneira sutil a lançar um olhar de repulsa pela boa narrativa dos personagens envolvidos nesta singular obra de uma temática sensível e humanitária. Um contexto de intolerância sobre o que é capaz de se fazer com um povo com seus problemas conjunturais do passado que refletem no presente e apontam para um futuro de poucas perspectivas aos não alinhados do aterrador regime sanguinário dos talibãs nesta aprofundada denúncia pelo cinema.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mostra de Cinema São Paulo (Ausência)

Ausência

Um dos filmes mais aguardados, mas que pouco correspondeu à grande expectativa depositada, é o discutível Ausência pelas suas incongruências, em exibição on-line e presencial na 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo, com direção e roteiro de Ali Mosaffa. O cineasta tem em sua filmografia três curtas e dois longas: Portrait of a Lady Faraway (2005) e O Último Passo (2012), que foi exibido na 36ª. Mostra de SP. Começou a carreira no cinema como ator, onde é bem melhor que dirigindo, no início dos anos 1990, destacando-se em filmes como Leila (1997), de Dariush Mehrjui, O Passado (2013), de Asghar Farhadi, Que Horas São no Seu Mundo? (2014), de Safi Yazdanian, e A Plantação de Laranjas (2018), de Arash Lahooti. A fotografia de Massoud Salami foi o ponto alto da obra, aos captar belas imagens em Praga com seus monumentos, estátuas, e um pitoresco cotidiano de seus habitantes, usos e costumes, remetendo para seu filho maior, o cultuado escritor Franz Kafka (03.07.1883/03.06.1924), que ali viveu e escreveu obras memoráveis.

Diante de todas as dificuldades de filmar no Irã, Mosaffa realizou este drama sociopolítico em coprodução com a República Tcheca e a Eslováquia, para abordar uma história aparentemente simples no seu desenrolar. Transita para o romance, especula no thriller policial e cutuca na política, mas fica distante da genuína essência cinematográfica do gênero enfocado. Rouzbeh (Ali Mosaffa- desta vez teve uma pálida interpretação) é um jornalista iraniano separado, que tem um filho pré-adolescente, viaja de Teerã até Praga, para desvendar o passado do pai em uma biografia que pretende escrever num livro. Sabe apenas que ele é um expatriado comunista que viveu na extinta Tchecoslováquia, logo após o Golpe de Estado no Irã, em 1953. A cena inicial mostra uma pessoa dando comida para os pombos numa janela que apresenta um perigo iminente de queda. O corte da cena é retomado com o protagonista no interior do apartamento onde o pai morou há 50 anos. O surgimento de uma investigadora da polícia destacada para acompanhar o caso do acidente, ou tentativa de suicídio, envolvendo um homem que vivia no mesmo local, que se chamava Vladimir, e teria desabado da mesma fatídica janela. No diálogo entre os dois, descobre que o pai da vítima também tinha origem iraniana e o mesmo nome do seu próprio genitor.

O longa-metragem retrata uma sequência de contradições e escolhas convencionais na trajetória amorosa e um vínculo estranho com uma outra personagem do suposto meio-irmão, fruto de uma relação extraconjugal do pai, que agora vive no seu país de origem com dificuldades de cognição. Não importa os rumos tomados da trama sugerida, ela irá transformar os aspectos psicológicos do protagonista e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles, direta ou indiretamente. Rouzbeh começa a ter sobressaltos e associa o imbróglio à história familiar que ele desconhecia completamente, tomando rumo diferente da sua pesquisa com o intuito de obter subsídios em bibliotecas, para uma investigação em sintonia com a policial. Surgem questões morais e éticas no caminho, como desligar os aparelhos no hospital do meio-irmão com morte cerebral para consumar a eutanásia. Assina, depois rasga o termo de autorização, por princípios e valores que lhe corroem a consciência. A liberdade individual teria pouco valor e não poderia ser executada como uma livre expressão de vontade de uma pessoa que recém conheceu. Poderiam ficar como ameaças de verdades absolutas, o que lhe causaria supostos traumas indeléveis pela sua atitude, talvez impensada e afoita.

O filme tem excessos de flashbacks, o que atrapalha mais do que soluciona com imagens pretéritas, uma mescla de realidade com a infância do jornalista em família num passado distante. O roteiro é confuso e com vários enigmas que irão se solucionar abruptamente com o desfecho no surgimento de uma meia-irmã da vítima no sorumbático apartamento, que assume o papel de também personagem da realização. O cineasta, possível e bem provavelmente, se inspirou às avessas para escrever o desalinhado roteiro pela burocracia e os enigmas encontrados no best-seller O Processo, de Kafka, diante do enigmatismo e o entulho da ineficácia rígida desenvolvido para resolver dificuldades com soluções nada pragmáticas e muito prolixas, optando pela inverossimilhança atroz.

O protagonista ao assumir a personalidade do meio-irmão, corta a barba, vai à janela como buscar alguma resposta escondida no passado. Há uma flagrante transformação forçada e desnecessária para a fluidez da trama. Embora os equívocos apontados, a obra não chega a ser invalidada totalmente. Salvam-se a fotografia, partes do roteiro como a responsabilidade ética e o arrependimento, bem como a boa intenção em deixar a herança para quem realmente de direito, mas esbarra e se escancara na distância entre eles naquele espaço a ser preenchido pelo imenso vazio de encontros fortuitos afetivos, deixando um legado para se entender a complexidade humana. O foco do enredo de Ausência não é a vítima e nem a dolorosa perda da vida, porém os dramas pessoais irreparáveis pelo olhar sombrio e a despedida melancólica com suas consequências e cicatrizes que permanecerão abertas pelos fatos fragmentados ocorridos por circunstâncias involuntárias pouco esclarecidas.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Mostra de Cinema São Paulo (Vera Sonha com o Mar)

 










Vera Sonha com o Mar

Vem do Kosovo coproduzido com a Macedônia do Norte e a Albânia o excelente drama familiar com fortes conotações sociais e algumas pitadas de suspense Vera Sonha com o Mar, em exibição on-line e presencial na 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo. A direção é da promissora Kaltrina Krasniqi, em seu longa-metragem de estreia. Ela mora no Kosovo, sendo considerada especialista em mídia e trabalha com cinema, televisão e publicações on-line desde 2001. Formada em direção cinematográfica pela Universidade de Prishtina, também possui um mestrado pelo Instituto de Jornalismo e Comunicação em seu país. Tem em sua filmografia três curtas: Kanarinët e Dinë (2014) e Sarabande (2018). A bela trilha sonora foi composta pela dupla Petrit Çeku e Genc Salihu e o instigante roteiro teve a assinatura de Doruntina Basha.

A trama é um fascinante painel sobre a interação do núcleo familiar desconstruído para a contextualização com a comunidade e seu cotidiano inerente com reflexos dos aspectos de uma sociedade visceralmente machista. O enredo retrata de maneira profunda a trajetória de Vera (Teuta Ajdini – ótima atuação), viúva de um juiz renomado, logo após seu estranho suicídio que deverá ser guardado em segredo por sugestão de um colega magistrado ainda na ativa. Ela trabalha como intérprete de linguagem de sinais de meia-idade, e tem uma vida aparentemente bem resolvida, avó zelosa, além de ser uma mãe solidária com a filha que tenta a profissão de atriz no teatro. O desenrolar da narrativa aponta que sua tranquilidade trará transtornos e dissabores diante da perda trágica do marido. Começa a sofrer ameaças violentas de parentes distantes, como um primo que quer ficar com um imóvel no interior e tenta obrigá-la a assinar um termo, alegando que recebera como doação e, por consequência, direito à casa de sua família.

A cineasta tem méritos ao conduzir com equilíbrio e mãos fortes o drama, demonstrando talento pouco comum para uma neófita que esbanja inegáveis qualidades no enquadramento das cenas com um clímax bem dosado e no ponto certo. Aos poucos o filme vai mergulhando em caminhos sombrios de um esquema escuso que começa vir à tona. São segredos pretéritos do envolvimento do esposo em jogos ilegais e a relação próxima com agiotas e o submundo do crime com dívidas impagáveis em dinheiro, na qual aparece a referida casa como o grande estopim da discórdia por ser ofertada nas jogatinas como moeda de troca para pagamento. O cenário fica cada vez mais perigoso e o mundo da protagonista está prestes a desmoronar, diante da pressão psicológica, agressão física num supermercado, chantagem emocional sobre a honra manchada do suicida que será jogada na internet diante das ameaças por telefone e mensagens no celular, caso resista. O medo aumenta e o dilema do destino de seus familiares afloram ainda mais com um atentado criminoso à filha e um equivocado suposto sequestro da neta.

O drama retrata como subtema os reflexos de uma guerra civil no Kosovo que ainda se ressente de um passado que ceifou muitas vidas inocentes. Houve o conflito por questões étnicas e religiosas, tendo como principal motivo o pedido de independência dos kosovares, que começou em 5 de março de 1998, quando esta província situada na Iugoslávia, decidiu lutar pela sua independência ocorrida em 11 de junho de 1999. O resultado da guerra deixou cerca de 10 mil mortos e 740 mil albano-kosovares sem moradia. O ditador Milosevic só deixou o poder na Iugoslávia em outubro de 2000. A realizadora coloca tintas fortes no machismo imperante, no qual os homens dão pouca importância para os desejos e direitos das mulheres. São situações colocadas em xeque para um olhar atento sobre o preconceito através da crise de valores dos respectivos papéis ora contaminados pelos descaminhos do destino e suas frustrações. Os sonhos da protagonista em conhecer o mar servirão como metáfora de uma crise institucional que se torna um imenso pesadelo durante o desenrolar da precisa narrativa. Outra metáfora importante é a personagem representada pela filha que consegue finalmente um papel de destaque no teatro. Porém, seu destino na peça é ser enterrada viva, tal qual a realidade apresenta para ela e sua mãe naquela sociedade com seus tabus de uma reinante opressão para manter a subserviência da figura feminina.

Vera Sonha com o Mar é uma obra que aborda de forma clara e inequívoca os grandes preconceitos nesta luta da mulher por um espaço mais abrangente. A bofetada no rosto da filha pela mãe conjugada com a expulsão de casa pelo pai são revelações que comovem e dão brilho na história para constatar uma moral mesquinha. A luta de Vera para manter o patrimônio, mas que causará uma irresistível coação para entregar o imóvel é outro fato da prevalência tirânica. Um filme de reflexão na abordagem de uma sociedade autoritária dominada pelo vulnerável e contraditório macho alfa, que conduziram para situações e atitudes apresentadas por uma mostra de um passado contaminado por comportamentos deploráveis de alguns falsos moralistas de toga. O epílogo, todavia, dará um facho de luz de esperança para restabelecer a dignidade e um certo otimismo através do vídeo da filha que prestará um tributo à mãe numa alegoria redentora, quiçá, de novos tempos do empoderamento feminino. A perseverança maternal fica estampada neste filme seco, direto, e sem grandes exercícios pirotécnicos. Contagia na essência cinematográfica pelo simbolismo da arrogância moral diante da ausência de um vínculo mais afetivo paternal na relação familiar pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno de uma sociedade cínica com seus costumes ultrapassados. Comove o espectador, perturba pela boa narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e suas contradições que levam para uma fabulosa realização pouco comum nesta temática.