Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite
Um filme que surpreendeu positivamente nesta on-line e presencial 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite, uma coprodução do Afeganistão com o Irã. A direção e o roteiro são de Ramin Rasouli, nascido em Herat, no Afeganistão, em 1978, fez carreira no Irã e hoje reside na Holanda. O cineasta tem em sua filmografia dez curtas-metragens e dois longas, tendo estreado com Lina, que entrou no circuito de festivais em 2017. Agora, em seu segundo longa-metragem, conta as histórias de uma jovem pastora, um menino caçador de pássaros que vive dentro de uma tanque de guerra sucateado e uma professora de luto pela perda do marido. O realizador cria um painel fascinante de três dramas pessoais decorrentes das atrocidades cometidas pelos talibãs ao assumir o governo após uma eleição suspeita.
A realização parece ter sido filmada em 2021, após a tomada do poder pelo Talibã depois da saída dos americanos, embora a produção seja do ano de 2020. O cenário é um deserto no interior do Afeganistão que apresenta carroças, fenos para os animais, burros, grutas e estradas poeirentas sob o comando do regime sanguinário ali instalado. O Talibã surgiu em setembro de 1994, no Candaar, como uma alternativa caracterizada pela predominância pachtun, grupo étnico majoritário no país e pelo rigor religioso extremo. Foi vendida à população uma falsa expectativa de que acabaria com o constante estado de guerra interno e com os abusos dos senhores belicistas pela ideologia fundamentalista. Na realidade, as mulheres perderam praticamente todos seus direitos, as crianças são impedidas de estudar e os direitos humanos ficaram cada vez mais minguados. Pela similitude, o notável filme A Caminho de Kandahar (2001), de Mohsen Makhmalbaf, já havia escancarado todas as mazelas implantadas pelo regime opressor do Talibã, assim como os rastros de destruição humanitária deixados por este governo corrupto, extremista, teocrático, islâmico e machista. Mostrava a violência deixada pelas cicatrizes em cenas marcantes na viagem de uma jornalista que precisava chegar à Kandahar para encontrar a irmã e impedir que ela se matasse. Cruel em todos os sentidos, mas com uma nesga de esperança na figura de um médico encontrado naquele trajeto coberto de oportunistas, com pessoas famintas, mutiladas física e emocionalmente, e mulheres infelizes sem identidade.
Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite faz um impressionante registro através de narrativas que se entrelaçam depois que uma escola local foi incendiada com crianças sendo queimadas pelos fundamentalistas, escapando apenas duas que carregam as marcas do passado. Uma delas está no início deste filme instigante na personagem da pastora que arrisca a pele para tentar salvar uma soldado norte-americana após um acidente de helicóptero, que confessa um hediondo crime de guerra, ou seja, o ataque a uma casa abandonada que matou mulheres e crianças por engano, sendo confundidas com guerrilheiros armados. O outro sobrevivente é um jovem caçador de pássaros que se abriga em um tanque de guerra estragado no meio do deserto. Ele vive ali com suas músicas proibidas de que tanto gosta, mas tem um plano de fazer funcionar aquele armamento importante. Conta com a troca mercantilista de armas para consertar o motor através de um mecânico que faz qualquer negócio para sobreviver. Em outra ponta da trama está uma professora viúva sedenta de vingança pelos responsáveis do regime que causaram a morte de seu marido. A surpresa virá no epílogo, quando irá se defrontar com o novo governador da região e um segredo irá ser descoberto com astúcia e uma boa ironia do destino.
Rasouli conduz com senso crítico apurado e uma correta
imparcialidade este seu segundo longa-metragem recheado de reviravoltas. O
enredo vai se dissipando com o desenrolar das histórias, e o condutor da
carroça, uma espécie de Uber no deserto, terá sua identidade aos poucos dissipada
ao fazer jogo duplo, não por mera opção, mas por medo e pavor dos soldados do governo
vigente comandados pelos temidos talibãs que matam, executam e tocam fogo nas
escolas para espalhar o medo. Um regime autoritário que coage sem dó e nem
piedade no Afeganistão de ontem e de hoje. Eis um filme atualíssimo pelo
exercício no presente que faz parte de uma mentalidade e suas tendências que
por ora está
O drama não se presta para contar uma história, mas para entrelaçar três episódios contundentes e informativos como se percebe do seu desfecho. Serve como uma delação potente à situação caótica dos habitantes no Afeganistão com a forte devastação da população de trabalhadores desprotegidos. Um admirável e impactante filme a ser visto por todos que desejam compreender a história recente do Oriente Médio, com cenas de uma fascinante fotografia contrapondo com um cenário de assombrosa crueldade, na qual a dignidade se esvai em seres humanos sem alma, sem brilho e muitas vezes de anônimos. É contagiante na essência cinematográfica pela intensidade dos fatos intercalados que se sucedem numa atmosfera criada em torno de uma mentalidade de ideias e pensamentos sobre costumes ultrapassados. O espectador não fica alheio e é convidado de maneira sutil a lançar um olhar de repulsa pela boa narrativa dos personagens envolvidos nesta singular obra de uma temática sensível e humanitária. Um contexto de intolerância sobre o que é capaz de se fazer com um povo com seus problemas conjunturais do passado que refletem no presente e apontam para um futuro de poucas perspectivas aos não alinhados do aterrador regime sanguinário dos talibãs nesta aprofundada denúncia pelo cinema.
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