terça-feira, 29 de novembro de 2011

Walachai
















Retrato da Colônia Alemã

Walachai é um documentário produzido no Rio Grande do Sul, numa abordagem com dignidade e extrema sensibilidade em uma comunidade descendente de alemães que vivem em Walachai, designação de lugar muito longínquo, encravado dentro de Morro Reuter, próximo de Novo Hamburgo e distante 70 Kms de Porto Alegre. Também foram feitas imagens em povoados vizinhos no mesmo município, tais como: Jammerthal, Batatenthal, Padre Eterno e Frankenthal.

Esta película tem na direção Rejane Zilles, em seu primeiro longa-metragem, que viveu lá toda sua infância, está radicada há mais de 20 anos Rio de Janeiro. Lança um olhar de reminiscência e ternura para seus conterrâneos que não gostam de ver televisão, ouvem preferencialmente rádio portátil de pilha; sem a interferência da internet e do celular. Nem o carteiro chega naquelas redondezas e seus habitantes desconhecem correspondência. Vivem num mundo solitário e isolado dos civilizados.

As crianças pensam em ser professores, lembrando dos seus mestres que lhes deram aulas e fica explícita a crítica ao governo de Getúlio Vargas que decretou, em meio a 2ª. Guerra Mundial, a abolição terminantemente do uso da língua alemã nas escolas, obrigando peremptoriamente o uso exclusivo do vernáculo português, sem uma transição gradual. Houve dificuldades de aprendizado e comunicação até mesmo entre os moradores que viviam aterrorizados com o estigma da proibição.

“Um pedaço do Brasil ainda desconhecido pelos próprios brasileiros”, assim a diretora define Walachai, que nada lembra o movimento, as cores e os sons de uma cidade grande. É mostrada a vida dos moradores, seus costumes e as peculiaridades, totalmente opostos aos da vida urbana bem próxima. São comunidades rurais isoladas, descendentes de imigrantes alemães que falam um antigo dialeto da região do Hunsrück, hoje raro na Alemanha, porém é a primeira língua de quem nasce em Walachai. É transmitida de geração para geração no dia a dia esta mescla de alemão com português, em que não é entendido nem pelos alemães e sequer pelos brasileiros. Muitos desconhecem a língua portuguesa e o próprio vernáculo germânico clássico.

Este é um singular painel de relatos contados pelos habitantes, em que pessoas humildes que tiveram muitas dificuldades no passado para superarem seus obstáculos, sendo que destes há de tudo um pouco. O mérito maior da cineasta é saber selecionar da galeria de depoimentos aqueles mais consistentes e emocionantes sob o ponto de vista humano e com força de um pensamento de esperança sem pieguices. Deixa as pessoas à vontade para cultuarem seu povoado e querem ali morrer, pois não se imaginam longe daquele vale de árvores e pássaros entrecortado por córregos. Falam da felicidade de serem autossustentáveis, pois plantam e trabalham para comer e se comunicarem entre eles e dormir com as portas abertas à noite e distante da civilização tecnológica.

Aborda com fidelidade os relatos de felicidades e recordações gostosas de seus entrevistados, como a mulher que toca o sino há mais de 40 anos; ou o casal que sorve o chimarrão à beira do fogão a lenha, que não conhece a Alemanha e pouco ouviu falar deste país; como o casal que tem uma dupla de bois de canga para produzir derivados de cana de açúcar; a família que produz fumo em rolo artesanalmente, de maneira bem primitiva. Todos tomam seu mate amargo nas suas casas bem pintadas com contrastes vermelho e azul, tendo nos jardins floridos a beleza e o cuidado da limpeza como marca registrada. Há os jogos de futebol com torneios nos finais de semana entre as comunidades vizinhas; mas nada se compara com os “kerbs” que duram três dias, onde se reúnem para dançar e comer, com muita música de bandinha típica, visando o encontro das famílias e os desimpedidos buscam seus novos amores, embora haja aqueles que preferem ficar solteiros a se mudarem para uma cidade próxima, como enfatizou uma jovem.

A diretora teve muita sensibilidade para se debruçar na temática dos colonos descendentes de alemães, até porque tem conhecimento de causa. Uma bela amostragem de estreia, numa abordagem antropológica sem estereótipos, demonstra uma cineasta promissora e já amadurecida neste relato em tom conficional, que refletiu com ternura e sutileza um dolorido tema sobre os futuros dos jovens, embora sem se afastar da eloquente felicidade dos adultos em suas terras sui-generis veneradas ao extremo, retratadas numa exuberante fotografia e com uma trilha sonora impecável assinada por Felipe Radicetti, incluindo composições de Vivaldi e Bach. Um documentário saboroso para ser lembrado por todas as gerações.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A Pele que Habito

















Insanidade Cruel

A genialidade no melhor estilo que consagrou Pedro Almodóvar agora está mais madura e perversa, com toda a frieza deste diretor neste fabuloso drama espanhol mesclado com suspense e horror em A Pele que Habito, adaptado livremente do livro Tarântula, de Thierry Jonquet. O longa contém um abismo de evidências traiçoeiras que levam para uma vingança marcada por equívocos, quando se busca justiçar pelas próprias mãos o suposto mal que bate com força na porta da vítima. Mas há fatores intrínsecos e extrínsecos que somente serão percebidos dentro de uma justiça plena num julgamento equânime, que não acontece e dá margem para uma revolta interior.

Seu filme anterior já fora maravilhoso e estimulante, tendo todo o brilho e eloquência inerente em Abraços Partidos (2009), que pagou sua dívida, pois estava devendo um grande filme. Ou seja, fez dois filmes, pois realizou um dentro do outro, com todo seu charme, elegância e irreverência, que lembrou o belo Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), não pela semelhança, mas pela estética e pelos desdobramentos; assim como o notável Fale com Ela (2002). Acontece que desde o seu primeiro filme Pepi, Luci e Bom (1980), se estabeleceu um agente provocador; passando por Má Educação (2004); Volver (2006) sendo a ode máxima ao feminino; bem como nos demais Ata-me (1990); De Salto Alto (1991); Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999).

O cineasta mostra todo seu poder de criação ao conduzir o longa como peças que vão se encaixando num jogo de xadrez bem estudado e magistralmente concatenado com o tempo, buscando nos flashbacks as respostas para os espectadores aturdidos e estonteados com a sucessão de acontecimentos que vão desfilando pela tela, numa trama que se delineia com mais verossimilhança nos momentos finais. Até o Brasil é citado numa cena na favela, em que cirurgião plástico teria alguma raiz, sendo entoada uma música em português pela filha do médico.

O diretor se debruça sobre a transexualidade com desenvoltura plena, resultando naquela criatura andrógina do laboratório, a mulher idealizada Vera advinda de Vicente (Elena Anaya- a belíssima que já atuou com Almodóvar em Fale com Ela e com Julio Medem em Lucía e o Sexo (2001) e Um Quarto em Roma (2009). É um experimento fantástico fruto da perda da razão e da consciência plena do médico cirurgião plástico Robert (Antônio Banderas- num papel contido e sem excessos histriônicos). Impossível deixar de ver a influência do filme Frankenstein (1910), de J. Searley Dawley, ou ainda da versão de 1931, dirigida por James Whale, todos adaptados do livro escrito em ritmo novelesco por Mary Shelley, onde o doutor Frankenstein retalhava e criava uma criatura monstruosa em um laboratório de ciências; ou ainda do longa O Abominável Dr. Phibes (1973), de Robert Fruest.

A trama tem amores reprimidos, traições e mortes violentas familiares, revelações e atitudes bizarras e cruéis. Há situações surpreendentes e inimagináveis, com todo estilo do cineasta se fazendo presente, como nas cores fortes mas harmônicas com predomínio do vermelho, listrados e xadrezes sem ser gritantes ou com agressão visual. Num estilo típico e revelador dentro de um cenário de estravagâncias com finesse e requinte almodovariano. É difícil dizer o que mais cativa no filme; se as interpretações como de Banderas no papel do médico ensandecido, ou de Marisa Parentes como a mãe cúmplice, ou se de Elena Anaya; do instigante roteiro macabro e suas vinganças; do cenário, em especial do laboratório tétrico num universo sombrio; da fotografia colorida e marcante; ou se tudo mesclado, com uma direção inventiva ao melhor estilo de Hitchcock com um preciso domínio de linguagem, abstraindo os preconceitos, deixando fluir as amarguras e tristezas familiares pelas imagens e atos se unindo com sutileza e clarividência. Há os grandes dramas pessoais absorvidos pelas fraquezas e as vicissitudes agonizadas pelo ser humano.

Almodóvar busca e atinge indiscutivelmente uma renovação com fôlego em A Pele que Habito, sendo incansável no seu método de abordar questões polêmicas. Tem toda uma lucidez magnífica aflorada na revolta da criatura desalmada metamorfoseada contra o criador. Ganha o cinema pela arte paradoxal da vingança com sabor de cereja, diante do terrível equívoco pelo ilusionismo do suposto estupro de uma inocente fobia social, estopim da barbárie e do patamar indigesto da loucura numa mente perturbada em um singular desfecho.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Digital













Corações Solitários

É da Argentina esta comédia romântica contemporânea Medianeras, com uma temática sobre a solidão na Buenos Aires na era do amor virtual, como bem sugere o subtítulo do primeiro longa-metragem dirigido por Gustavo Taretto, que abocanhou o prêmio de melhor filme latino, melhor diretor e prêmio do júri popular no 39º. Festival de Gramado deste ano, inserindo-se como um promissor cineasta, após deixar boa impressão na sua estreia atrás das câmeras.

Medianeras é um termo técnico usado na língua espanhola para definir a parte lateral de um prédio, sob o ponto de vista da arquitetura com seus pontos cegos sem aberturas. Este é o mote do filme que tem na trama Mariana (Pilar López Ayala- de bela interpretação) e Martin (Javier Drolas- pouco convincente), dois vizinhos que nunca se veem. Ambos estão sempre dedicados aos seus trabalhos e afazeres domésticos. Mariana é uma arquiteta que na realidade trabalha como vitrinista, na esperança de ser vista e observada como mulher e ser humano. Faz sexo com o manequim da loja; fuma muito; ingênua e sonhadora na busca do amor. Observa nos prédios de Buenos Aires muitos fios que acabam por isolá-la do mundo externo e da convivência com os seres terráqueos de forma paradoxal. Já Martin é um designer de sites na internet; sofre da doença do pânico e toma calmantes; pede tudo pela tele-entrega; se acha um Paulo Coelho depressivo; por ter um cão pequeno é confundido como gay.

Taretto busca na solidão de dois vizinhos que moram na mesma rua, mas não se conhecem, numa abordagem da solidão e do vazio existencial de duas criaturas jovens neste mundo da era virtual e moderna. A mesma solidão que tenta aproximar dois vizinhos pelo impasse da construção de uma janela, no longa argentino O Homem ao Lado (2009), de Mariano Cohn e Gastón Duprat, na reflexão magistral da privacidade e das relações em sociedade de duas famílias envolvidas pela complexidade dos seres humanos e pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores das vidas e das amizades. Mariana ao fazer a abertura para a construção de uma janela em Medianeras, está na realidade é buscando a aproximação com o próximo, e especialmente com o mundo exterior.

A solidão também é muito bem abordada no comovente filme portenho Chuva (2008), de Paula Hernández. Outro longa que serve de inspiração ao cineasta argentino é o estupendo Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, tendo dois personagens sozinhos o tempo todo, sofrendo com o fuso horário em Tóquio, não conseguem dormir e se encontram por acaso, no bar de um hotel de luxo, e em pouco tempo tornam-se grandes amigos. Mas nada se compara com o inesquecível filme sobre solidão no episódio Shaking Tokio, dentro do longa Tóquio (2008), dirigido pelo coreano Bong Joon-ho, num dos mais melancólicos e devastadores relatos de solidão humana contado no cinema, onde um rapaz está enclausurado em sua própria casa há mais de 10 anos, isolado do mundo e das pessoas, exceto quando recebe o entregador de pizzas. Conhece uma moça pela tele-entrega, num dia de terremoto que assola a cidade, que também ingressa no mundo claustrofóbico de distanciamento com o ser humano. A corrida louca do jovem pelas ruas completamente vazias se contrapõe com imagens coloridas e esquizofrênicas, ainda há tempo para um possível e enigmático relacionamento de uma paixão que por si só poderá romper com as amarras da doença contagiante das vidas solitárias e sem perspectivas numa cidade futurista e fria.

O cineasta segue com sua câmera filmando o contraponto do urbanismo com a intimidade solitária de seus seres, homenageando explicitamente Martin Handford, o criador britânico dos cartuns de Onde Está Wally?, que serve de cenário e de procura do ponto de partida de alguns personagens metaforicamente perdidos no universo da cidade cosmopolita e empresta o nome ao rapaz solitário da comédia. Nem Woody Allen fica de fora da homenagem velada às suas criaturas sofridas e sozinhas dentro do mundo.

O diretor observa atentamente o crescimento desordenado da sua cidade e da população de sua época, completamente envolvida num emaranhado de fios advindos do progresso, neste bom filme engraçado e dolorido que tem o encontro inusitado, como não poderia deixar de ser, acaba por parar no You Tube. Sem antes se debruçar no nadador compulsivo e na mocinha que carrega os cães para passearem, ou ainda no colega que convida Mariana para jantar no 20º. andar, vitimada pela fobia dos espaços fechados, numa reflexão dos indivíduos que estão bem próximos de cada um de nós.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O Palhaço

















Riso Tristonho

Encerrada a grandiosa 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo, com ótimos e inesquecíveis filmes já analisados, voltamos à realidade porto-alegrense. Para começar já temos O Palhaço, segundo longa-metragem de Selton Mello que mostrou todo seu talento e sua criatividade na excelente estreia com Feliz Natal (2008), em que se debruçava sobre as relações familiares corroídas pelo tempo e o balanço da vida do personagem principal, na busca de reencontrar-se para o mundo.

Mello agora entra no drama circense de personagens que buscam pelo interior do Brasil suas glórias e a maneira de sobreviver. Seu estilo é muito semelhante na forma buscada na galeria de figuras bizarras e a peregrinação pelas estradas poeirentas, como vistas no notável Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, que tinha no roteiro três artistas mambembes cruzando o país, fazendo espetáculos para o setor mais humilde da população brasileira e que ainda não tem acesso à televisão. Recentemente vimos um filme que tratava sobre o circo, oriundo da Espanha o irregular Balada do Amor e do Ódio (Balada Triste de Trompeta- título original-2010), de Álex de la Iglesia, uma comédia que abordava o período do franquismo, sob a ótica conflitada de dois palhaços.

O Palhaço é uma película que aborda os bastidores dos personagens no circo e a difícil arte de fazer rir, através de Benjamin, que usa o codinome Pangaré (Selton Mello- em irrepreensível atuação), numa bonita homenagem ao palhaço negro Benjamin de Oliveira, falecido em 1954. O relacionamento é marcante entre o filho Pangaré com o pai (Paulo José- em ótima performance), dono do circo, que vai levando sua trupe mambembe para o interiorzão brasileiro e descobrindo algumas caricaturas humanas. Há algumas criações de personagens bem interessantes como os irmãos mecânicos (Tonico Pereira) nas suas idiossincrasias familiares; o delegado Justo (Moacyr Franco) na verdade um corrupto mais apaixonado pelo seu gato do que qualquer outra coisa; o prefeito que força a entrada do filho no circo para declamar versinhos decorados em sua ridícula homenagem; a moça do Aldo Auto Peças que apronta para o coitado do palhacinho; o fazendeiro Juca Bigode (Jackson Antunes) que fica celebrizado com sua frase de efeito: “O gato bebe leite, o rato come queijo e eu faço o que sei”, adaptado depois por Pangaré para “…e eu sou palhaço”; também marcaram passagens de personagens esquisitos com seus maneirismos típicos criados por Ferrugem, Thogun e Jorge Loredo.

O filme tem fartos subsídios, mas peca pela falta de uma eloquência mais inventiva, fica um gosto déjà vu, como da obra inspiradora de A Estrada da Vida (1954), de Federico Fellini, pois Mello não consegue se libertar para impor e obter o mesmo clímax e forma estrutural de filmagem como atingiu no elogiado Feliz Natal. Não lhe falta comando de direção, muito antes pelo contrário, há um digno bom roteiro com fidelidade ao drama, mas não deslancha, pois é truncado, como pelos constantes olhares de Pangaré para o distante horizonte, muitas vezes perdidos e procurando algo filosófico para se ancorar. Por vezes deixa se levar por um ritmo inadequado, com sequências vazias de conteúdo. O Palhaço é a tentativa de buscar o riso no circo A Esperança, nome bem sugestivo desta caravana de atores circenses de uma produção mambembe, de poucos recursos que ainda sofre furtos de uma colega de trabalho, o assédio de um policial para obter ingressos gratuitos, diante da falta do alvará de licença e o desgaste do cansaço imposto pela rotina.

É um filme que tem um ar melancólico e saudosista dos velhos palhaços. Há os sorrisos marotos das plateias por onde passa aquele grupo de comediantes, quase que constrangedor e tristonhos em algumas situações. Poderia ter alcançado, assim mesmo, um padrão melhor, tendo obtido apenas um resultado razoável, embora tivesse tudo para arrasar. Faltou alguma coisa, o algo mais dos palhaços fellinianos ou de Chaplin, embora a homenagem aos artistas circenses desiludidos fosse relevante e interessante sob o ponto de vista emocional.