terça-feira, 28 de junho de 2011

Xeque Mate

















Jogo da Vida

Um outro filme que esteve no Festival Varilux de Cinema Francês está agora na Mostra de Sandrine Bonnaire, em Porto Alegre, dedicada à atriz que foi musa de Claude Chabrol e Philippe Lioret, é o bom drama de costumes Xeque Mate, tendo na direção a promissora Caroline Bottaro. Neste seu filme de estreia que segue uma linha de reflexão muito semelhante a outro sucesso atual do cinema francês Potiche: Esposa Fiel (2010), de François Ozon, tendo por tema a mulher objeto e submissa na família.

Na trama que tem como cenário a bucólica vila de Corse, bem distante de Paris, Hélène (Sandrine Bonnaire- de boa atuação e convincente no seu papel) leva uma vida apagada e obscura como faxineira numa residência colossal de um exímio jogador de xadrez, um homem recluso, o orgulhoso e sarcástico viúvo Kröger (Kevin Kline- numa interpretação surpreendentemente humana), encaminha aquela mulher de vida pacata e sem objetivos maiores para uma nova carreira, onde seu brilho logo poderá ser notado e invejado, depois de uma relação silenciosa e pragmática entre patrão e empregada. Hélène lava, passa, cozinha, faz faxinas e ainda aguenta os ciúmes de seu marido acomodado, bem como de sua filha adolescente preocupada com as diabruras do namorado e todas as suas complexidades inerentes da idade. Tem ainda uma atenta gerente no hotel em que presta serviços de camareira, que também lhe começa a cobrar pelas reclamações dos clientes que se tornam constantes ultimamente, embora antes só tivesse elogios. Sua jornada é tripla: em casa, no hotel e na residência do enxadrista.

Xeque Mate é um filme que tem muitas similitudes com o recente Potiche: Mulher Troféu. No filme de Ozon, Catherine Deneuve dá a volta por cima e se transforma numa empresária de sucesso nas negociações com os grevistas na fábrica de guarda-chuvas, vindo a se alçar com todos os méritos no mundo da política partidária, chegando a ser aclamada e eleita como deputada, enfim uma mulher que vence e tentará novos e ainda mais altos voos, deixando para trás sua condição de esposa bibelô; já neste longa-metragem de Bottaro, Hélène também se torna uma aspirante de vencedora e sua vida sem graça e medíocre, aos poucos irá apenas integrar um passado. As superações são vencidas e os obstáculos de um casamento em fase de extinção são bem colocados pela diretora como na cena em que Hélène, apesar de se produzir é rejeitada peremptoriamente pelo marido. Nem sexo existe mais e as ruínas da instituição da união afetiva entre aqueles dois são fatos inexoráveis.

A Dama é a peça mais forte do jogo, simbolicamente está no entrave da ferrenha busca da vitória, pois a obsessão daquela dona de casa, que nada mais é do que um objeto descartável, é cada vez maior pelo tabuleiro e suas peças. Todo o seu jogo e o pensamento de que não se pode errar, devendo levar o adversário à derrota por um erro mínimo qualquer, tal qual como na vida as pessoas estão sempre buscando no confronto seus objetivos que almejam para atingir a glória. De forma obstinada, sendo que a esperança e a persistência estão irmanadas, como simbolizam as peças que são estudadas minuciosamente para serem movimentadas. Bottaro fez do tabuleiro de xadrez uma bela metáfora do jogo da vida. Para se chegar a determinado lugar, pode existir a perda da realidade do dia a dia. O esposo é considerado traído pela comunidade. A busca da liberdade e o desfazimento das amarras são bem retratadas com muita eloquência e exatidão simbólica.

Mas a diretora tem alguns pecados veniais, como do exagero e na repetição dos jogos, por vezes tornando-se enfadonho e desnecessário para a continuidade do longa, parece esquecer-se sistematicamente das elipses pontuais. Embora não invalide sua obra, são defeitos de edição e montagem. Ainda assim, apresenta uma clara proposta feminista e vai até o fim com ela, deixando uma boa lição na simbologia do xadrez e um ensinamento metafórico às mulheres.

A sedução do jogo naquela cena de amor de um casal no terraço do quarto do hotel em que trabalha Hélène é o grande mote, alavancando para um desenlace final de uma mulher submissa e sem grandes propósitos, que a levam ao estrelato do esporte para sua redenção; tanto das picuinhas familiares como das intrigas da vizinhança de uma aldeia de pessoas com pensamentos pequenos e maldosos, repletos de fuxicos, preconceitos sociais e falsos moralismos. Eis um filme que se não é notável, tem seus reconhecidos méritos de profundidade reflexiva, com reivindicações coerentes para o púbico feminino, sem excluir o humanismo dos homens e sem submetê-los com chacotas fúteis, obtendo um resultado no seu todo como bem satisfatório.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Potiche: Esposa Troféu

























Um Olhar Feminino

François Ozon é um daqueles diretores voltados para as coisas femininas ou feministas, dependendo do ângulo a ser considerado. Com 8 Mulheres (2002), seu enfoque foi equivocado, pois não conseguiu chegar a lugar nenhum, tendo em vista que colocou muitas estrelas num discurso vazio; já com O Refúgio (2009) faz uma abordagem profunda sobre a mulher e a complexidade das drogas, gravidez e do amor; em Ricky (2009) mostra um tema voltado para o fantástico, com o nascimento de uma criança extraordinária fruto de um casamento aparentemente feliz e estabilizado.

Ozon nos brinda agora com seu último filme Potiche: Esposa Troféu, um dos grandes destaques do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano, numa bela reflexão sobre a evolução de uma mulher burguesa dona de casa que costura, borda, faz comida, cuida dos netos, faz ginástica e registra alguns momentos encantadores como observar pequenos animais nos parques. Suzanne Pujol é a personagem central da trama (na interpretação de Catherine Deneuve- de atuação espetacular e radiante, demonstrando estar em plena forma física e mental e porquê é uma das grandes divas do cinema), assume a empresa do marido estressado Robert Pujol (Fabrice Luchini), embora fosse fundada pelo seu pai, quando o esposo sofre um infarto e vai viajar, logo após uma greve de funcionários na fábrica de guarda-chuvas. Esta paralisação é estimulada pelo deputado-prefeito e líder sindical comunista Maurice Babin (Gérard Depardieu- em grande estilo e de atuação convincente), mas que não despreza uma mulher de requintes burgueses.

A comédia de Ozon se desenvolve no ano de 1977, quando aflora o romance do passado de Babin com Suzanne e a forte possibilidade dele ser pai do filho mais velho de sua ex-namorada. Mas a grã-fina logo vai descartando tal hipótese, pois seus affairs foram muitos e aquela mulher recatada no início da trama é sepultada e dá lugar para uma outra figura, completamente descontraída e que busca nos relacionamentos uma maneira de viver para se distanciar do cotidiano rotineiro.

O cineasta conduz com carinho e sensibilidade a ascensão de Suzanne profissionalmente, que demonstra talento e resolve os problemas das reivindicações trabalhistas e põe fim à greve. Mas nem tudo são rosas, pois com o retorno do marido às atividades da empresa e o seu retorno à presidência, com o voto decisivo da filha frágil e dependente, tão “Amélia” quanto sua mãe de outrora, há uma brusca guinada na vida daquela mulher que tomou gosto pelo poder e apresentou qualidades de uma liderança nata. Concorre a um cargo político de deputada, por ironia do destino, contra seu ex-amado Babin, indo ao encontro do prestígio e do sucesso na política partidária, lembrando em muito Hillary Clinton quando foi traída e ascendeu ao poder com mais força e vigor, pois ela também sabia das traições do marido com a secretária da fábrica de guarda-chuvas.

Catherine Deneuve voltou a contracenar com Dépardieu, tinham atuado juntos pela última vez no magnífico filme O Último Metrô (1980), de François Truffaut. Deneuve era uma das musas do cineasta, assim como fora também de Luis Buñuel e Roman Polanski. Ela está soberba no papel de mulher objeto, como se fosse um adorno em forma de um bibelozinho de estimação do rústico esposo para ser mostrada aos amigos e tocada sexualmente na cama. Porém os ideais de Suzanne começam a aflorar vertiginosamente e aquela mulher troféu de um primeiro momento numa fase anterior à doença do industrial Robert sofre uma transição, superando as adversidades com bom humor e é levada pelo cineasta aos píncaros da glória, como símbolo da mulher moderna e totalmente independente, pois fazia parte de uma sociedade hipócrita e machista bem simbolizada pelo seu cônjuge.

As tiradas de humor nesta comédia são bem sutis e inteligentes, não há espaço para a grosseria ou humor escrachado beirando ao ridículo, pois o seu diretor parece estar sempre empenhado com as causas femininas, tornando esta película leve e gostosa, da primeira a última cena, sem deixar de satirizar a classe média alta e a elite francesa. Ozon é um diretor que aos poucos vai se consolidando como um daqueles cineastas que surge lentamente, mas com as sucessivas tentativas vai buscando e atinge seus objetivos, está num crescendo, já com um público garantido e atento às causas sociais e feministas que tanto incomodam e são questionadas, pois fica evidente em Potiche: Esposa Troféu que nunca é tarde para se começar. Um alerta, quando a chance aparece deve ser agarrada com as duas mãos, assim como fez Suzanne nesta bela e sutil defesa dos direitos e emancipação das mulheres nesta agradável e deliciosa comédia.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Meia-Noite em Paris



Tributo à Cultura Parisiense

Os últimos filmes de Woody Allen ficaram bem aquém de sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações e neuroses do dia a dia. Principalmente depois que começou sua fase europeia, ao filmar em lugares distantes de sua querida Nova Iorque, assim foi em Vicki e Cristina em Barcelona (2008), decepcionante sob todos os aspectos, salvando-se tão somente Penélope Cruz; O Sonho de Cassandra (2007), um pouco melhor, com alguma graça e finesse; Scoop- O Grande Furo (2006) com certa dose de ironia, era muito irregular e sucumbiu.

Poucos filmes se comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas de Allen; outras grandes realizações foram Dirigindo no Escuro (2002), Trapaceiros (2000) e Tudo Pode Dar Certo (2009), onde Allen escolhe com perfeição seu alter ego como Boris (Larry David), no papel do velho rabugento e neurótico, que tem por hábito insultar e humilhar seus alunos de xadrez, típico morador de nova-iorquino, que abandona seu estilo de vida com os amigos, buscando na boemia uma existência mais complexa; tem ainda o penúltimo filme que é Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010), uma produção menor na vasta filmografia deste genial diretor bergmaniano voltado para os acontecimentos do cotidiano, do amor, da paixão desenfreada, os fracassos do ser humano e o pessimismo com o mundo das pessoas amarguradas. É quase consenso que o melhor filme dos últimos anos de Allen foi Ponto Final- Match Point (2005), na fase pós-EUA, filmado em Londres.

Já inesquecível foi o soberbo, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela e indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida cotidiana na época da Grande Depressão dos EUA. Há um forte relacionamento afetivo com o personagem fictício. Realidade e ficção se misturam e a garçonete passa a ter uma nova perspectiva de vida. Insuperável pela magia e pela beleza plástica deste fabuloso filme, que é retomado de certa forma agora em Meia-Noite em Paris, numa viagem fantástica à boemia e os interiores da Cidade Luz.

A comédia romântica traz de volta a Paris Woody Allen, que dançara com Goldie Hawn, às margens do rio Sena, no longa-metragem Todos Dizem Eu Te Amo (1996), agora na pele de Gil (Owen Wilson), um roteirista de filmes babacas em Hollywood, nada mais é do que o seu alter ego, bem elaborado e interpretado pelo ator de Marley e Eu , Penetras Bons de Bico 1 e 2 e Entrando numa Fria. Gil quer mesmo é escrever um grande romance e decide viajar com a noiva Inez (Rachel McAdams) e os pais da garota (Kurt Fuller e Helen Mimi), protótipos americanos simpatizantes do partido republicano, adoradores de Bush, mas já no início do filme Allen dá uma cutucada, ao lançar farpas sobre a alegação mentirosa para invadir o Iraque. Há uma certa controvérsia e desgosto do futuro sogro para com o abnegado e apaixonado pretendente a genro pela cultura parisiense, de seu cenário maravilhoso pelas ruas tanto com sol, como com as belas imagens da chuvarada.

O filme dá uma guinada logo de início, quando Gil e a namorada discutem numa festa se devem voltar caminhando ou de carro para o hotel, pois o rapaz prefere curtir cada rua, a lua e o rio Sena, contrariado pela garota consumista, típica patricinha americana, de pouca cultura, só voltada para suas compras, pouco se importando com a parte cultural. Sendo voto vencido, volta a pé, mas antes de terminar o percurso, recebe um convite para uma carona num velho Peugeot, carro típico dos anos 1920. Como recepcionistas no veículo estão Scott Fitzgerald (Tom Hiddeleston), autor da obra-prima O Grande Gatsby, morto há mais de 70 anos, e sua esposa Zelda (Alison Pill), que o propiciam uma viagem fantástica ao túnel do tempo com personagens como Ernest Hemingway (Corey Stoll) como um homem beberrão e mulherengo; Cole Porter (Yves Heck); Luis Buñuel (Adrien de Van); Pablo Picasso (Marcial di Fonzo Bo); Matisse (Yves-Antoine Spoto); Salvador Dalí (Adrien Brody); a poetisa feminista Gertrude Stein (Kathy Bates) e outros personagens históricos.

A Cidade Luz oferece a boemia, o charme e a beleza, tornando-se acolhedora culturalmente como escreveu Hemingway em seu livro Paris É Uma Festa (1951). Allen mostra o Museu de Rodin, onde a guia é interpretada pela primeira-dama francesa Carla Bruni, de atuação medíocre. Mas tem para encher os olhos na trama a modelo Adriana (Marion Cottilard-sempre bela e talentosa), dividida entre dois corações (Picasso e Modigliani) e inspirando Gil pela atmosfera efervescente da Belle Époque dos anos de 1890, mas prefere mesmo é a época Renascentista, sendo secundada pela vendedora de livros Gabrielle (Léa Seydoux).

Não falta nem a velha pílula do futuro Valium, quando Gil dá para Zelda Fitzgerald antes dela tentar pular no rio Sena, num instinto suicida e que demonstra que nem tão maravilhosos eram aqueles idos dos anos 20, sem os grandes ansiolíticos e antibióticos. Porém tem seus valores históricos e glamourosos como a chamada “idade de ouro” parisiense com seus cafés, bistrôs, parques, rio Sena, pontes, as praças floridas e os mitológicos boulevards nos bairros Montmartre e Montparnasse, da Torre Eifel, do Museu de Louvre ou da Catedral de Notre Dame. Com chuva ou com sol, à noite ou durante o dia, sempre é uma festa para olhos e para a inteligência civilizatória de uma cidade emblemática, que tenta se distanciar da barbárie e da violência hoje tão frequentes nas grandes metrópoles sucumbidas pela claustrofobia do medo.

Allen sempre foi um cineasta de uma reflexão mais pessimista, mas desta vez leva os espectadores até os píncaros edificantes de um filme singular e magnífico, ao transpor as barreiras da ficção pragmática, mergulhando na fantasia e nos sonhos, deixando a realidade como fator secundário, não sem antes dar algumas alfinetadas nos americanos estereotipados e engajados com o consumismo e com as guerras frias. O imaginário fantástico flutua e flui com harmonia e beleza plástica inconfundível, num roteiro enxuto, numa estonteante magia de um cenário que funciona como um colírio para os olhos, faz desta película uma agradável e marcante obra que atinge todas as camadas de apreciadores da sétima arte. Difícil é não gostar de Meia-Noite em Paris, pois quando a fita chega ao seu epílogo, fica o gosto de quero mais.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O Homem ao Lado















Janela da Discórdia

Novamente vem da Argentina um filme com uma temática aparentemente muito simples, mas enganosa, diante da reflexão magistral da privacidade e das relações em sociedade, que faz desta película uma obrigatoriedade aos cinéfilos em assisti-la. Sem tomar partido dos protagonistas, deixando o enredo correr, para uma final aonde certamente se chegará à proposta dos seus diretores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas e às amizades.

Já está se tornando corriqueiro nos filmes procedentes da Argentina terem características muito peculiares nas suas abordagens como a sutileza e a sensibilidade. Nos temas discutidos há a busca como mote a simplicidade, deixando os grandes cenários em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e às conclusões filosóficas de vida e relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas obras de Carlos Sorín com Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro com o belíssimo Kamchatka (2002); Paula Hernández, com o comovente Chuva (2008), e outros tantos cineastas comprometidos com o cotidiano e com as coisas simples e belas da vida, muitas vezes invadidas ou perturbadas por problemas familiares, ou pela crise econômica que assolou o país vizinho e que ainda não se afastou totalmente.

O Homem ao Lado é mais uma dessas maravilhas portenhas que chega às telas brasileiras, numa trama em que Leonardo (Rafael Spregelburd) é um professor de arquitetura e designer muito descolado, sua mulher é esnobe e gélida (Eugenia Alonso), a filha é uma pré-adolescente sempre com os fones enfiados nos ouvidos, distante, quase uma legítima rebelde sem causa (Inés Budassi), assistidos pela empregada. Vivem numa casa singular em Buenos Aires, a única projetada na América do Sul pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), um dos ícones do modernismo, motivo de visitas frequentes e rotineiras por curiosos e alunos de arquitetura.

O casal e a filha vivem num mundo tido como perfeito, até que um dia as batidas ensurdecedoras em uma de suas paredes despertam para o que vem por aí. Do outro lado está o vizinho Victor (Daniel Aráoz- em soberba atuação, arrasa com o resto do elenco), um homem abrutalhado, de voz poderosa, metido a conquistador barato, por ser um colecionador de armas dá um tom assustador, porém é generoso, de bom coração e solidário, como se evidencia na cena final. O que quer é apenas um pouco de sol no seu minúsculo apartamento em que vive com um tio deficiente. Os diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat tiveram muita sensibilidade ao relativizar a amizade, a solidariedade e os problemas de vizinha, a invasão de privacidade e o medo como ingredientes para colocarem frente a frente Leonardo e Victor, num duelo de palavras e argumentos inimagináveis, com tiradas e sacadas inteligentes, nesta notável comédia dramática.

Os conflitos familiares ficaram em segundo plano, mesmo assim são reiteradas vezes enfocados, como no diálogo de Leonardo com a filha rebelde nas atitudes e inconformada pelo silêncio com o vazio existencial entre ela, a mãe e o pai. As causas não chegam a serem abordadas, ficando uma distância entre eles a ser decifrada; como também na procura por sexo com a esposa fria, que sempre dá uma boa desculpa, até que acaba assediando uma aluna. Mas o duelo dos vizinhos com seus problemas vão sendo escancarados. Leonardo não aceita a invasão da privacidade por aquela janela disforme, que poderá lhe controlar sua vida e tirar o brilho de sua mansão, com o apoio irrestrito da esposa. Já Victor tenta se aproximar, manda flores para a mulher de Leonardo, dá uma escultura de armas velhas para seu vizinho, visando conquistá-lo e persuadi-lo da construção daquela janela, que irá lhe propiciar a entrada de sol em sua residência acanhada e mal iluminada.

O conflito e a intransigência são fatores fortes da discussão e da peleia de dois tipos de argentinos: um é Victor, o protótipo charmosão, bom papo, convida o oponente para tomar uma cerveja nas proximidades e busca dialogar à sua maneira, tentando resolver o impasse; o outro é Leonardo, um argentino cosmopolita, com problemas pessoais, frio e vazio, tal qual sua família, se distancia dos demais, mora muito bem e quer distância dos comuns, odeia problemas e ter que resolver situações conflitantes. Tudo gira para si e seus familiares, como se fosse uma espécie de umbigo do mundo, por ser detentor da sabedoria e do modernismo.

O embate entre os vizinhos e os diálogos inicias nos remetem para uma clara alusão de Cohn e Duprat ao mestre Alfred Hitchcock, pela obra prima-prima Janela Indiscreta (1954), na incessante discussão da privacidade sendo invadida por um voyer. Embora a barbárie esteja metaforicamente embutida no clássico duelo e no rancor que vai até as últimas consequências, como na reveladora cena final, do assalto à mão armada e a solidariedade sendo vista como uma forma melancólica de vingança. Fica marcada inexoravelmente na tela que os valores de uma casa sem os obstáculos são bem mais significativos e maiores que uma vida agonizante. A morte tem seu significado e defenestrar o próximo pode ser festejado, não importando ser uma tolice abjeta. Um magnífico filme de reflexão sobre o ser humano.