segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2019)



Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2019, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05  Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Parasita, de Bong Joon-ho (foto acima);

02. Assunto de Família, de Hirokasu Kore-eda;

03. Dogman, de Matteo Garrone;

04. Era Uma Vez em…Hollywood, de Quentin Tarantino;

05. A Vida Invisível, de Karim Aïnouz;

06. Graças a Deus, de François Ozon;

07. O Bar Luva Dourada, de Fatih Akin;

08. Uma Mulher Alta, de Kantemir Balagov;

09. Em Trânsito, de Christian Petzold;

10. Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Varda por Agnès, de Agnès Varda;
- A Árvore dos Frutos Selvagens, de Nuri Bilge Ceylan;
- Guerra Fria, Pawel Pawlikowski;
- Vermelho Sol, de Benjamin Naishtat;
- Yomeddine- Em Busca de um Lar, de Abu Bakr Shawky.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Uma Mulher Alta



Vidas Reconstruídas

Vem da Rússia o instigante Uma Mulher Alta, do jovem diretor, roteirista e montador Kantemir Balagov, de apenas 30 anos, em seu segundo longa-metragem, antes realizara Tesnota (2018). Está credenciado pelos prêmios de melhor direção e prêmio da crítica na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes de 2019. Este é um daqueles filmes marcantes, que causa uma ótima impressão pela abordagem direta e sem grandes artifícios pirotécnicos, ao enfocar de maneira criativa e sensível fatos tristes na massacrada cidade de Leningrado, em 1945, decorrentes do término da Segunda Guerra Mundial. Principalmente pelo rigor formal da narrativa, nos lembra os grandes clássicos cinematográficos. Foi inspirado livremente no romance A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch.

Um drama de guerra magistral com uma beleza estética rara, tanto na direção de arte como na linda fotografia, amparado por um elenco coeso, tendo nas estreantes atrizes protagonistas interpretações irretocáveis. Há alguma similitude de uma temática equivalente no filme Uma Casa com Torre (2012), da ucraniana Eva Neymann. Balagov retrata a história centralizando a trama em Iya (Viktoria Miroshnichenko- de sóbria atuação, não se destacou somente pela altura) e Masha (Vasilisa Perelygina- soberba em seu papel), duas jovens mulheres que buscam uma nova vida com alguma esperança e um certo significado para continuarem vivendo em meio às lembranças do passado deixadas em seu país como cicatrizes abertas. Depois que a sitiada Leningrado, um dos cercos mais aterrorizantes da história mundial, chegou ao fim, a reconstrução perseguida pelas personagens centrais passa por momentos de grande tensão, dor, tristeza, advindas das mortes e dos traumas decorrentes das perdas. É a tentativa desesperada pelo sentido da vida após as tragédias que as inglórias batalhas deixaram como legados. Não à toa, a instabilidade emocional das duas mulheres tem um clima de angústia e indecisões nos sentimentos que irão oscilar entre ternura e raiva, afeto e vingança, em embates reveladores para o espectador.

O promissor cineasta coloca com admirável delicadeza os efeitos do fim de uma guerra histórica, porém as marcas indeléveis que ela deixa irão perdurar para sempre. Os silêncios marcantes de várias cenas são estímulos à reflexão desta narrativa melancólica, com desdobramentos de um resgatador sopro de luz das personagens femininas para um novo horizonte de liberdade, com o intuito de quebrar o pessimismo oriundo do domínio machista envolvido nos destinos belicistas. Magnífica a cena em que a mãe de Sasha (Igor Shirokov), o rapaz que quer namorar Masha, habilmente tenta proteger a pretensa nora, nos ásperos diálogos frios entre elas, alertando sobre o que é ser vítima de homens dominadores que devastam suas companheiras em um cenário estúpido, diante da submissão da mulher e o seu papel de inferioridade naquela sociedade aristocrática e fútil, simbolizada pela majestosa mansão. A procura da sobrevivência está em jogo e os traumas são intermináveis pelo despropósito aterrador que danifica e esmaga os sentimentos humanos de vidas inocentes sendo ceifadas. Os horrores das batalhas causam marcas implacáveis e doloridas para os soldados sequelados, como na cena do reencontro da família com o herói mutilado que precisa ser sacrificado diante da falta de condições financeiras da esposa para ajudar o marido, em que a eutanásia é o paradoxal destino menos cruel, tendo em vista que há um filho pequeno a ser sustentado na realidade sombria.

Uma Mulher Alta retrata os efeitos dos combates num cenário de intensa nevasca, em que as tragédias se sucedem, tais como a enfermeira voluntária que mora em um hospital militar para ajudar os veteranos mutilados, tem uma paralisia catatônica que se manifesta em qualquer ocasião, carrega o trauma psicológico pela morte do filho da melhor amiga, em que era guardiã. São mostradas as sobras de guerra, como se pessoas fossem animais sem importância, diante da falta de melhores cuidados para os sobreviventes. Há uma carência afetiva de um calor humano praticamente ausente naquele ambiente horripilante, embora se possa compreender pelo contato diário com vítimas destroçadas, jogadas e amontoadas no que restou daquela situação em um país convalescente pelas perdas do extermínio banalizado advindo dos campos de atrocidades com referência pelo descaso às vidas. Mas há uma busca de um futuro melhor nos sentimentos, ternuras e tristezas entre as protagonistas desesperançadas rumo ao céu ou o inferno que querem deixar para trás aquela herança maldita. A obsessiva intransigência de uma delas para ter um filho a qualquer preço, no início soa como vingança, traição e culpa, mas com o desenrolar da história novos elementos redentores irão surgir como pacificadores de um novo olhar da humanidade.

O diretor acerta a mão em cheio na aproximação das jovens em suas trajetórias por novos caminhos num país em ruínas evidentes, dentro de um panorama angustiante que não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz de algumas realizações pouco consistentes. Balagov dá uma aula de sutileza e sensibilidade ao demonstrar os efeitos nefastos de uma guerra com seus registros marcantes pelos vestígios permanentes de pouca perspectiva de recuperação. Tanto no cenário desolador do hospital simbolizando vidas destruídas ainda existentes, porém apáticas, bem como na pequena esperança daquelas criaturas agoniadas pelo tédio da amargura do passado, exceto as duas guerreiras imbuídas de algumas fibras para sobreviverem dignamente. Um grande amor é lançado das sombras de um tenebroso conflito com seus efeitos destruidores que irrompe como um vulcão adormecido naquele demarcado espaço machista, hostil e acachapante. É a busca do significado da existência remanescente de novos horizontes renascendo que irão aflorar para seguir em frente nos seus sonhos iluminados como um afago do destino. Até então muito duro e cruel, dando licença para uma reviravolta de um poema amargo com transição para um gosto mais palatável pela doçura explosiva catártica da paixão, afastando a dor latente adormecida das rupturas do sistema. Eis um fabuloso drama de reconstruções de vidas profundamente humanista, que se insere entre os melhores lançamentos do ano.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A Resistência de Inga



O Monopólio

O drama A Ovelha Negra (2015), do diretor islandês Grímur Hákonarson, venceu a Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, em 2015, e foi indicado para representar a Islândia no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2016. Retratava de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho de ovinos da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores da espécie, onde a população de ovelhas é maior que a dos seres humanos. Num relato comovente do modo de sobrevivência de um povo, que sugeria e remetia para uma alegoria daquele país decorrente da avassaladora crise financeira mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um rastro de desemprego como poucas vezes visto.

Como um prosseguimento da realização anterior, embora menor, Hákonarson cria uma atmosfera tensa em A Resistência de Inga, diante da iminente falência do sustento familiar de uma fazenda e traz como reflexão literal o monopólio de uma cooperativa de criadores de bovinos. Inga (Arndís Hrönn Egilsdóttir- de estupenda interpretação) é uma fazendeira de meia-idade em uma pequena comunidade, que após a morte de seu marido Reynir (Hinrik Olafsson), onde ele é o responsável pela administração do patrimônio. A corajosa mulher irá sacrificar seu sustento para dar um basta na corrupção que campeia livre e na injustiça do trabalho dos cooperados num drama humanista de denúncia, destemor e com confrontos radicalizados. Toma frente da gestão de seus negócios de maneira decidida para começar uma nova etapa em sua vida, pois os filhos emancipados moram em outra cidade. Sabe que é uma luta difícil por ter pessoas poderosas no comando da única cooperativa daquele condado. Mas não desiste de brigar pela Dalsmynni, a fazenda de gado leiteiro familiar de muitas gerações, como em manusear sozinha um parto complicado de um bezerro. Enquanto o marido era vivo, as dificuldades financeiras já eram enormes, pois não tiravam férias há três anos, numa rotina de cansaço permanente. À noite, trocavam algumas palavras e iam dormir para despertarem cedo no outro dia de intenso trabalho.

A morte de Reynir no acidente de caminhão na estrada em condições duvidosas e nunca esclarecidas, com alguma probabilidade de um suposto suicídio, foi brutal para Inga. As revelações de que ele era um delator para a cooperativa, dedurando quem não vendia leite e quem não comprava os insumos, por ser vítima de coação, numa forma de pressão sem saída, sob pena de ver a falência e o despejo de sua fazenda serem uma realidade pelas dívidas acumuladas. Estas circunstâncias agiram como ingredientes para uma combustão de rebeldia que explodiu e fez da protagonista buscar justiça em uma cruzada contra as forças detentoras do poder sufocante e opressor com requintes de crueldade nas perseguições, ameaças e terror pelos dirigentes daquela entidade. A concorrência não era estimulada e a oposição era ameaçada, até que Inga começou a publicar no Facebook as falcatruas existentes daquele sistema corrupto e violento, comparando com a máfia italiana corroída pelos seus mentores desonestos. Foi um duro golpe desferido no monopólio pela viúva dissidente, que desencadeou em outros episódios a perda de controle como elementos contundentes retratados de uma realidade estúpida, como na reveladora cena do trator levando toda a produção de leite para jogar no chão e nas paredes do prédio dos cooperados, muito bem construída pelo realizador. A imprensa é atraída para aquele lugar conflitado, de uma aparente falsa calmaria, para retratar de maneira imparcial a cobertura midiática televisiva diante dos desdobramentos e as ligações do fato para uma batalha com retaliações à criadora simpática e inofensiva em uma inimiga do povo do condado, pela ótica dos detentores do poder. A criação de uma segunda cooperativa somente para os criadores de vacas leiteiras é refutada veementemente pelo monopólio e outra luta com farpas e divisões são estabelecidas em um clima de guerra, num duelo de Davi e Golias.

Um vigoroso drama com uma trilha sonora adequada e condutora do epílogo surpreendente, para um desfecho com certo otimismo naquele ambiente perverso ali encravado. A cultura rural enraizada ligada ao espírito do nacionalismo em choque com os valores tradicionais explorados pelo Capitalismo estão evidenciados. Mas há uma luz no fim do túnel surgindo das perdas patrimoniais para uma virada de um novo horizonte pela perseverança e bravura de uma guerreira no empoderamento feminino de uma nova mulher, sob o prisma de um destino promissor que se desenha pelo grito de liberdade individual e econômica como fatores colocados com rara sensibilidade. Mart Taniel é o responsável pela fascinante fotografia, em que mostra os contrastes da beleza do inverno com as nevascas nos campos contrapondo com resíduos e insumos do árduo trabalho no celeiro, mesmo que a ordenha fosse robotizada pelos avanços tecnológicos para produzir mais leite, porém as despesas também dispararam e a dívida cresceu. O isolamento da personagem central cansada, com os cabelos desgrenhados, e um olhar perdido no infinito da noite silenciosa, para ter uma decisão realista de quem já perdeu quase tudo, resta a dignidade humana sem arroubos triunfais a ser salva.

A Resistência de Inga proporciona uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes dos habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida. O roteiro dá uma guinada na envolvente história, com significativa mudança de rumo diante dos ânimos acirrados, após um novo episódio na trama que retrata o impacto das perdas marcantes de uma comunidade dependente da essencial criação leiteira, como forma de sustento e o meio de vida socioeconômico na região. A crise se agrava e torna o ambiente mais inóspito e impróprio para aventuras financeiras, repassando ao espectador o clímax tenso e hostil que estão presentes. O cineasta faz um belo relato social das sutis armadilhas, com elementos suficientes para uma primorosa história contada com simplicidade e situações típicas do cotidiano de uma bucólica aldeia. Eis uma realização requintada num panorama de brigas permanentes dos personagens envolvidos no dilema. Há uma intensidade relevante para a narrativa que cresce com a evolução do enredo para o final redentor e significativo diante dos desmandos e irracionalidades coercitivos pela intransigência monopolista.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

A Vida Invisível



As Irmãs

Karim Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as perdas, a opressão feminina, o abandono e os encontros inusitados. Estas temáticas são encontradas no bom e dinâmico Madame Satã (2001); no excelente O Céu de Suely (2006), alcança seu apogeu e brilha com o drama sobre a classe pobre brasileira, na qual a protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro suficiente e comprar passagens de ônibus, ir para bem longe e iniciar uma nova vida com seu filho; em codireção com Marcelo Gomes realizou o controvertido Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), em que o foco está na saudade da esposa e da família deixada para trás; em O Abismo Prateado (2011), há a criatura abandonada e a epopeia para encontrar o caminho de volta para a lucidez, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo inexplicável com o rompimento do vínculo do amor; já no magnífico Praia do Futuro (2014), é o olhar com maturidade sobre a relação homoafetiva pelo vínculo amoroso estabelecido entre um salva-vidas com um turista alemão, em uma estrutura impecável e sem superficialidades, diante de lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um fascinante resultado inspirado no cinema de Rainer Werner Fassbinder, como o próprio diretor assumiu ser um admirador de suas obras.

Vencedor na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes deste ano e indicado para representar o Brasil no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2020, superando o cultuado Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, A Vida Invisível, último longa-metragem de Aïnouz, é um melodrama familiar pujante na sua essência. Foi adaptado do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da autora pernambucana Martha Batalha, tendo como cenário o Rio de Janeiro, dos anos de 1950 até os dias atuais. As protagonistas são as irmãs inseparáveis Eurídice (Carol Duarte), uma jovem pianista talentosa, de 18 anos, mas muito introvertida e reprimida sexualmente, que tem como referência e projeção Guida (Julia Stockler), de 20 anos, a irmã mais velha, o oposto dela, por ter um temperamento extrovertido e com uma mente mais aberta. Ambas vivem em um rígido regime patriarcal de educação atrelada ao moralismo exacerbado dos ditos bons costumes, em que o pai (António Fonseca) não tolera a desobediência e a liberdade buscada pelas filhas. Diante do impasse conservador determinante, irão trilhar dois destinos diferentes por caminhos inimagináveis que abalarão seus futuros para sempre. Guida foge de casa com o namorado, um marinheiro grego, em busca da felicidade; enquanto isto Eurídice se esforça para tornar-se uma renomada pianista, viajar para a Áustria, e fazer testes em um famoso conservatório. Casa-se de maneira abrupta com um homem tosco e ciumento (Gregório Duvivier), com o objetivo de realizar seu sonho e ser afortunada na música.

O realizador lança tintas fortes e dá uma virada no dinâmico roteiro escrito por ele em parceria com Murilo Hauser e Inés Bortagaray. O casamento sem amor e a insistência do marido em ter filhos de imediato, o que poderia atrapalhar a carreira de Eurídice na maternidade não planejada, e com a volta iminente ao Rio, são ingredientes novos mesclados com o retorno repentino de Gilda para casa, um ano depois, grávida e decepcionada com o namorado. Sem a compreensão do austero pai e com a subserviência da mãe, a filha mais velha irá acabar numa espécie de albergue comunitário, em que a responsável cuida das crianças para que as mães trabalhem. O filme é conduzido com rara sensibilidade e sutileza na construção de uma trajetória melancólica dos destinos inversos traçados pela intolerância paterna, com resultados nefastos e devastadores naquele microcosmo familiar dilacerado por caprichos hostis arraigados nos ditames truculentos de uma época de costumes machistas, ainda remanescentes nos dias de hoje, embora em grau um pouco menor. Há uma exposição de fragilidades das irmãs vitimadas pelos absurdos advindos de hábitos antiquados em que as duas tentam se reencontrar. São as tentativas de uma procura inglória e devastadora. Mas as cartas escritas que nunca chegaram à destinatária trarão novas luzes como um sopro de resgate pela dignidade quando reveladas de maneira nada convencional no desfecho emocional. Para isto haverá a aparição na soberba interpretação de Fernanda Montenegro, no papel de uma das irmãs envelhecida, mesmo que por poucos minutos, iluminará a telona.

O resgate da liberdade alcançado por uma das personagens, depois de anos bem distantes da juventude, instiga a manutenção ainda vigente daquele vínculo inseparável entre elas. Distante do meio conservador e repressor da origem dos conflitos, há revelações perturbadoras sobre a mulher humilde que acolheu Lídia e a amparou com dignidade, compaixão e sem censura nos tristes episódios que se sucederam e colocaram em xeque toda uma situação anômala do reacionarismo. Foi a forma de emancipar-se das amarras do passado e seus fantasmas, ainda que corresse os riscos inerentes na saga da estranha trajetória até o esquecimento e do abandono familiar. As mortes reveladas no epílogo surgem como as tristes perdas existentes, um tema recorrente na filmografia do cineasta com seus personagens revestidos de grande humanismo como elementos essenciais, apresentando suas dores, medos e ansiedades. Numa marcante imagem de uma tomada estupenda no prólogo se decifra no desfecho a aniquiladora solidão mesclada com a busca da independência presente somando-se às dores pretéritas que ficaram para trás, registradas pela linda fotografia da francesa Hélène Louvart e ao som da significativa trilha sonora do alemão Benedikt Schiefer.

A reflexão passa também pelo destemor e fragilidades das irmãs com a clarividência do propósito no futuro como ingredientes de subsídios para a iniciativa da dura realidade autônoma, após os transtornos dos percalços oferecidos pelo destino. As perdas são reflexos de um contexto de diferenças, mas que vão se encaixar e tornar uma relação madura e consistente, já com a presença de uma das personagens como símbolo do passado na ausência transformadora da rotina. São causas e contrastes por extensão, após o baque pessoal de uma falsa notícia da morte da desaparecida. O tempo dá um salto para uma outra realidade, com a sugestão da emoção motivadora da existência, diante da sensação de vazio e isolamento. Eis uma abordagem marcante e intensa com uma atmosfera singular sobre a natureza do universo feminino e sua luta diária no meio machista, num retrato sobre a gravidez não programada, a prostituição como sobrevivência, faz com que o drama tome contornos impactantes para um desfecho duro e amargo. A Vida Invisível é o filme mais profundo, equilibrado e abrangente de Aïnouz. Por ser complexo e eloquente na meditação sobre o conservadorismo familiar, o castramento da liberdade individual pela opressão, o estupro conjugal como forma de propriedade do corpo da mulher pelo marido e a procriação como elemento fim, sufocante e angustiante em sua plenitude, torna-se a obra-prima do diretor.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Parasita



Arrasadora Injustiça Social

O Festival de Cannes de 2019 premiou com a Palma de Ouro o filme da Coreia do Sul Parasita, com uma abordagem aprofundada e sem concessões sobre a tentativa de ascensão social de uma família excluída que vive na miséria e todos seus membros estão desempregados. É a busca por uma vida digna com todo seu glamour em um núcleo de uma residência composta por um casal rico, uma menina adolescente e um garotinho pré-adolescente, em que só o homem trabalha. Há discussões amargas e controversas de contornos de grande relevância sobre as regras e o formato que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano. Ninguém sairá ileso desta convivência marcada por acontecimentos de alta tensão, humor e a tragédia iminente com o resultado do confronto de classes distintas e paradoxais. A sociedade contemporânea está em pauta e o questionamento é lançado pelo olhar atento do festejado cineasta Bong Joon-ho. Este drama social que transita do suspense para o terror é o representante coreano para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2020, sendo ainda laureado como o melhor filme escolhido pelo público na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo ocorrida em outubro deste ano.

O realizador sul-coreano já havia surpreendido com O Hospedeiro (2006), tratando seus monstros com seriedade numa civilização dos homens, tendo por cenário a beira do rio Han poluído ao extremo. Lá, uma família dona de uma barraca de comidas no parque é aterrorizada por um animal gigantesco que emerge do fundo do rio e leva a neta do patriarca. Os monstros se confundem com os humanos e os demônios são exorcizados. Já no episódio Shaking Tokio, dentro do longa Tóquio (2008), onde dividiu espaço com Michel Gondry e Leos Carax, aborda um dos mais melancólicos e devastadores relatos de solidão humana contados no cinema, no qual um rapaz está enclausurado em sua própria casa há mais de dez anos, isolado do mundo e das pessoas, exceto quando recebe o entregador de pizzas num mundo claustrofóbico de distanciamento com o ser humano. Em Memórias de um Assassino (2003), brinca com o público espectador, pois uma jovem brutalmente assassinada num lugar convence a polícia tratar-se de um serial killer, mas os fatos se repetem em outras localidades, deixando aturdidos os detetives, começa então uma investigação minuciosa e interessante, demonstrando influência forte do mestre Alfred Hitchcock. Depois veio Mother- A Busca Pela Verdade (2009), na aproximação do realismo com o fantástico para desqualificar o possível culpado, buscando no jogo de valores sua visão crítica.

Assim como nas realizações anteriores, o irrequieto diretor retrata o processo civilizatório se brutalizando com os atos convergindo para o confronto da explosão social se acirrando, contrapondo com o processo de destruição já invocado nos longas O Hospedeiro e Mother- A Busca Pela Verdade. Os animais selvagens e irracionais de Joon-ho são bem identificados e estão entre aqueles que destroem e violentam a humanidade. Em Parasita, a situação se altera quando o filho mais velho (Choi Woo-sik) consegue emprego de professor de inglês na bela mansão com uma arquitetura moderna, repleta de espaços vazios pertencente à família dos Park. A farsa burlesca será um ingrediente astuto para os planos bem bolados para colocar os demais integrantes naquele cenário convidativo: o matreiro pai (Song Kang-ho), a sóbria e dedicada mãe (Chang Hyae-jin) e a esperta filha (Park So-dam). O retrato da polarização pela desigualdade terá contornos pelo desequilíbrio de uma cruel sociedade consumista. O fio condutor narrativo chega até a violência não gratuita, mas quase circunstancial, pelo desdobramento da trama do roteiro dinâmico. Embora com um banho de sangue apoteótico no desfecho, ao melhor estilo de Tarantino, quer sacudir e mostrar quem são os incivilizados e desmedidos de nosso planeta, assim como já o fizera no conjunto das obras antecessoras.

A desenvolvida sociedade coreana cultural e tecnológica serve de ponto de reflexão para a contundência crítica do cineasta, em que nada fica estático. Tudo se move para a ilicitude, como a armação artística dos depauperados na busca forçada do convívio harmonioso na família abastada que esconde suas maneiras desumanas de um digno convívio social. O contexto é arrebatador e faz sentido, como a oca do menino americanizado que pratica suas bizarrices no jardim, por estar traumatizado ao ver um fantasma emergindo do bunker construído no porão que guarda um segredo da ex-governanta e que virá à tona numa noite chuvosa, enquanto os ex-patrões estão ausentes. A festa com a simulação do embate dos índios alegoricamente importado da América do Norte irá se tornar real e a grande catarse explodirá como redenção no epílogo. É o confronto dos desiguais entre eles, remanescendo para os iguais com os desiguais, em que uma família paupérrima que mora numa sub-habitação abaixo do nível da calçada na periferia. Mas do grande golpe arquitetado pela sobrevivência melhor, haverá a noite fatídica de uma grande enxurrada de água da chuva torrencial que inundará os bairros periféricos, origem da família protagonista da gambiarra, com o lixo se espalhando e invadindo as pequenas residências. Durante a tempestade premonitória, a ojeriza do patrão pelo cheiro dos empregados relacionados aos pobres usuários do metrô é reveladora para a vingança redentora diante da dor humilhante. É o ingrediente dilacerante como forma de discriminação que faltava e marca com tintas fortes. Mas há o sonho do filho em estudar e que vira obsessão para resgatar o pai do autoexílio.

Ao retratar as classes sociais diferentes com personagens de lados opostos, há uma similaridade com o notável Assunto de Família (2018), de Hirokasu Kore-eda, tanto pela estética como pelo foco social. Parasita é comovente e fisga pela sobriedade de seu realizador na busca de apontar os erros graves de seu país pelo capitalismo desenfreado advindo dos EUA. Mas não poupa a Coreia do Norte e seu ditador, na alegoria do celular que registra os equívocos da farsa montada, ao fazer a similitude da mensagem a ser enviada pela ex-empregada com o dedo do tirano Kim Jong-un do país vizinho para disparar o botão da bomba atômica e explodir o mundo. Uma realização singular por ser convincente na sua proposta sem concessões e com o objetivo de perturbar e tirar da zona de conforto o espectador com uma representação mordaz e contundente. Ninguém fica alheio aos caprichos sem compaixão dos corretos transformistas cidadãos aristocráticos, ou ainda da malandragem dos alijados pela boa convivência social harmoniosa para viver em solidariedade espúria, enquanto tentam uma rede gratuita de wi-fi dos vizinhos. A reflexão é proposta e os monstros se multiplicam, à espera da conscientização oprimida pela repressão de valores que aguardam a absorção, como metáfora de uma civilização doente e em vias de extinção através de uma fábula adulta com contornos trágicos na busca do topo da pirâmide para abandonar o triste isolamento da injustiça social. Emociona por ser intensa e complexa, madura e completa, instigante e impactante, que atinge o patamar de a obra-prima da carreira de Joon-ho. Sem dúvida, até agora, o melhor filme do ano.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A Odisseia dos Tontos




Vingança pela Dignidade

Vem da Argentina em coprodução com a Espanha esta badalada comédia A Odisseia dos Tontos. Dirigida com bom humor e algumas sutilezas por Sebastián Borensztein, em seu quinto longa-metragem, que tem em sua filmografia os poucos expressivos La Suerte Está Echada (2005) e Sin Memoria (2010), e o surpreendente Koblic (2016), sobre um oficial da Aeronáutica contrário aos meios violentos para eliminar os opositores. O cineasta ficou conhecido com o retumbante sucesso Um Conto Chinês (2011), com uma temática aparentemente simples, mas enganosa no aprofundamento da mesma, pois fazia lembrar um rendoso blockbuster. Não era e estava longe de ser um produto apenas comercial, embora tenha levado em seu país mais de um milhão de espectadores ao cinema. O enredo tinha uma situação inusitada como a noiva morta por uma vaca que caiu na sua cabeça, dentro de um barco num bucólico rio na China, no exato momento do noivado, antes mesmo de colocar as alianças, numa cena tragicômica. Havia o veterano da guerra das Malvinas, que vivia do comércio de ferragens em Buenos Aires, um tipo estranho que contava todos os parafusos nas caixas ao receber do fornecedor e brigava com eles pela falta de produtos exatos. Um sujeito extremamente metódico que apagava a luz no rádio-relógio minuciosamente sempre às 23h, recortava notícias bizarras dos jornais de todo o mundo e não era nada cortês com os clientes.

Agora em seu último filme, em parceria com Eduardo Sacheri, o realizador escreveu o roteiro baseado em um livro sobre a grave crise econômica de 2001, em que o governo da época congelou as contas bancárias de toda a população diante dos desafios no mercado global, liberando míseros saques semanais, sendo denominado de Corralito, possivelmente influenciado no confisco da poupança e conta corrente dos brasileiros ocorrido em 1990, no governo do presidente Fernando Collor de Mello e sua equipe chefiada pela ministra da Economia, Zélia Cardoso. Com alguma inspiração é criada uma instigante comédia dramática de costumes que transita para a fábula adulta até chegar ao desfecho com uma desnecessária sugestão de autoajuda, flutuando por uma irreverência com alguma grosseria, para sintetizar os dramas advindos da desforra dos desvalidos para com os usurpadores naquela distante província de Buenos Aires aparentemente pacata. A trama gira em torno de um grupo de moradores que decide reunir uma vultosa quantia de dólares para comprar um armazém falido de grãos abandonado em uma propriedade agroindustrial. Porém, antes de poderem colocar em prática o audacioso projeto de uma cooperativa, um golpe orquestrado por um gerente de banco com um advogado faz com que eles percam todo o dinheiro juntado com dificuldade e esforço descomunal.

Um plano é montado com ardil para que a justiça seja feita a qualquer preço e que irá se evidenciar na cena final. Foram focados todos os planos e sonhos obstruídos e sepultados pelos acontecimentos do impacto causado em cada indivíduo com o libertador estopim pela narrativa humorada. Os desdobramentos se sucedem pelo fio condutor do personagem principal, Fermín (Ricardo Darín), um ex-jogador de futebol argentino famoso com sua esposa, Lidia (Verónica Llinás) e o filho do casal, Rodrigo (Chino Darín- contracenando com o pai pela primeira vez). Juntam-se a eles: o borracheiro Antônio (Luis Brandoni), o comerciante Belaúnde (Daniel Aráoz), o ex-soldado Medina (Carlos Belloso) que lutou na guerra das Malvinas, e a viúva Carmen (Rita Cortese). O alvo do grupo indignado e solidário é o esperto advogado ricaço Fortunato (Andrés Parra), que em conluio com o gerente da instituição financeira deu o golpe milionário e enterrou toda a fortuna num blindado cofre subterrâneo em uma fazenda de sua propriedade. Estão presentes no conflito para uma reflexão os dignos valores dados às vidas e a solidariedade nas amizades, exaltando-se com empatia a ética e a antiética num paradoxo dos princípios morais corrompidos em meio a uma crise socioeconômica.

O longa retrata a burocracia na polícia e o jeitinho fraudulento para trapacear, na cena proposta em que o banqueiro e o advogado levam vantagem. O impasse da derrota logo dará lugar para a frustrada situação em que a retaliação para defender o patrimônio roubado irá prevalecer com a investida intensa dos oprimidos aos opressores para restabelecer a busca da dignidade do roubo oficializado como visto na típica comédia de humor negro Relatos Selvagens (2014), de Damián Szifron, com mais de 2,8 milhões de espectadores na Argentina, bem como nos magníficos O Segredo dos Seus Olhos (2009), de Juan José Campanella e em Abutres (2010), de Pablo Trapero, onde a corrupção e os desatinos da justiça andam de mãos dadas, em um brutal atentado aos direitos humanos. Também no mais recente sucesso brasileiro Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, há a resistência e a agressão das famílias acuadas pela invasão de alienígenas em seu território invadido e dilapidado, na qual a situação sociopolítica está presente de maneira metafórica, como na invasão dos colonizadores norte-americanos em sintonia com péssimos políticos tupiniquins travestidos de defensores do povo. Tanto em Bacurau como em A Odisseia dos Tontos os diretores habilmente colocam o simbolismo da classe oprimida contra a classe dominante, em que a vingança é o elemento preponderante para afastar ou dar um basta aos usurpadores. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com méritos esta emblemática realização sobre a injustiça pela justiça da redenção através da fantasiosa missão pela recuperação do dinheiro roubado.

Em seu filme anterior, Borensztein não perdoava o recente passado de seu povo, como a infausta batalha das Malvinas, ao fazer alusão da vaca em queda livre com o discurso de um dirigente russo, com um fato pitoresco igual, que poderia ser a verdadeira causa do absurdo que se torna real nos confrontos entre os homens, da inverossimilhança de Kafka para a realidade que bate à porta do protagonista, vindo do Oriente para o Ocidente. Em A Odisseia dos Tontos, está esboçada a magia que prevalece e dita os rumos que são destinados aos personagens vingadores e vingados. Descarta as muitas obviedades e tempera a solidariedade encontrada na dor pela perda dos dólares com a doçura do riso de um povo que caçoa a si mesmo, tornando palatável e deliciosa esta boa comédia de costumes com abordagens bem fundamentadas. No momento em que a estima é cutucada em alta dosagem, logo os valores se abastardam e destroem a harmonia com o vínculo existente da civilização, passa para a selvageria desenfreada que choca a criação equilibrada e a lucidez se esvai de forma definitiva e eloquente num clímax arrebatador pela maturidade estética do bom cinema. Eis uma prazerosa reflexão sobre os desiguais seres humanos que chegam aos seus destinos e encontram seus vínculos fraternos, sem desprezar a mordaz ironia da crítica social como reflexo deste hospício chamado mundo. Com bons elogios da crítica, é o postulante da Argentina indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2020.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O Enigma da Rosa



Vingança Perversa

O diretor, roteirista, produtor, fotógrafo e montador espanhol Josué Ramos faz sua estreia em longa-metragem com este polêmico O Enigma da Rosa. O cineasta rodou sua obra em dez dias com um custo ínfimo de quinze mil euros investido com recursos próprios, após desistir de esperar por ajuda financeira estatal e dos produtores que o abandonaram pouco antes das filmagens. A locação é modesta, foi realizada dentro de uma casa de dois andares, com um elenco aceitável de seis bons atores e atrizes, numa trama de um roteiro enxuto e surpreendente em algumas situações inesperadas. O filme transborda a linguagem do cinema e incursiona na teatral, tendo em vista o modesto espaço de locação para desenvolver uma história asfixiante. Embora não consiga atingir o clímax proposto da claustrofobia, diante das portas e janelas fechadas literalmente, na incessante busca para elucidar o rapto de uma criança que coloca em xeque uma família classe média pequeno-burguesa e sua sordidez escondida, irá revelar alguns traços de pouca humanidade, tais como a ganância pelo dinheiro, o moralismo falso entrelaçado com preconceito e a ocultação de uma violência latente.

O enredo é simples, mas com o desenrolar e a fluidez da macabra história, surgem revelações de segredos escabrosos guardados pelos membros daquele microcosmo familiar. A compra de uma arma no mercado negro no prólogo irá apontar o adquirente e a astúcia dele para o desfecho improvável. Tudo começa com uma cobrança severa da mãe, a advogada ambiciosa Julia (Elisabet Gelabert) com sua filha, Sara Castro (Patricia Olmedo), de 10 anos, ao tomar conhecimento das notas baixas no boletim da menina, que posteriormente não retorna da escola para sua residência, pois o pai, Oliver (Pedro Casablanc), esqueceu de buscá-la. Atônitos pelo fato incomum do misterioso desaparecimento sem deixar rastros, o casal e o filho mais velho, Alex (Zack Gómez), procuram a polícia para comunicar o ocorrido. Eles são aconselhados pelo inspetor para aguardar o contato da garota, o que só irá aumentar a tensão, o medo e a angústia. Após alguns dias de terror, desespero e dúvidas, em uma manhã, uma carta é enviada pelo criminoso (Ramiro Blas) que afirma ter sequestrado Sara e deseja falar com eles pessoalmente, sem que haja a interferência policial, sob pena de matá-la. Os diálogos no encontro programado irão construir a emblemática artimanha, por trazer inesperadas reviravoltas no roteiro, sem que haja o recurso de enfadonhos flashbacks, muito recorrentes em produções do gênero do suspense.

Distante de demonstrar sensibilidade, com falta total de sutilezas, e a ausência de um vigor estético inovador, Ramos cria um duro drama psicológico que flutua para o suspense até atingir o horror da perversa vingança aos membros daquela família de poucos valores éticos, embora não seja aceitável tamanha agressão física e psicológica com dentes extraídos e mutilações do corpo em realismo puro de forma exacerbada pelas cenas duradouras e explícitas, em algumas delas. O diretor segue os fundamentos de Maquiavel, em que os fins justificam os meios, diante das revelações das vítimas há uma malvadeza abissal sem concessões. Há a inversão da família vitimizada para acusada, na troca de papéis, através de um formato colérico e sem delicadezas. As transgressões não são sugeridas e vão em sentido contrário daquele espectador lúcido e de bom senso, contrasta e agride a construção de um panorama que surge aos poucos com a presença da verdade.

Ao invocar e se agarrar como uma tábua de salvação na Lei de Talião, o realizador extrapola a proposta cinematográfica da sensatez, para fazer valer o princípio da justiça na expressão "olho por olho, dente por dente" com uma retaliação cruel, dura e seca, na qual se exige que o agressor seja punido em igual medida do sofrimento que ele causou, um método básico dos tempos tribais, num jogo da verdade para elucidar fatos com tortura psicológica e um compulsivo sadismo a mancheias. É a desforra inimaginável em tempos ainda civilizados, embora haja seguidores e defensores destes métodos da barbárie já ultrapassados num momento quase que universal de intransigência e repúdio aos direitos humanos. Fatih Akin com O Bar Luva Dourada (2019) teve méritos e obteve mais empatia e vigor com uma narrativa violenta de esquartejamentos, sobre o cotidiano simples de pessoas sem destinos e ignoradas por serem excluídas da sociedade de consumo, num drama contundente para se aprofundar nas mazelas decorrentes das feridas abertas de uma sociedade ainda traumatizada pelos efeitos do nazismo. Michael Haneke com Violência Gratuita (1997) foi mais elegante no exercício incômodo e angustiante ao blefar com a cumplicidade da plateia em seu longa intenso.

O Enigma da Rosa não chega a envolver e nem perturbar o espectador no aspecto da temática. Excetuando algumas cenas de bom suspense, cria um clímax desproporcional, quase inverossímil, para a proposta de um crime hediondo, em que a pedofilia deveria ser mais discutida para uma boa reflexão, mas passa longe, bem ao contrário do notável Graças a Deus (2019), de François Ozon, que faz uma abordagem de forma imparcial. Ramos perde a oportunidade de lançar luzes para iluminar um tema tão abjeto como o doentio abuso sexual de crianças, bem como o subtema da hipocrisia nos segredos confessados que conduzem para uma casta ainda preconceituosa da homofobia, além das armações para levar vantagens financeiras sem escrúpulos e por artifícios condenáveis. Vítimas e criminosos invertem os papéis abruptamente, mas não convencem pela forma satânica do mecanismo truculento, embora as revelações bombásticas sejam o trampolim para um epílogo inusitado. Um filme de moralismo candente até atingir o ápice do clichê com um viés para sustentar conceitos autocráticos sobre os valores da justiça. Sobram tensões de intensidade com alta dosagem de exageros que poderão causar náuseas em pessoas de estômagos sensíveis. Prevalece a irracionalidade bestial neste pretenso painel sobre a vingança justificada, que jamais convence. As fragilidades humanas pela perda da dignidade e da piedade como elementos que afloram pelos métodos violentos dos impulsos doentios sem freios, também ficam distantes de uma análise aprofundada.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Legalidade



Insurreição pela Democracia

O diretor, roteirista e produtor Zeca Brito realiza um grande resgate histórico nacional com o drama sociopolítico Legalidade, de uma época ainda não explorada pelos cineastas e teatrólogos. Através de uma narrativa recheada de ingredientes emocionais, a obra conta a história do movimento ocorrido em 1961, que também empresta o nome ao título do longa-metragem. O governador da época no Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, liderou uma rebelião popular em Porto Alegre que se proliferou por todo o interior do Estado, com a finalidade de assegurar a posse de seu cunhado, o então vice-presidente João Goulart, carinhosamente conhecido como Jango, após a renúncia de Jânio Quadros. Esta é uma obra que vem suprir uma lacuna no cinema brasileiro em relação ao gênero das epopeias políticas, e desconhecida por grande parte da população, que iria culminar com o golpe militar três anos depois. Com sensibilidade e uma mescla de fatos reais e outros de ficção, o realizador cria um ambiente emblemático que dá indícios das mazelas e das fragilidades democráticas no país, bem exemplificada no cenário político e social que antecedia e já indicava os destinos da nação. Há uma verdadeira onda de caça aos comunistas vistos por todos os lados, como no episódio da viagem de Jango ao exterior e a proibição de sua posse pelo alto comando militar: os ministros Odílio Denys, da Guerra; Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica; e Sílvio Heck, da Marinha; com o suposto apoio logístico dos EUA.

Um típico filme revelador sobre os momentos que antecederam o golpe de Estado ocorrido em 1964. Brito é um jovem promissor cineasta gaúcho, de 33 anos, que dirigiu a comédia dramática Em 97 Era Assim (2017), os documentários Glauco do Brasil (2015) e A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro (2017). Divide o roteiro com Leo Garcia em um enredo urdido, no qual desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento para outros. O cenário é o Brasil de 1961, quando Jânio Quadros renunciou seu mandato presidencial em 25 de agosto daquele ano e o vice-presidente João Goulart, irmão de Neusa que era casada com Brizola, seria o sucessor natural ao cargo como previa a Constituição Federal. Mas não foi serena a transição, tendo em vista que setores conservadores da sociedade, liderados por militares da ala radical, avessos à conduta simpática do vice pela reforma agrária e sua viagem em missão oficial ao país comunista da China, obstacularizam sua posse temerosos de suas posições de esquerda. Jango tinha sido o ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas, quando implantou as reformas trabalhistas com substanciais direitos aos trabalhadores. Surge então o movimento da Legalidade para garantir o estado de direito e o cumprimento da norma constitucional da posse comandado por Brizola (Leonardo Machado- de ótima interpretação em seu último papel, pois viria a falecer de câncer logo após as filmagens), que teria mais tarde o apoio e a adesão institucional do comandante do Terceiro Exército, general José Machado Lopes, com sede em Porto Alegre.

O diretor retrata com lucidez e dá luzes ao impasse declarado com a iminência do bombardeio ao Palácio Piratini do governo, que viria confiscar os transmissores da Rádio Guaíba e instalar nos porões do paço para se comunicar com o povo nas ruas e em suas residências. Eram distribuídos revólveres, pistolas e espingardas à população para realizar o motim em nome da defesa do preceito legal constitucional embalados pela marchinha da Legalidade cantada pelos adeptos em todos os cantos e rincões em que chegavam os discursos inflamados do líder rebelde gaúcho. É comovente a sequência no trem em que os passageiros assoviam como forma de resistência para tentar a aquiescência dos soldados presentes, numa inspirada referência ao hino da Marselhesa, do clássico Casablanca (1942), de Michael Curtiz, diante das semelhanças com a situação política efervescente numa cidade inflamada pelos discursos da convincente retórica. Foram 13 dias de pura tensão e a iminência de uma guerra civil estendidos até 7 de setembro, quando houve o acordo salomônico pelo parlamentarismo, com Jango empossado de direito e o deputado federal Tancredo Neves assumindo como primeiro-ministro para governar de fato. Brizola era contrário ao espúrio acordo, pois queria que o levante marchasse até Brasília, mesmo com o provável derramamento de sangue, acusava Jango de ser a rainha da Inglaterra: reina, mas não governa.

Em meio à turbulência política que frustrara o golpe, o roteiro narra os fatos verídicos num processo de pesquisa em livros, testemunhas oculares do ocorrido como políticos, historiadores e jornalistas. Porém insere uma subtrama com situações discutíveis ficcionais irrelevantes, através de um ardiloso triângulo amoroso formado por Cecília (Cleo Pires), uma estranha jornalista brasileira de pouca ética, contratada como correspondente do jornal norte-americano The Washington Post, mas também exercia uma missão de espionagem para os EUA. Ela namora os irmãos Tonho (José Henrique Ligabue), um colega repórter-fotográfico, boêmio, de quem se aproveita para se aproximar de Brizola, e o outro irmão Luiz Carlos (Fernando Alves Pinto), um antropólogo simpatizante de Che Guevara que faz um trabalho com os índios nas missões de São Miguel. Deste relacionamento triangular, surge a personagem Blanca (Letícia Sabatella), como sendo a filha de Cecília, faz algumas investigações nos arquivos da ditadura para descobrir o paradeiro da mãe e a identidade do verdadeiro pai, num salto do tempo de mais de 40 anos. As revelações afloram e o diretor faz uma provocativa comparação conceitual política entre o movimento legalista com o golpe militar instituído posteriormente, como fatos históricos ocorridos nos conturbados períodos de instabilidade institucional dos anos de 1960.

Com um orçamento pequeno de três milhões de reais, há uma apurada ambientação cênica, com cuidados especiais no figurino da época e na direção de arte diante do irretocável apuro técnico, especialmente na recriação da década de 60. Dá consistência e ritmo com imagens antigas de arquivos sendo misturadas com filmagens atuais que irão ajudar a mergulhar no período retratado. Um filme que baliza um fato épico pouco difundido aos brasileiros em geral. Legalidade é um marco no cinema pela sua relevância histórica, embora não seja definitivo, é obrigatório tanto para quem se interessa por História como pela sétima arte. Embora o roteiro resvale na insistência de um artificial romance descartável, não invalida o drama que reflete a incontestável força de uma liderança política vanguardista que amealhou a anuência da população e do dissidente comandante do III Exército. Em um momento oportuno pela manutenção democrática tão torpedeada pela irracionalidade de métodos conservadores e retrógrados, surgem as lembranças de um passado ainda bem recente de um painel triste e vergonhoso de uma época a ser refletida. Apesar de alguns tropeços no desenrolar da trama, fica a inesquecível resistência como legado democrático, que ainda faz a maioria dos espectadores se emocionar, cantar, deixar escorrer algumas lágrimas e aplaudir efusivamente quando aparecem os créditos finais na tela.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Bacurau



A Resistência

Depois do cultuado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de Melhor Filme no Festival do Rio, Kleber Mendonça Filho causou polêmica com Aquarius (2016) pelo protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes, o longa virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. O primeiro longa do diretor refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife, mostrando belos moradias bem protegidas. O retrato do dia a dia de uma dona de casa cansada e com dois filhos, representante típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha. Já na segunda realização, a temática do cotidiano é abordada pela especulação imobiliária desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e os desejos de escolha e opção do cidadão. Trazia um realismo da exacerbação pela intransigência de métodos absurdos pela coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe vendesse seu apartamento para construir um novo prédio no espaço.

Ganhador do prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, Bacurau (nome de um pássaro noturno que inspirou o apelido do último ônibus da madrugada em Recife), é a nova realização de Mendonça Filho, que divide a direção com Juliano Dornelles. Com arrojo é criado um marcante faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata. Naquele singelo lugarejo que empresta seu nome ao título do filme, um distrito fictício do município de Serra Verde, no Oeste de Pernambuco, com locações no povoado de Barra, no sertão de Seridó, entre Rio Grande do Norte e Paraíba, o prefeito demagogo é malvisto por camuflar a água depois da interdição premeditada de uma represa para abastecer a população somente com um caminhão-pipa. Não desiste da campanha para a reeleição que está prestes a começar e sofre represálias dos seus eleitores que não o recebem e se escondem em suas humildes residências.

A trama tem um elenco coeso e sem estrelismo nesta história surreal contada por uma narrativa apreciável, com toques de bom suspense nos artifícios do roteiro dinâmico. As subversões propostas irão ao encontro do espectador para decifrar as sugestões do gênero no seu desenrolar. Teresa (Bárbara Colen) é a jovem que retorna à terra natal para o enterro da avó; Domingas (Sônia Braga) é a única médica, mas exerce um espírito de discutível liderança; Plínio (Wilson Rabelo) é o professor da comunidade e paizão de todos; Acácio, vulgo Pacote (Thomas Aquino) é um criminoso que irá se aliar a Lunga (Silvero Pereira) que reedita o cangaço pela clássica degola, uma analogia ao bandoleiro Lampião das selvas nordestinas em novos tempos, mas sem a Maria Bonita, eles são figuras importantes na resistência heroica; Michael (Udo Kier) é um alemão radicado nos EUA que chefia os milicianos estrangeiros e a crueldade está inerente em seus atos frios e premeditados. A fotografia captada em ambientes peculiares das caatingas do Nordeste foi registrada com extrema elaboração de cores por Pedro Sotero, parceiro nos filmes anteriores de Mendonça Filho. Outro ponto forte é a fascinante trilha sonora, especialmente no prólogo com a canção Não Identificado, de Caetano Veloso, na bela interpretação de Gal Costa, e o magnífico desfecho com Réquiem para Matraga, um verdadeiro hino do protesto, do enigmático cantor e compositor Geraldo Vandré.

O filme começa com a morte de uma lendária habitante de 94 anos, os moradores descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa na internet, exceto nos antigos rolos de papel guardados por um líder local. Os sinais da telefonia móvel também somem misteriosamente e, aos poucos, irão percebendo que fatos estranhos e aterradores na região estão acontecendo. Há uma tensão no ar com os drones no formato de disco voador que circulam pelos céus. Um casal de aparentes motoqueiros inofensivos simula um passeio pelas trilhas e estrangeiros chegam do nada à pequena cidade. Os carros são metralhados e alguns nativos morrem vítimas de tiros sem qualquer explicação plausível para os fatos inusitados que colocam todos em pânico. Sem identificar inicialmente o inimigo e induzir o medo no coletivo para criar um meio de defesa em boa parte do enredo, os diretores tentam fugir das armadilhas sorrateiras entre o bem e o mal, mas deslizam sutilmente para um ardiloso maniqueísmo. As alegorias buscam a empatia do público pela história contada com subsídios básicos e indispensáveis para a construção de um filme revelador das tramoias com artimanhas politiqueiras enjambradas por maus executivos detentores do poder, no caso o prefeito corrupto e sua obstinação pela continuidade em um contexto de opressão psicológica e crimes bárbaros que se sucedem.

Bacurau é importante pela relevância no cenário nacional diante das imagens cruas e os diálogos incisivos com simbologias determinantes. A heterogeneidade rompe com a mesmice do protagonismo único, pois todos os personagens são necessários e se encaixam nesta grande babel construída. Cada um desempenha um papel específico para ceder seu espaço a outro na cena posterior, na qual a situação sociopolítica está presente de maneira metafórica, como na invasão dos colonizadores norte-americanos em conluio com péssimos políticos tupiniquins travestidos de defensores do povo. Os caixões em abundância na cidade para suprir as necessidades da tragédia anunciada funcionam como elementos que contrapõe em uma outra alegoria premonitória das execuções sumárias em São Paulo, vistas na televisão, mas atual para os moradores. É o simbolismo da classe oprimida contra as classes dominantes, em que a vingança é o elemento preponderante para afastar ou dar um basta aos usurpadores. Atual e corrosivo pelo olhar crítico de seus realizadores pelo prisma do inconformismo da corrupção atávica nesta curiosa fábula social sobre a insegurança que vai se instalando e refletirá na tranquilidade estremecida de uma comunidade em polvorosa pelas crueldades que tomam corpo e se avolumam cada vez mais. São os contrastes da atualidade brasileira de anomalias e distanciamentos que avançam com sintonia pesada de fatos violentos e reais em uma narrativa ousada com méritos, sem cair nas obviedades de obras menores. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com qualidade esta emblemática obra sobre a injustiça pela justiça da redenção através da resistência em defesa do bem maior: a vida.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Era Uma Vez em...Hollywood



Celebração Épica

O badalado cineasta Quentin Tarantino em sua última frase de Bastardos Inglórios (2009) dizia: "acho que essa é a minha obra-prima". E era bem provável que fosse. Um filme recheado de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do paradoxo, mesmo com a vingança explícita do massacre da família estampada no rosto da judia-francesa, reescreveu a história de forma consagradora. Embora houvesse algumas restrições pela facilidade dos abusos pela força. Depois, arrasou com Django Livre (2012), ao dar nova conotação à saga no efervescente e original faroeste, dando oportunidade aos escravos do Sul dos EUA, dois anos antes da sanguinolenta guerra civil (1861-1865), em mandar para os ares os brancos que tanto lhes oprimiram. Foi a vingança escravocrata no Velho Oeste contada pelo irrequieto e inesgotável diretor, assim como fizera na realização anterior, seguiu a mesma estética narrativa desde o prólogo com as cenas sequenciais da urdida trama. Fechou a trilogia das fábulas históricas com Os Oito Odiados (2015), retornando ao gênero do faroeste para apresentar os caçadores de recompensa, que agora buscam abrigo no Armazém da Minnie, lugar que serve de pousada durante uma tempestade de neve que durou dias. Debatiam e questionavam os resquícios que sobrevieram da guerra dos confederados entre sulistas e nortistas nos EUA num cenário de teatro operístico para um tiroteio verbal sobre os meandros e as consequências da batalha sanguinolenta que durou quatro anos.

Era Uma Vez em...Hollywood é mais uma espetacular criação deste gênio da sétima arte, com 161 minutos que passam voando na telona. Nem dá para se perceber a duração extensa, pois o espectador fica saboreando de maneira inebriada a essência construída pelo cinema neste seu último longa-metragem. É uma verdadeira ode prazerosa à indústria cinematográfica mais famosa do mundo. O lado obscuro de Hollywood quase sempre foi um tema retratado dentro de um exercício satírico e crítico que já rendeu obras memoráveis de diretores inesquecíveis. Assim foi com Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, Assim Estava Escrito (1953), de Vincente Minnelli e O Jogador (1992), de Robert Altman. Os mais recentes que fizeram alusão ou alguma crítica velada foram Acima das Nuvens (2014), de Olivier Assayas, o festejado vencedor do Oscar Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância (2014), de Alejandro González Iñarritu, e Mapas para as Estrelas (2014), do veterano diretor canadense David Cronenberg, quando satirizou de forma irônica a perversidade infiltrada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem limites das celebridades hollywoodianas. Mergulhou num cenário de vaidades, recheado de sarcasmo para dar vida e consistência devastadora à indústria norte-americana.

Tarantino prometeu encerrar a carreira quando concluir o décimo filme. Chegou agora na nona obra, mas espera-se que não cumpra a palavra e seja apenas uma jogada de marketing, pois ainda tem muito para contribuir com seu talento meritório inerente de alta qualidade entre tantas mediocridades que pululam nossas salas. Construiu uma comédia dramática que deriva para a fábula adulta que privilegia a liberdade para contar uma história fascinante na fase de transição da sétima arte. A trama é ambientada em Los Angeles, no ano de 1969, em apenas três dias na vida de dois atores em decadência diante das profundas mudanças sociais e políticas convergentes no universo dos mortais. São os novos tempos que emergem com transformações de rumos de uma nova Hollywood na qual terão que se adequar. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um galã de televisão e filmes de faroestes que está perdendo espaço. Bebe e fuma compulsivamente num processo de degradação pessoal pelas frustrações da profissão que se sucedem. Ao seu lado está o dublê exclusivo, parceiro e amigo fiel, Cliff Booth (Brad Pitt), com fama de ser violento e ter praticado um homicídio no passado, é malvisto entre os colegas pelo temperamento de brigão, mas tem como objetivo fazer carreira em Hollywood. Estão sempre juntos, tanto nos raros bons momentos, como nos frequentes períodos de fase ruim. Dalton já não conhece tantos astros renomados de outrora, mas tem como vizinha Sharon Tate (Margot Robbie), uma jovem atriz promissora de 26 anos que fazia sucesso pela participação no suspense O Bebê de Rosemary (1968). Ela estava grávida do marido e diretor Roman Polanski (Rafal Zawierucha), que fazia uma turnê pela Europa, quando foi brutalmente assassinada com quatro amigos, em 09 de agosto de 1969, pelos membros de uma seita composta por hippies e comandada pelo fanático Charles Manson.

O realizador coloca de maneira sutil a contracultura do movimento hippie que eclodiu nos anos de 1960 em choque com a ascensão da estrela que brilha e faz furor, através de uma tragédia brutal que comoveu o mundo. Não carrega nas tintas fortes dos tiros, explosões e dilaceramentos de corpos, deixando para o epílogo sua marca registrada, porém de maneira contida e equilibrada. Era uma Vez em... Hollywood é um épico em tom de comédia voltado para homenagens com o paradoxal sabor doce e melancólico à indústria cinematográfica em transição. São inoculadas as verdades mescladas com mentiras relatadas através da magia de uma grande fábula naquele universo fantástico de sonhos realizados ou frustrados. A desglamourização é acentuada na inventiva subversão ficcional contrapondo com a realidade de fatos singulares ocorridos. O diretor não visa buscar elementos novos para decifrar o assassinato ou questionar o movimento pseudorreligioso através das referências à cultura pop, por ser apenas um pano de fundo para o enredo magistral que se desenrola e lança algumas luzes sobre um futuro pessimista.

No entanto, seu último longa é uma vertente de amor ao cinema com um viés tênue nostálgico, que substitui de maneira clara e evidente o prazer do sangue em profusão por diálogos marcantes e profundos. A narrativa é emotiva em algumas cenas e em outras traz, às vezes, um sarcasmo embutido pela atmosfera do bom humor com sutilezas nas imagens reveladoras de um cinema de exceção. Num cenário da Los Angeles antiga, foi recriado com esmero e fidelidade através de uma produção impecável de figurinos, automóveis e prédios que nos remetem para os anos de 1960. Elogios à trilha sonora que atua como um coadjuvante certeiro sem invadir a trama, embalando agradavelmente o espectador. Abordar em formato lúdico em uma estrutura pouco convencional, introduzindo e deslocando personagens livremente no ardil de um roteiro dinâmico com longos planos-sequência, depois cortar e ir para contraplanos eloquentes, não é para realizadores neófitos da mesmice ou veteranos limitado. Só os grandes autores conseguem prender uma plateia por mais de duas e meia em uma história complexa, exceto estão os grandes mestres, e entre eles está Quentin Tarantino no cotidiano de seus anti-heróis brilhantemente encarnados por DiCaprio e Pitt, pela primeira vez contracenando juntos. Um extraordinário filme que estará certamente entre os dez melhores nas listas de fim de ano.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Vermelho Sol



Hipocrisia e Opressão

Vem da Argentina em coprodução com o Brasil, França, Holanda e Alemanha um típico filme perturbador sobre os momentos que antecederam o golpe de Estado ocorrido em 1976 no país vizinho. O drama sociopolítico Vermelho Sol registra com sutilezas e sugestões o ambiente do ano de 1975, logo após a morte do presidente Juan Domingo Perón e a ascensão ao governo da esposa e vice Isabelita Perón, com a consequente deposição da mesma, e a instalação da Junta Militar sob a batuta do sanguinário general Jorge Rafael Videla. A direção é do jovem promissor Benjamín Naishtat, de 33 anos, que nasceu após o fim da democracia e a decretação do estado de sítio com uma repressão violenta contra seus compatriotas, tendo como efeito o exílio de sua família na França, com alguns voltando e outros familiares ficando por lá mesmo. Guardou na memória sua casa da infância abandonada sendo saqueada e queimada por vizinhos em Córdoba, que levaram tudo o que podiam, sendo objeto de inspiração para os fatos ocorridos no desenrolar da trama de sua realização com forte influência no passado de reminiscências.

O realizador estreou na ficção com a mescla de suspense e drama familiar Bem Perto de Buenos Aires (2014). Retratou as ações cotidianas dos personagens que transitam ou moram num cenário de dúvidas pela perda da tranquilidade de um local costumeiramente pacato, que se deixa abalar pelo instinto e pelo sentido sensorial repassado para a plateia como um componente de fatos estranhos que poderia se desenrolar trazido pela escuridão, mas com o viés da insegurança pela luta de classes. Mostrava um helicóptero da polícia sobrevoando uma área vizinha na periferia de Buenos Aires de um condomínio horizontal luxuoso, dando o aviso de desocupação aos invasores. O diretor admitiu ter se inspirado no soberbo O Pântano (2001), da conterrânea Lucrecia Martel, mas na realidade sua obra deriva mais para o badalado O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, ao abordar classes sociais diferentes com personagens de lados opostos entre a pobreza e a elite. Não é por acaso que trouxe para fotografar seu último longa o brasileiro Pedro Sotero, que tem no currículo Aquarius (2016) e o drama brasileiro já mencionado, que rendeu ao fotógrafo o prêmio máximo no Festival de San Sebastián, sendo também premiados o diretor e o ator principal.

Vermelho Sol tem um enredo bem urdido com um roteiro enxuto do próprio cineasta, no qual desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento velado em outros. Claudio (Darío Grandinetti, de sóbria interpretação, é o mesmo de Fale com Ela e Relatos Selvagens) é um veterano advogado, que atua tanto nas causas éticas tanto quanto nas antiéticas pela corrupção assumida, como na cena da casa adquirida pelo meio de um usucapião forjado. Ele vive uma vida calma, confortável, em forma de harmonia com a filha adolescente e sua esposa, Susana (Andrea Frigerio), numa pacata cidade interiorana onde aparentemente poucas coisas acontecem. Numa noite qualquer, está em um tradicional restaurante sentado sozinho à espera da mulher para jantar, quando surge um estranho (Diego Cremonsesi) com quem travará uma acirrada discussão por uma mesa e acabará de maneira arrogante humilhando o desafeto. Haverá desdobramentos na saída do estabelecimento com um desfecho trágico já no magnífico prólogo da realização, que causará uma virada de rumo na rotina do protagonista.

Com o surgimento do detetive particular chileno, Sinclair (Alfredo Castro, de ótima atuação, conhecido pelos papéis marcantes em A Cordilheira e Cachorros), contratado para investigar o desaparecimento de um rapaz da comunidade, o causídico irá se inteirar do movimento repressor que está acontecendo. Ou não imaginava por alienação e desconhecimento de causa, ou por hipocrisia sob o manto da acomodação da tranquila zona de conforto. Os infortúnios irão aflorar e o anuviamento começa então a se dissipar paulatinamente. O detetive faz colocações pontuais no encontro dos dois no deserto sobre o período cinzento que está tomando conta da Argentina com a tomada do poder pelos militares, com insinuações evidentes da aparelhagem repressora e o abalo que a sociedade civil está à mercê do destino que traria reflexos devastadores. A gangue juvenil que sequestra e faz sumir um jovem inocente por uma situação sentimental é outra evidência dos rumos tenebrosos que se aproximam. Mas é mais reveladora ainda a cena do eclipse em que o sol fica sombrio como um singular prenúncio metafórico dos novos tempos de terror que estão chegando.

Um painel triste e vergonhoso de uma época a ser esquecida pelo povo argentino, diante de uma narrativa vigorosa sobre o turbulento período dos anos de chumbo com as tensões sociais se sucedendo com ingredientes sutis num lugarejo longínquo de uma província do interior, na qual as regras da sociedade mudaram drasticamente. Não se podia dizer tudo o que se pensava, diante da pressão que faria as pessoas se sentirem vigiadas, tendo como corolário a fuga dali para nunca mais voltar. Alternativas sorrateiras eram ditas, entre elas: foram passear, ou alegações de que ficaram doentes, porém a maioria desaparecia para sempre. Havia uma ode aos Estados Unidos como solidários e amigos, marcante no episódio dos vaqueiros norte-americanos que eram o elo de amizade entre os dois países circunstancialmente alinhados com o mesmo propósito.

A imprensa local louvava as questões otimistas, exceto um jornalista que é torpedeado numa resposta em tom de pergunta atemorizante. A maioria não questionava a intervenção branca e invasiva com o viés da interferência no governo vigente e democrático, através de um apoio logístico que se tornaria um genocídio sangrento com sequelas duradouras e temerárias para quem era contrário ao regime de exceção, numa estimativa de trinta mil entre mortos e desaparecidos. Dissimulações e mentiras frequentes andavam juntas nos arranjos para obscurecer a verdade ficar completamente escondida. O pragmatismo daquele suposto homem digno é uma farsa, como na representação do show da mágica, como os rombos na sua estrutura psicológica prestes a desmoronar, pois são sustentadas por pilares podres escondidos atrás de uma moral de bons costumes estereotipados, pela prepotência num sistema em que está presente a derrota vestida de uma violência humilhante num ambiente arruinado, mas abastecido pela agressividade e barbárie. Vermelho Sol mergulha em imagens e diálogos com força expressiva para qualificar esta admirável realização sobre a opressão em consonância com a hipocrisia numa requintada reflexão política e social.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A Árvore dos Frutos Selvagens



Painel de Conflitos

O consagrado diretor e roteirista turco Nuri Bilge Ceylan está de volta com A Árvore dos Frutos Selvagens, um ótimo drama que aborda com profundidade a religião, a filosofia, os aspectos sociais, a economia, a política e as intrínsecas querelas familiares. Um filme de 188 minutos pode assustar no primeiro momento, mas surpreendentemente flui e anda com uma boa dinâmica do multifacetado roteiro, embora os diálogos sejam longos e por vezes exaustivos e repetitivos. Os conflitos de uma família soam como elementos alegóricos para retratar a existência de momentos marcantes na vida de personagens destroçados por um país em crise política sob a batuta de um regime autoritário comandado por Recep Erdogan. Salta aos olhos uma sociedade atrelada flagrantemente à religião e aos abusos de um governo de exceção, simbolizados eloquentemente na saga pelos desmandos da derrocada e divisão dos membros daquele microcosmo intimista em iminente decomposição moral e com a dolorida perda da dignidade humana pelos vínculos rompidos.

O cineasta venceu a Palma de Ouro e o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes com a extraordinária realização Winter Sleep (2014), batizado no Brasil com o título Sono de Inverno, na qual faz uma reflexão magnífica sobre a existência e seu sentido na essência da vida, os efeitos do tédio e o ressentimento de um homem em crise e com a sensação de perda da parceira, acompanhado da solidão e da velhice que aflora de forma avassaladora. Realizou o longa Distante (2002), vencedor de Melhor Ator e o Grande Prêmio do Júri de Cannes; com Climas (2006) levou o Prêmio da Crítica da 30ª. Mostra de Cinema de São Paulo; foi laureado como Melhor Diretor em Cannes pelo perturbador Três Macacos (2008). Mas Ceylan arrasaria com o estupendo Era Uma na Anatólia (2011), talvez o melhor de todos, pelo qual abocanhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes. Uma mescla de filme policial noir com drama social numa aparente e singela investigação de um crime, durante uma noite inteira com o desfecho no outro dia, em que nada funciona, a começar pelos carros corroídos pelo tempo e completamente arcaicos. Solidificou-se como um realizador preocupado com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia estava, e ainda está, presente no caos que se instala nas improvisações que vão desde a polícia até a medicina, passando por um judiciário ultrapassado e inócuo para resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe rodeada de colinas.

A Árvore dos Frutos Selvagens é uma trama bem urdida para representar a crise do jovem Sinan (Dogu Demirkol- pouco convincente no papel), um apaixonado por literatura que sempre sonhou em se tornar um grande escritor, faz de tudo para conseguir juntar dinheiro e investir na sua primeira publicação, na qual aposta tudo. Ele tem vinte e poucos anos, está recém-formado na faculdade, e retorna à região em que nasceu, mas vive às turras com o pai, Idris (Murat Cemcir- de atuação impecável), um professor fracassado em meio à complexidade da situação em que se encontra pela decadência profissional, moral e familiar, por ser um apostador contumaz no hipódromo. Lá, gasta todo o dinheiro e está endividado com agiotas. Embora ame os filhos e a mulher, se mantém à distância, pois gosta mesmo é de criar suas ovelhas na zona rural, tenta encontrar água num poço no qual perfura com esperança, porém traz um trauma que remete à infância quando bebê ao ser tomado pelas formigas. A mulher do docente não aguenta mais a situação caótica em casa com corte de luz devido à falta de pagamentos, a residência hipotecada pelo marido por dívidas recorrentes e a filha sem grandes perspectivas de futuro. O aspirante a escritor luta pelo financiamento de seu livro, vai ao encontro do secretário da prefeitura, de comerciantes e busca ajuda junto a um renomado intelectual do lugarejo. Debate com a namoradinha de infância e o líder imame muçulmano local sobre a religião, aborda temas amplos como os usos costumes, a cobiça, o amor e a filosofia não acadêmica, ou seja, do cotidiano da vida simples dos personagens aldeões, questionando muitas vezes as ideias de maneira utópica e arrogante. As cenas são recheadas de desavenças que surgem aos poucos, ao fio de longos diálogos de forma lenta e progressiva.

O drama consiste em um mergulho filosófico para criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, não importa. Mas todos com alma e coração quase sangrando. A relação fria e distante entre marido e mulher pelo afastamento emocional num casamento de aparências, onde ele tenta controlá-la e mantê-la afastada de seu trabalho comunitário, o que irá gerar mais discórdias e crise conjugal. A relação do pai com os filhos também é conturbada, especialmente com o rapaz. São fatos do cotidiano que gravitam no painel construído por Ceylan, em que as estações do tempo mudam gradativamente e o espectador acompanha pela natureza em transformação, através de um cenário deslumbrante como no farfalhar das folhas que corta o silêncio, os frutos chegando como alimento e a nevasca por todos os lados predominando o inverno. Há no desenrolar da história um aprofundamento intenso nos diálogos de questionamentos implacáveis, pela maneira elegante da condução com um toque de classe seco com extremo realismo de cenas de som direto em longos planos sequenciais, ao melhor estilo do rigor formal clássico bem típico do diretor.

Ceylan invoca facilidade na técnica para prender o espectador, retratando o dia a dia que se dilacera num contexto de grande cinismo e domínio do poder sobre os menos favorecidos. Deriva para o desemprego e a humilhação com os efeitos do tédio e da desilusão do jovem escritor e a aproximação com o pai realista, capturado no simbólico encontro libertário no epílogo metafórico de luzes e esperanças no fim do túnel, ou do poço. Um desfecho que revela e joga alguma centelha positivista, embora tênue, numa tentativa de recompor e burlar o pessimismo, diante das revelações que irão fortalecer os vínculos familiares estremecidos. O filme tem o movimento interessante de uma câmera em planos-sequência longos, rara vezes em contraplanos curtos, captando as imagens e a valorização primordial da importância da palavra. Eis uma obra que instiga e faz refletir sobre os conflitos como mola propulsora para ir ao encontro das decorrentes fragilidades dos aspectos sociais e a relação direta com a abominável política de um regime arbitrário.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O Bar Luva Dourada



Crimes Hediondos

O diretor, roteirista e produtor alemão de ascendência turca Fatih Akin é considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo da Alemanha. Tem brilho próprio, assim como seu conterrâneo Christian Petzold, visto recentemente no elogiado Em Trânsito (2018). O cineasta tem em sua filmografia realizações rigorosamente instigantes sobre imigração. Com o notável Contra a Parede (2004), ganhou o Urso de Ouro em Berlim; foi sucesso de público e crítica com o deslumbrante documentário musical Atravessando a Ponte- O Som de Istambul (2005); com sua possível obra-prima, Do Outro Lado (2007), obteve o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes; já na elogiável comédia dramática escrachada Soul Kitchen (2009) abocanhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza; obteve a láurea de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro por Em Pedaços (2017), que retrata a morte por explosão de um ex-traficante e seu filho depois de cumprir pena e tem na arrasada mãe e ex-companheira a busca incessante de justiça para os crimes de seus familiares.

Depois de demonstrar toda sua sensibilidade e vigor estético inovador em suas obras anteriores, Akin retorna com o contundente O Bar Luva Dourada para se aprofundar nas mazelas decorrentes das feridas abertas de uma sociedade ainda traumatizada pelos efeitos do nazismo. Envolve e perturba o espectador com este drama mesclado com suspense, adaptado do livro de Heinz Strunk sobre fatos reais praticados por um serial killer nos anos de 1970, no boêmio bairro St. Pauli da cidade de Hamburgo. Fritz Honka (Jonas Dassler) é um homem fracassado, horrendo, de rosto deformado, que perambula pelas ruas ao redor de outras criaturas perdidas, sem que ninguém desconfie ser ele o assassino em série. O protagonista persegue mulheres mais velhas e solitárias que conhece no seu bar favorito Zum Goldenen Handschuh, que dá nome ao filme, para atrair prostitutas idosas à procura de aconchego e bebidas, levá-las para o sótão de seu claustrofóbico apartamento. Lá, ele mata e esquarteja as vítimas, guarda os pedaços dentro das paredes, mas quando alguém reclama do fedor, atribui o mau cheiro à culinária de vizinhos gregos e disfarça com perfumes o local para afastar suspeita. Os jornais começam a noticiar os desaparecimentos sucessivos, o que irá causar medo e apavorar a comunidade em uma das mais complexas investigações de crimes hediondos ali presenciados.

Uma realização ao melhor estilo da escola alemã, através de um roteiro dinâmico por uma narrativa sem subterfúgios e emblemática sobre o cotidiano simples de pessoas sem destinos e ignoradas por serem excluídas da sociedade de consumo, onde somente o cigarro e as grandes bebedeiras irão confortar aquelas almas penadas e sofredoras. Com cortes certeiros e precisos, sem concessões para o espectador num realismo brutal, em um tom seco e direto com artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das angústias políticas contemporâneas de um universo de dúvidas e aflições constantes. Filmado em dois ambientes melancólicos: o bar boêmio e a residência do psicopata. No estabelecimento há brigas constantes na penumbra com o fundo musical tocando canções entristecidas, com frequentadores contumazes bebendo no balcão sob o embalo da trilha sonora fabulosa que, na primeira cena, ouve-se “Never On Sunday” (Nunca aos Domingos), do filme grego de 1960 de Jules Dassin, tendo a música de mesmo nome composta por Manos Hadjidakis e ganhadora do Oscar de Melhor Canção Original. Há algumas lamúrias de personagens desencontrados em meio a discussões mais acirradas com confissões sobre o passado de uma prostituta queixosa de sua profissão no fim da Segunda Guerra Mundial. Ou ainda, o olhar atônito do esquisito ex-soldado que lutou pelo seu país e agora apresenta sequelas físicas e psicológicas que o distancia de um ser humano com lucidez de raciocínio lógico. Já no apartamento imundo repleto de bonecas e com mulheres nuas decorando as paredes para satisfazer as fantasias sexuais do homem impotente. O sangue em abundância é um ingrediente de marca registrada proveniente da violência explícita praticada por Honka, uma espécie de Jack, O Estripador, na versão alemã.

Um capítulo à parte é a antológica interpretação do jovem ator galã Jonas Dassler, de 23 anos, completamente irreconhecível pelos efeitos da maquiagem transformadora com uso de próteses, na pele do personagem central que conduz a trama pelo marcante caminhar encurvado nas costas, ao melhor estilo do célebre personagem francês Corcunda de Notre Dame. Segura até o desfecho inusitado com seu olhar atemorizante em um enredo recheado de crueldade que deriva para um cinema frenético de resultado fantástico. Quando solta seus guinchos de insatisfação e loucura plena de um ser que não se satisfaz com as mulheres, vem à lembrança os gritos semelhantes de Hitler na sua insensata e tresloucada busca animalesca do domínio mundial, em uma analogia metafórica ao velho ditador nazista de uma sociedade doentia ainda impactada pelo passado. Paradoxalmente o personagem se apresenta como filho de um comunista preso no campo de concentração, que de varredor de uma fábrica passa a vigilante no novo emprego, estufa seu ego com a roupa que dará ostentação e orgulho de poder como evidências reveladoras.

O Bar Luva Dourada é uma singular realização sobre os seres humanos destroçados pelo tempo, em uma exemplar reflexão sobre a irracionalidade bestial neste painel arrebatador pelo olhar questionador de um realizador sobre as fragilidades humanas. O drama não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz de algumas realizações pouco consistentes. Causou algum desconforto na apresentação do Festival de Berlim, em fevereiro de 2019, diante da tensão e da intensidade elaboradas com alguma dosagem de exageros que poderão causar náuseas em pessoas mais suscetíveis de estômagos sensíveis. As construções de personagens psicologicamente derrotados na vida e em situações que beira o abismo estão bem alicerçadas por uma direção autoral magnífica, através de uma forte complexidade dos detalhes pelas dores que carregam de traumas da rejeição ao prazer, da perda da dignidade e da piedade como elementos que afloram pelos métodos violentos dos impulsos doentios sem freios. São reflexos de uma sociedade de invisíveis marginalizados no refúgio do bar contrapondo com os dois jovens personagens intrusos representantes da casta burguesa. Contextualizado dentro de um clímax embrutecido por um panorama sombrio oriundo desde o pós-guerra, em que a selvageria impacta e devasta pela solidão com lembranças pretéritas nefandas. Desde já, insere-se entre os 10 melhores filmes do ano.