quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Uma Mulher Alta



Vidas Reconstruídas

Vem da Rússia o instigante Uma Mulher Alta, do jovem diretor, roteirista e montador Kantemir Balagov, de apenas 30 anos, em seu segundo longa-metragem, antes realizara Tesnota (2018). Está credenciado pelos prêmios de melhor direção e prêmio da crítica na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes de 2019. Este é um daqueles filmes marcantes, que causa uma ótima impressão pela abordagem direta e sem grandes artifícios pirotécnicos, ao enfocar de maneira criativa e sensível fatos tristes na massacrada cidade de Leningrado, em 1945, decorrentes do término da Segunda Guerra Mundial. Principalmente pelo rigor formal da narrativa, nos lembra os grandes clássicos cinematográficos. Foi inspirado livremente no romance A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch.

Um drama de guerra magistral com uma beleza estética rara, tanto na direção de arte como na linda fotografia, amparado por um elenco coeso, tendo nas estreantes atrizes protagonistas interpretações irretocáveis. Há alguma similitude de uma temática equivalente no filme Uma Casa com Torre (2012), da ucraniana Eva Neymann. Balagov retrata a história centralizando a trama em Iya (Viktoria Miroshnichenko- de sóbria atuação, não se destacou somente pela altura) e Masha (Vasilisa Perelygina- soberba em seu papel), duas jovens mulheres que buscam uma nova vida com alguma esperança e um certo significado para continuarem vivendo em meio às lembranças do passado deixadas em seu país como cicatrizes abertas. Depois que a sitiada Leningrado, um dos cercos mais aterrorizantes da história mundial, chegou ao fim, a reconstrução perseguida pelas personagens centrais passa por momentos de grande tensão, dor, tristeza, advindas das mortes e dos traumas decorrentes das perdas. É a tentativa desesperada pelo sentido da vida após as tragédias que as inglórias batalhas deixaram como legados. Não à toa, a instabilidade emocional das duas mulheres tem um clima de angústia e indecisões nos sentimentos que irão oscilar entre ternura e raiva, afeto e vingança, em embates reveladores para o espectador.

O promissor cineasta coloca com admirável delicadeza os efeitos do fim de uma guerra histórica, porém as marcas indeléveis que ela deixa irão perdurar para sempre. Os silêncios marcantes de várias cenas são estímulos à reflexão desta narrativa melancólica, com desdobramentos de um resgatador sopro de luz das personagens femininas para um novo horizonte de liberdade, com o intuito de quebrar o pessimismo oriundo do domínio machista envolvido nos destinos belicistas. Magnífica a cena em que a mãe de Sasha (Igor Shirokov), o rapaz que quer namorar Masha, habilmente tenta proteger a pretensa nora, nos ásperos diálogos frios entre elas, alertando sobre o que é ser vítima de homens dominadores que devastam suas companheiras em um cenário estúpido, diante da submissão da mulher e o seu papel de inferioridade naquela sociedade aristocrática e fútil, simbolizada pela majestosa mansão. A procura da sobrevivência está em jogo e os traumas são intermináveis pelo despropósito aterrador que danifica e esmaga os sentimentos humanos de vidas inocentes sendo ceifadas. Os horrores das batalhas causam marcas implacáveis e doloridas para os soldados sequelados, como na cena do reencontro da família com o herói mutilado que precisa ser sacrificado diante da falta de condições financeiras da esposa para ajudar o marido, em que a eutanásia é o paradoxal destino menos cruel, tendo em vista que há um filho pequeno a ser sustentado na realidade sombria.

Uma Mulher Alta retrata os efeitos dos combates num cenário de intensa nevasca, em que as tragédias se sucedem, tais como a enfermeira voluntária que mora em um hospital militar para ajudar os veteranos mutilados, tem uma paralisia catatônica que se manifesta em qualquer ocasião, carrega o trauma psicológico pela morte do filho da melhor amiga, em que era guardiã. São mostradas as sobras de guerra, como se pessoas fossem animais sem importância, diante da falta de melhores cuidados para os sobreviventes. Há uma carência afetiva de um calor humano praticamente ausente naquele ambiente horripilante, embora se possa compreender pelo contato diário com vítimas destroçadas, jogadas e amontoadas no que restou daquela situação em um país convalescente pelas perdas do extermínio banalizado advindo dos campos de atrocidades com referência pelo descaso às vidas. Mas há uma busca de um futuro melhor nos sentimentos, ternuras e tristezas entre as protagonistas desesperançadas rumo ao céu ou o inferno que querem deixar para trás aquela herança maldita. A obsessiva intransigência de uma delas para ter um filho a qualquer preço, no início soa como vingança, traição e culpa, mas com o desenrolar da história novos elementos redentores irão surgir como pacificadores de um novo olhar da humanidade.

O diretor acerta a mão em cheio na aproximação das jovens em suas trajetórias por novos caminhos num país em ruínas evidentes, dentro de um panorama angustiante que não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz de algumas realizações pouco consistentes. Balagov dá uma aula de sutileza e sensibilidade ao demonstrar os efeitos nefastos de uma guerra com seus registros marcantes pelos vestígios permanentes de pouca perspectiva de recuperação. Tanto no cenário desolador do hospital simbolizando vidas destruídas ainda existentes, porém apáticas, bem como na pequena esperança daquelas criaturas agoniadas pelo tédio da amargura do passado, exceto as duas guerreiras imbuídas de algumas fibras para sobreviverem dignamente. Um grande amor é lançado das sombras de um tenebroso conflito com seus efeitos destruidores que irrompe como um vulcão adormecido naquele demarcado espaço machista, hostil e acachapante. É a busca do significado da existência remanescente de novos horizontes renascendo que irão aflorar para seguir em frente nos seus sonhos iluminados como um afago do destino. Até então muito duro e cruel, dando licença para uma reviravolta de um poema amargo com transição para um gosto mais palatável pela doçura explosiva catártica da paixão, afastando a dor latente adormecida das rupturas do sistema. Eis um fabuloso drama de reconstruções de vidas profundamente humanista, que se insere entre os melhores lançamentos do ano.

Um comentário:

. disse...


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