Vidas Reconstruídas
Vem da Rússia o instigante Uma Mulher Alta, do jovem diretor, roteirista e montador Kantemir
Balagov, de apenas 30 anos, em seu segundo longa-metragem, antes realizara Tesnota (2018). Está credenciado pelos
prêmios de melhor direção e prêmio da crítica na Mostra Um Certo Olhar no
Festival de Cannes de 2019. Este é um daqueles filmes marcantes, que causa uma
ótima impressão pela abordagem direta e sem grandes artifícios pirotécnicos, ao
enfocar de maneira criativa e sensível fatos tristes na massacrada cidade de Leningrado,
em 1945, decorrentes do término da Segunda Guerra Mundial. Principalmente pelo
rigor formal da narrativa, nos lembra os grandes clássicos cinematográficos. Foi
inspirado livremente no romance A Guerra
Não Tem Rosto de Mulher, da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana
Aleksiévitch.
Um drama de guerra magistral com uma beleza estética rara,
tanto na direção de arte como na linda fotografia, amparado por um elenco
coeso, tendo nas estreantes atrizes protagonistas interpretações irretocáveis.
Há alguma similitude de uma temática equivalente no filme Uma Casa com Torre (2012), da ucraniana Eva Neymann. Balagov
retrata a história centralizando a trama em Iya (Viktoria Miroshnichenko- de
sóbria atuação, não se destacou somente pela altura) e Masha (Vasilisa
Perelygina- soberba em seu papel), duas jovens mulheres que buscam uma nova
vida com alguma esperança e um certo significado para continuarem vivendo em
meio às lembranças do passado deixadas em seu país como cicatrizes abertas. Depois
que a sitiada Leningrado, um dos cercos mais aterrorizantes da história mundial,
chegou ao fim, a reconstrução perseguida pelas personagens centrais passa por
momentos de grande tensão, dor, tristeza, advindas das mortes e dos traumas decorrentes
das perdas. É a tentativa desesperada pelo sentido da vida após as tragédias que
as inglórias batalhas deixaram como legados. Não à toa, a instabilidade
emocional das duas mulheres tem um clima de angústia e indecisões nos
sentimentos que irão oscilar entre ternura e raiva, afeto e vingança, em embates
reveladores para o espectador.
O promissor cineasta coloca com admirável delicadeza os
efeitos do fim de uma guerra histórica, porém as marcas indeléveis que ela
deixa irão perdurar para sempre. Os silêncios marcantes de várias cenas são
estímulos à reflexão desta narrativa melancólica, com desdobramentos de um resgatador
sopro de luz das personagens femininas para um novo horizonte de liberdade, com
o intuito de quebrar o pessimismo oriundo do domínio machista envolvido nos destinos
belicistas. Magnífica a cena em que a mãe de Sasha (Igor Shirokov), o rapaz que
quer namorar Masha, habilmente tenta proteger a pretensa nora, nos ásperos diálogos
frios entre elas, alertando sobre o que é ser vítima de homens dominadores que
devastam suas companheiras em um cenário estúpido, diante da submissão da
mulher e o seu papel de inferioridade naquela sociedade aristocrática e fútil,
simbolizada pela majestosa mansão. A procura da sobrevivência está em jogo e os
traumas são intermináveis pelo despropósito aterrador que danifica e esmaga os
sentimentos humanos de vidas inocentes sendo ceifadas. Os horrores das batalhas
causam marcas implacáveis e doloridas para os soldados sequelados, como na cena
do reencontro da família com o herói mutilado que precisa ser sacrificado
diante da falta de condições financeiras da esposa para ajudar o marido, em que
a eutanásia é o paradoxal destino menos cruel, tendo em vista que há um filho pequeno
a ser sustentado na realidade sombria.
Uma Mulher Alta retrata
os efeitos dos combates num cenário de intensa nevasca, em que as tragédias se
sucedem, tais como a enfermeira voluntária que mora em um hospital militar para
ajudar os veteranos mutilados, tem uma paralisia catatônica que se manifesta em
qualquer ocasião, carrega o trauma psicológico pela morte do filho da melhor
amiga, em que era guardiã. São mostradas as sobras de guerra, como se pessoas
fossem animais sem importância, diante da falta de melhores cuidados para os
sobreviventes. Há uma carência afetiva de um calor humano praticamente ausente naquele
ambiente horripilante, embora se possa compreender pelo contato diário com
vítimas destroçadas, jogadas e amontoadas no que restou daquela situação em um
país convalescente pelas perdas do extermínio banalizado advindo dos campos de atrocidades
com referência pelo descaso às vidas. Mas há uma busca de um futuro melhor nos
sentimentos, ternuras e tristezas entre as protagonistas desesperançadas rumo
ao céu ou o inferno que querem deixar para trás aquela herança maldita. A obsessiva
intransigência de uma delas para ter um filho a qualquer preço, no início soa
como vingança, traição e culpa, mas com o desenrolar da história novos
elementos redentores irão surgir como pacificadores de um novo olhar da
humanidade.
O diretor acerta a mão em cheio na aproximação das jovens em
suas trajetórias por novos caminhos num país em ruínas evidentes, dentro de
um panorama angustiante que não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz
de algumas realizações pouco consistentes. Balagov dá uma aula de sutileza e
sensibilidade ao demonstrar os efeitos nefastos de uma guerra com seus
registros marcantes pelos vestígios permanentes de pouca perspectiva de
recuperação. Tanto no cenário desolador do hospital simbolizando vidas destruídas
ainda existentes, porém apáticas, bem como na pequena esperança daquelas
criaturas agoniadas pelo tédio da amargura do passado, exceto as duas
guerreiras imbuídas de algumas fibras para sobreviverem dignamente. Um grande
amor é lançado das sombras de um tenebroso conflito com seus efeitos
destruidores que irrompe como um vulcão adormecido naquele demarcado espaço
machista, hostil e acachapante. É a busca do significado da existência remanescente
de novos horizontes renascendo que irão aflorar para seguir em frente nos seus
sonhos iluminados como um afago do destino. Até então muito duro e cruel, dando
licença para uma reviravolta de um poema amargo com transição para um gosto
mais palatável pela doçura explosiva catártica da paixão, afastando a dor
latente adormecida das rupturas do sistema. Eis um fabuloso drama de reconstruções
de vidas profundamente humanista, que se insere entre os melhores lançamentos
do ano.
Um comentário:
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