quarta-feira, 30 de junho de 2010

Festival Varilux Cinema Francês (O Pecado de Hadewijch)















O Pecado de Hadewijch

Uma das surpresas positivas deste Festival Varilux de Cinema Francês foi O Pecado de Hadewijch, dirigido pelo competente e promissor cineasta francês Bruno Dumont, ao retratar a jovem da classe alta Céline (Julie Sokolowski, em interpretação impecável), que deseja ser freira e tem um envolvimento com dois irmãos muçulmanos que moram na periferia de Paris. A moça é uma católica que tem vocação, mas entra em conflito existencial ao descobrir outras religiões, percebe a fé e os conceitos de devoção contrários ao catolicismo pragmático que conhece e testa sua fervorosa e ardente obsessão, tendo como lema sua obstinação pela igreja.

Dumont revela-se um estudioso da paixão mística, ao abordar com grande sensibilidade o extremismo religioso, com um olhar crítico avassalador, tendo o diretor um papel importante na criação da personagem da conflituada garota. No centro do longa-metragem está uma devoção pelo catolicismo e a fé pelo islamismo. Esmiúça com clarividência como duas religiões têm dogmas pesados e radicais. A católica não aceita uma noviça, sob o pífio pretexto de que falta humildade, faz com que uma jovem se sinta arrogante e não merecedora de Deus. Não chega a fechar portas definitivamente, mas também não aponta e sequer esclarece aquela frágil garota de sua devoção e o seu de amor ao propalado Deus, que a Igreja sustenta como o ser maior que clama pela humildade.

Já no islamismo que acaba por envolver se involuntariamente, tem como pregação a luta armada com atos de terrorismo, deixando transparecer que com as mortes dos seus discípulos é a fonte da humildade que tanto procura para se abastecer. Chega a se converter e participar das manifestações extremadas como militante terrorista, explodindo bombas com resultados inesperados e devastadores para sua índole ingênua, diante da ignorância das raízes fundamentalistas.

O filme flui por uma dramaticidade de forma autêntica. Mostra o inevitável arrependimento que a conduz novamente para o convento, na busca da purificação que vem com uma bela cena da chuva torrencial, sendo recepcionada pelo pedreiro que cumpriu sua pena na cadeia, tendo voltado ao trabalho árduo e profícuo. Outra cena comovente é o mergulho no rio e o encontro com o rapaz regenerado que a induz para o caminho do reencontro com a vida na sua galharda busca pelo Deus que é o seu amor eterno, sem se deixar esmorecer, dando como prova maior de dedicação e perseguição absoluta do caminho almejado a sua virgindade, ainda que pareça obsoleto, porém necessário e imprescindível como grande demonstração de fé.

A contundente reflexão sobre a igreja católica e o islamismo fica evidenciado num mundo de permanente busca, em que há contrariedades em ambas as religiões que tem seus preconceitos, contradições e radicalismo. Ou se fechando dentro dos muros como faz o catolicismo, sendo espreitado pela presença marcante da morte, na impagável metáfora da cena do urubu dentro da tormenta, com a chegada de retorno da desesperada e confusa Céline/Hadewijch; bem como o questionamento sutil e implícito no confronto das agressões e os arremessos de bombas com ataques bem próximo do Arco do Triunfo pelos seguidores fanáticos islâmicos.

O longa também questiona as origens da noviça, que traz na bagagem um pai que é um Ministro de Estado e de uma mãe socialite. Ambos ausentes na educação e formação, vivem em seus palacetes frios como uma fortaleza intransponível. Céline ao adotar o nome de Hadewijch faz uma singela homenagem à sua cidade natal do interior, onde nascera, demonstrando sentimentos ainda arraigados às coisas provincianas e simples, longe da ostentação que está submersa e repudia com intensidade e ardor.

Sobra para todo mundo na película, diante do olhar forte e uma posição firme do diretor sobre os dogmas religiosos e suas aberrações ultrapassadas de proselitismos e epifanias, com o uso inadequado dos seus adeptos; ou pelo fanatismo, ou pelo radicalismo exacerbado. Debruça-se com uma visão crítica sobre a manifesta ausência paterna que aflige os jovens, como também o fizera François Ozon em O Refúgio (2009), onde a juventude está à procura de um ideal e de um objetivo de vida, bem caracterizado por Dumont neste magnífico filme que tem na bela trilha sonora um tom adequado e corrosivo sobre o fervor religioso explorado com dignidade e elegância.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Festival Varilux Cinema Francês (O Refúgio)












O Refúgio

François Ozon é um diretor consagrado na França, apesar de ser jovem, com apenas 42 anos de idade. Já dirigiu e fez sucesso com dramas, comédias, romances, tais como Sob a Areia (2000), À Beira da Piscina (2003), O Amor em 5 Tempos (2004). Seu maior sucesso, talvez tenha sido 8 Mulheres (2004), dirigindo nada mais, nada menos, todas juntas na mesma película: Fanny Andant, Catherine Deneuve, Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart, Virginie Ledoyen e Ludivine Sagnier.

Agora em O Refúgio, com grandes atuações de Isabelle Carré e Louis-Ronan Choisy, sua temática volta-se para o drama sobre as drogas e as consequências de uma gravidez indesejada e uma maternidade em conflito com uma nefasta realidade, tendo como oposição os pais do companheiro morto por uma overdose de heroína com cocaína, em que surpreendentemente a jovem sobrevive e traz como herança o infortúnio de uma dúvida sobre seu relacionamento e as causas que levaram ao trágico desaparecimento de seu namorado, sob a ótica de desconfiança e amargura da senhora que seria sua futura sogra.

Há a promessa para que faça o aborto, sob uma condição ameaçadora e impositiva de quem não quer ser avó. Surge a aproximação do cunhado, um rapaz bissexual, embora sua opção seja para a homossexualidade, trazendo seus traumas e revelações daquele núcleo familiar em decomposição que vive, sobre sua situação precária por não ser filho legítimo, questionando a adoção. Busca na aproximação à garota dar apoio explícito, àquela figura desolada que está refugiada numa casa de praia no interior, onde o proprietário é uma velho cego, metáfora sobre um mundo obscuro e que prioriza as aparências.

Ozon faz boas referências e se aproxima seu cinema de filmes consagrados como Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias (2007), brilhante reflexão sobre o regime romeno, sem perder o foco do aborto. Porém, sua infuência maior neste longa está nos Irmãos Dardenne que arrasaram com três filmes sobre filhos indesejados, aborto, culpa e gravidez psicológica, como nos sensíveis e corrosivos O Filho (2002), A Criança (2005) e no extraordinário O Silêncio de Lorna (2008), que retratava ainda a imigração de uma albanesa na Bélgica. O Refúgio é um daqueles filmes de extrema sensibilidade, com cenários em lugares de beleza rara, com uma trilha sonora no ponto certo, sem perturbar os ouvidos dos espectadores. É um longa um pouco lento, não chega a empolgar, mas ainda assim tem mais méritos do que erros.

Ao retratar os problemas inerentes aos jovens, Ozon se debruça nos malefícios das drogas e a perda de um sentido objetivo da vida, tendo na origem os conflitos da família. Reflexões que também já os fizeram seus compatriotas Christophe Honoré com A Bela Junie (2008), Em Paris (2006), Canções de Amor (2007); Jonathan Demme por O Casamento de Rachel (2008); assim como O Conto de Natal (2008), de Arnaud Desplechin e na obra-prima Horas de Verão (2008), de Olivier Assayas, todas películas que mergulharam no ecossistema familiar com suas desarmonias e confrontos em momentos cruciais.

O drama capta com boa receptividade a solidão que se torna contumaz, que está presente em quase todas as cenas, como da ausência dos pais no início do filme, e logo após no velório mostra o distanciamento entre os membros familiares. Apesar de leveza no desenrolar da trama, não afasta a dramaticidade nas cenas intrinsecamente no seu bojo, bem como a estrutura do roteiro é bem elaborada com um seguimento maduro de uma direção sem subterfúgios.

O Refúgio tem a sensibiidade dos filmes que tratam da juventude perdida com seus problemas existenciais que acabam nas drogas. Decorrendo gravidez de risco e uma maternidade rejeitada, com pais se opondo drasticamente. As perdas dos valores e as opções sexuais são abordadas com sutileza, embora sem um enfoque contundente, há o refinamento e a delicadeza dos filmes franceses com seus questionamentos voltados para uma boa reflexão.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Festival Varilux Cinema Francês (8 Vezes de Pé)














8 Vezes de Pé

Um dos razoáveis filmes que passou no Festival Varilux de Cinema Francês foi 8 Vezes de Pé, dirigido por Xabi Molia, tendo no elenco principal Elsa (Julie Gayet) e Mathieu (Denis Podalydès). A comédia dramática é uma trama que envolve Elsa, mulher que busca um emprego fixo e vive de pequenos "bicos", tentando obter a guarda do filho menor, ao se separar do marido, conhece o vizinho Mathieu e compartilha suas frustrações de um relacionamento fracassado. Sua luta tenaz com o ex-marido é pela disputa judicial do garoto Ethiene com evidências de rebeldia, que resiste em aceitar a mãe que ainda tem esperanças de reconquistar e se reconciliar com o velho parceiro.

Elsa vive literalmente num carro velho, que é na realidade seu lar, pois fora despejada por falta de pagamento do aluguel, leva vários foras dos pretensos empregos que tenta sem sucesso. Já o vizinho é um atirador de arco e ex-jogador de futebol frustrado e decepcionado, também despejado e sem grandes perspectivas de vida, que trabalha com pesquisas encomendadas por grandes magazines. Os dois personagens são excluídos de uma sociedade competitiva. Encontram-se algumas vezes na floresta, numa demonstração de que a mata está mais receptiva para ambos. O roteiro leva crer para uma França em crise de trabalho e moradia, onde há nas entrelinhas a clarividência de um mundo globalizado e viril para com os que não se prepararam para enfrentar uma nova realidade de pessoas capacitadas.

Há uma bela cena no epílogo, do encontro com a bola de futebol entre filho e mãe no mar, servindo de elo de união para uma aproximação entre aquelas duas criaturas alijadas de um contexto superior de uma vida desejada por elas. Elsa mostra para Ethiene as dificuldades que o mundo reserva, beirando a uma crueldade, ao jogar várias vezes a bola nas águas turvas, fazendo-o esforçar-se para atingir seu limite físico de uma criança ainda inocente. Seu desespero para salvá-lo é o ápice da luta para vencer os obstáculos criados pela natureza, numa metáfora apropriada apesar do desafio perigoso.

O filho não é uma pessoa ruim como chega a imaginar, sequer a mãe é uma louca desvairada, pois busca a conquista a qualquer preço, diante das terríveis dificuldades de relacionamento na aproximação maternal. Falta para Elsa a estabilidade emocional e o equilíbrio financeiro, que vão com o tempo corroendo pelas entranhas sua paciência e sua obstinação de mãe. Teve a ajuda de um primo, que acaba por se complicar com sua companheira, resultando em mais problemas do que soluções.

O diretor bem que poderia ter feito algo melhor, decorrendo o título de um ditado francês, invocado por Elsa para demonstrar sua tenacidade: "sete vezes ao chão, oito vezes de pé". Faltou profundidade num tema já explorado à exaustão e com melhores resultados, pois ficou na superficialidade, andando aos trancos para um desenlace final, até certo ponto previsível e artificial para uma trama que tinha tudo para ser melhor explorada e com um acabamento digno.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O Escritor Fantasma



Campo Minado da Política

O diretor polonês Roman Polansky é um dos mais maduros e competentes em atividade, embora sua conturbada vida pessoal atrapalhe em muito seu destino no território dos EUA. Seus problemas pessoais e sua suposta dívida para com a justiça não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória obra cinematográfica, como fez uma articulista de uma conceituada revista de grande circulação nacional, se detendo mais na ficha policial do cineasta do que analisar, para tecer uma crítica fundamentada, ou dar alguns tênues elogios ao seu último trabalho, o excelente longa-metragem O Escritor Fantasma, que rendeu o prêmio de melhor diretor no Festival de Berlim.

O filme foi adaptado do romance do jornalista e escritor Robert Harris e trata de um ex-ministro inglês chamado ficticiamente de Adam Lang (Pierce Brosman), casado com Ruth (Olivia Williams), vivendo em semi-exílio numa ilha do estado de Maine, nos Estados Unidos, que na realidade nada mais é que as memórias do primeiro-ministro britânico Tony Blair e suas incursões desastradas e subservientes ao governo americano de George W. Bush.

Lang é criticado asperamente por uma imprensa livre, por ter autorizado a prisão e tortura de suspeitos de terrorismo, em conluio com o governo americano, exatamente como aconteceu entre Blair e Bush. Paralelamente, Lang trabalha sua autobiografia, pela qual recebeu US$ 10 milhões antes de escrevê-la. Contratado pela editora como ghost writer, McCrea morre misteriosamente. Logo tem seu substituto (Ewan McGregor), passando então a realizar suas pesquisas para terminar o livro de memórias de Lang/Blair.

A política é mostrada como uma imensa sujeira e os polos se atraem quando há interesses comuns em jogo. Lang está no meio de um verdadeiro fogo cruzado de acusações da imprensa investigativa e da comunidade inglesa. O substituto ao tentar concluir o livro começa a descobrir as falcatruas e as podridões, bem como o envolvimento de agentes da CIA, como o personagem misterioso que aparece como revelador no final (Tom Wilkinson), e as tramoias contra o Oriente Médio, com armações espúrias para sustentar governos; as ingerências para as guerras, tendo uma imensa teia de aranha que aos poucos vai se dissipando no ótimo e envolvente roteiro do suspense psicológico de O Escritor Fantasma.

Polansky realiza este filme num tom gris de tonalidade claro-escuro, buscando um frio noir que se notabilizou no magnífico Chinatown (1974), gênero bem explorado com toda elegância e frieza neste policial marcante e que deixou belos ensinamentos de uma realização notável e com fôlego até o último minuto da película, criando uma atmosfera exemplar para um final inusitado. O diretor também busca subsídios no excelente longa A Rainha (2006), de Stephen Freas, onde a figura de Blair emerge do cenário inglês para o mundial, no episódio da morte da princesa Daiana, em 1997, mostrando os bastidores da realeza logo após o acidente fatal, tendo como presença destacada o primeiro-ministro da época nos intrincados e rumorosos boatos que quase acabaram com a o governo inglês.

Em O Escritor Fantasma também se pode buscar a alinhar algumas similitudes com o belo filme nacional Budapeste (2009), baseado na obra de Chico Buarque de Holanda, onde um homem separado por dois continentes e dividido por duas mulheres, tem na fascinante viagem a descoberta da capital da Hungria, com suas peculiaridades e as situações políticas controversas e ricas de um passado sempre presente de ditadores como estátuas descendo dentro de um barco enferrujado e decadente, pelo Rio Danúbio, numa metáfora do ocaso do comunismo, contadas por um ghost writer.

Blair é mostrado no personagem de Lang, por Polansky, como um legítimo capacho subserviente, ao colocar o governo inglês à disposição e à mercê dos interesses dos poderosos fabricantes armamentistas dos EUA. O longa tem no seu estofo um suspense com pitadas bem dosadas de emoção, repletas de reviravoltas e tensões oriundas de um roteiro refinado e inteligente, numa direção precisa que segura com dignidade os desdobramentos de figuras proeminentes que se avolumam e entram em contradição no epílogo, demonstrando as diversas facetas de caráter, muitas delas por inexistirem.

O quebra-cabeças que vai sendo montado pelo ghost writer, aos poucos se dissipa numa maré de hipocrisias e interesses governamentais, bem urdido e jogado ao espectador de forma clara por Polansky, demonstrando toda sua revolta, questionando a confiança entre estes pares que têm no dinheiro e no prestígio seus passaportes, como ingredientes de poder, fama e perigo, acobertando um crime para que as situações fáticas não viessem a público. Fica a reflexão nesta retórica da política embasada no suspense, tendo o brilho eficaz e a certeza que o bom cinema voltou com este diretor fabuloso.