sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
A Dama de Ferro
Cinebiografia Chapa-Branca
A diretora Phyllida Lloyd tem em seu currículo apenas um longa-metragem, o execrável Mamma Mia (2008), que coincidentemente Meryl Streep também atuou. Agora em sua segunda realização, esta cinebiografia da ex-primeira-ministra da Inglaterra Margaret Thatcher é calcada de forma oficialista, visando ressaltar mais as virtudes e esquecer ou abordar de maneira superficial os defeitos da durona líder inglesa, neste insosso, comprometedor e desestruturado A Dama de Ferro, denominação esta alcunhada pelos governantes da extinta União Soviética no auge da Guerra Fria.
O filme gira de um manifesto político vazio, de abordagem rasa, em defesa da ex-premiê para um melodrama de sua doença aplacada pela senilidade até os sinais evidentes do Mal de Alzheimer, estruturado em flasbacks de sua vida desde jovem, da serelepe e juvenil Thatcher (Alexandra Roach), sendo que na fase adulta até a velhice assume definitivamente Meryl Streep, que simplesmente arrasa no papel da mais poderosa mulher do mundo, a grande liderança inflexível que faltava para o Partido Conservador da Grã-Bretanha. Até é válida a brincadeira de que a atriz está mais parecida com a própria Thatcher, do que ela mesma.
Há discretas cenas de referência à Guerra das Malvinas, num embate violento contra a Argentina, onde menciona que os oponentes estão tomados por “uma gangue de fascistas”, talvez a melhor frase do filme, pois logo aos ditadores foram nocauteados do país vizinho. Sua posição foi forte como sempre, determinando que houvesse o confronto de guerra e que fosse afundado um navio dos argentinos que criava um certo temor aos ingleses. Outra boa sacada do filme, foi quando um representante dos EUA tentava dissuadi-la do embate, recebeu como resposta que a tomada do Havaí pelos norte-americanos não foi pacífica.
A cinebiografia aborda a doença superficialmente, longe do estupendo O Filho da Noiva (2001), de Juan José Campanella, na inesquecível atuação de Ricardo Darín, esta sim, uma abordagem profunda e humana, nos relatos sensíveis e dignificantes. Mas Thatcher não chega a ser vista como uma vítima da doença, pois a diretora tentar mostrar ser ela uma mulher forte e arredia aos diagnósticos dos médicos, sempre acompanhada do fantasma do marido morto, seu fiel escudeiro Denis (Harry Loyd no passado e Jim Broadbent no presente). É contraditório porque há momentos em que ele reclama de sua presença constante na política, em outras está sempre ao seu lado e tudo está muito bem, obrigado. Um contrassenso total, embora acompanhe desde a juventude até sua transição para o cenário político. Outra lacuna marcante é a ausência de abordagem dos filhos na fase adulta, aparecendo esporadicamente em lembranças passageiras.
Lloyd mostra com todas as tintas que Thatcher é uma mulher forte, chegando ao cargo máximo e obtendo índices de aprovação estrondosos, atingindo o topo e sendo mencionada pelos colegas partidários como a sucessora de Winston Churchill e que poderá receber todas as honras de Estado. Evidentemente que o filme é uma apologia simplista, estruturado num roteiro debilitado, simplista, com intuitos de veneração e primando pelo mau gosto do roteirista Abi Morman. É picotado a torto e a direito na montagem, enfocando raros momentos da trajetória propriamente dita da ex-primeira-ministra, como dos sindicatos dos mineiros de carvão, visto com desprezo pela diretora, numa caracterização explícita de uma obra chapa-branca, desconstituída de um mínimo de profundidade e crítica social.
A humanização de um personagem célebre tem suas cobranças. O excesso pode glamourizar ou destruir de vez pelos estereótipos da personagem retratada. A cineasta conseguiu liquidar pelos dois motivos, tanto é que nem na Inglaterra o filme foi bem recebido, diante da banalização esvaziada da figura emblemática de Thatcher, numa desastrada e caricaturada amostragem da ex-poderosa, que tomou conta do noticiário político internacional de 1979 a 1990. A Dama de Ferro é uma baboseira chata e desprezível, salvando-se tão somente a excelente equipe de maquiagem e a monumental atuação de Meryl Streep.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
A Invenção de Hugo Cabret
Precursor do Sonho
O cinema produzido em 2011 primou pelos tributos dos diretores. Começou com Woody Allen no espetacular Meia-Noite em Paris, numa grande homenagem à cultura parisiense, através do imaginário fantástico que flutua e flui com harmonia e beleza plástica inconfundível num roteiro enxuto, num cenário estonteante pela magia; depois veio Michel Hazanavicius apresentar o festejado O Artista, uma produção francesa que ele esperou 12 anos para filmar nos EUA, com os raros diálogos em inglês. Uma homenagem explícita às indústrias de Hollywood do cinema mudo e por consequência o preto e branco, marcado pela ousadia numa época onde se valoriza mais o avanço tecnológico e suas invenções virtuais. Agora Martin Scorsese faz sua gratidão ao cinema francês, neste sensível A Invenção de Hugo Cabret.
O cineasta norte-americano presta seu júbilo ao cinema dos pais da primeira filmadora e máquina de projeção, os irmãos Lumière- Auguste e Louis-, com flasbacks de 1895, no filme mudo de 50 segundos A Chegada de um Trem na Estação, mostra a entrada de um comboio puxado por uma locomotiva a vapor em uma estação de trem na cidade costeira francesa de La Ciotat. Mas seu foco principal é o cineasta esquecido e relegado, na pele de um anônimo proprietário de uma loja de brinquedos na estação, o notável sonhador e precursor do cinema e grande ilusionista George Méliès (1861- 1938), interpretado com brilho por Ben Kingsley. Ilustra muito bem com a cena do garoto Hugo ao lado de seu robô que tenta reconstruir, tendo as imagens do filme Viagem à Lua (1902), de Méliès, inaugurando a era do cinema, através de imagens fantásticas para os primórdios daqueles tempos difíceis.
A trama é baseada no livro homônimo infanto-juvenil de ficção histórica de Brian Selznick (2007), que tem no elenco o órfão Hugo (Asa Butterfield- de boa atuação; é o mesmo alemãozinho de O Menino do Pijama Listrado). Vive abandonado na estação de trem Gare Montparnasse, uma das maiores de Paris, em 1931, saindo apenas do refúgio entre as paredes, para realizar pequenos furtos e dar corda nos enormes relógios e mantê-los trabalhando, diante das mortes do pai e do tio, desviando a atenção do inspetor e caçador de órfãos (Sacha Baron Cohen- interpretou à altura e poderia ser indicado ao Oscar), um simplório defensor de uma lei tirana e inconsequente, sem o mínimo de humanismo, que flerta com a vendedora de flores e anda sempre acompanhado de seu fiel escudeiro, um cachorro feroz da raça Dobermann. Hugo aproxima-se casualmente da garotinha Isabelle (Chloë Moretz), sobrinha de Méliès, sempre pronta para uma nova aventura com seu talento criativo e cultural. Logo se interessa pelo trabalho dele e sua moradia. Busca a recuperação do caderno junto ao tio misterioso, por um pedido do novo amigo.
Scorsese sempre foi um diretor de filmes fortes e profundos, como os insuperáveis Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990), Touro indomável (2000), Gangues de Nova York (2002), Ilha do Medo (2010), entre tantas realizações pesadas e consistentes. Agora seu instinto de cineasta é direcionado com um brilho singular para o agradecimento à escola francesa, numa espécie de contraponto a Michel Hazanavicius. Ao realizar este belo espetáculo para um público de todas as idades e classes sociais, dá sua contribuição significativa à sétima arte e vem complementar com elegância O Artista.
A Invenção de Hugo Cabret tem a marcante cena inicial do plano sequência, metaforicamente coloca o espectador filmando no lugar do diretor, num simbólico agradecimento aos cinéfilos, sem antes dar muitos sustos e a impressão do choque com os protagonistas que vão surgindo no caminho, tanto pessoas como locomotivas atropelando e objetos sendo abalroados, numa simbologia da passagem dos tempos. Um devaneio inesquecível.
É justa e magnífica a homenagem ao cineasta precursor Méliès, possivelmente o primeiro sonhador que transformou um delírio em realidade na tela, injustiçado pelo tempo, morreu pobre e vendendo seus negativos como sucatas para sobreviver. O tributo ficou melhor ainda com a utilização do 3D como suporte e não apenas entretenimento barato, com todo o magnetismo e força do cinema e o reconhecimento de um talento perdido nos arquivos da história, mas que Scorsese resgata ao tirar do limbo e homenageia com sutileza e extremo bom gosto este pioneiro do sonho e sem recursos técnicos, numa prestação de contas fabulosa e apaixonante como o cinema.
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
O Artista
Tributo ao Filme Mudo
O diretor francês Michel Hazanavicius esperou 12 anos para filmar e colocar em prática seu projeto inicial, que redundou no festejado O Artista, uma produção francesa rodada nos EUA, com os raros diálogos em inglês. A obra se consagrou tanto e não para de abocanhar prêmios, como de Melhor Comédia ou Musical no Globo de Ouro, além de Melhor Diretor, Ator e Filme pelos respectivos Sindicatos dos norte-americanos. Também recebeu as láureas de Melhor Filme, Ator e Diretor, Fotografia, Roteiro Original, Figurino e Música Original pela Academia Britânica de Cinema, os ambicionados prêmios Bafta. Até o cachorrinho Uggie, de 10 anos, ganhou o troféu Coleira de Ouro, em sua primeira edição, em Los Angeles, por participações caninas no cinema e na TV. Por tudo isto é o grande favorito ao Oscar, onde concorre a 10 estatuetas. O único longa do cineasta exibido antes no Brasil foi Agente 117 (2006).
A trama se passa em Hollywood, a partir de 1927, onde George Valentin (Jean Dujardin- em grande desempenho) é um ator de filmes mudos, com suas caretas e danças, uma figura estereotipada de galã, inspirado no astro italiano radicado nos EUA, Rodolfo Valentino, uma dos nomes mais populares dos anos 20 e do cinema mudo, sendo o primeiro símbolo sexual das telas, um protótipo "amante latino" fabricado por Hollywood. Vive como uma grande estrela em sua mansão, com a esposa carente, o motorista-mordomo e Uggie, seu cãozinho terrier, um fiel escudeiro para as horas boas e más. Indiscutivelmente seu melhor amigo e desinteressado financeiramente, que deixará saudades no cinema, pois roubou as cenas que participou até o epílogo.
A transição do filme mudo para o falado é inquestionável no longa, embora Valentin não acredite e satirize a evolução, dando a impressão que parou no tempo e sua decadência é iminente, vai definhando e liquidando com seu bom humor e a fama soçobra, indo tudo ladeira abaixo. Logo fica marginalizado nos grandes estúdios e indústrias de Hollywood. Surge no contraponto uma atriz exponencial da nova fase do cinema falado, a jovem talentosa Peppy Miller (Bérénice Bejo- cativante e arrasadora em seu papel), que não esquece ter sido ajudada na sua incipiente carreira por Valentin. Enquanto ela sobe fulgurante e desponta como uma grande diva, ele se afunda em grandes dívidas e é atingido em cheio pelo estouro das Bolsas de Valores em 1930. Vê-se obrigado a despedir seu empregado, sua mulher vai embora, restando um farrapo humano jogado no vício do álcool e no fumo contumaz.
O filme se desenrola com o auxílio fervoroso da trilha sonora, numa narrativa correta dentro de um enxuto roteiro, mostrando a decadência de um astro e seu envolvimento nos piores momentos com a grande celebridade que não lhe abandona. Sem ser piegas e afastando-se do maniqueísmo, não se deixa envolver pelo emocional na sua estrutura dramática bem limitada. As contradições são colocadas nos dois lados dos protagonistas principais, no bom estilo e nuances do cinema mudo, com elipses adequadas, sem esquecer a exemplar fotografia em preto e branco, símbolo de uma época do passado de reminiscências, através de um figurino impecável.
O longa apresenta-se tanto como um drama de época, como tem bom domínio de uma comicidade contida, ao mostrar a transformação do cinema da película para o 3D, IMAX e digital, de maneira metafórica nas figuras de Valentin representando o passado sem volta de uma era sem sonoridade e cor, e Peppy simboliza o presente e o futuro da evolução dos novos tempos modernos e com a decretação do fim do uso da película como forma de filmar.
O Artista traz uma lembrança do charme dos filmes de Chaplin, através do personagem mais famoso, o vagabundo Carlitos, oprimido e engraçado, denunciava as injustiças sociais, de forma inteligente, sabia como fazer rir e também chorar, em vários filmes rodados sem sonoridade e em preto e branco. Outra boa referência de agradecimento está na cena final de Valentin e Peppy ensaiando um sapateado como o casal Debbie Reynolds e Gene Kelly, no magistral filme musical Cantando na Chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly. Mas o filme tem uma similitude indisfarçável com Nasce uma Estrela (1954), de George Cukor, contando a ascensão da jovem atriz (Judy Garland) e a decadência de um veterano ator (James Mason). Sem esquecer o excelente Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, onde a ex-estrela de filmes mudos Norma Desmond (Gloria Swanson) vive solitária com seu leal empregado em sua mansão até surgir um roteirista que é contratado por ela.
No início do longa há um rápido desconforto, diante da forma dos planos e as cenas com alguns diálogos intercalados por uma tela legendada de falas de possíveis protagonistas, porém em outras cenas desaparecem as legendas, ficando o espectador à mercê da leitura labial, ou então decifrando-a pela imaginação apurada. Mesmo sem o magnetismo do colorido e dos diálogos com vozes, contado por uma aparente ingênua história de dois personagens em tempos diferentes, o filme tem significativos méritos expositivos, pois consegue prender a atenção do público, não deixando escapar o foco da trama.
Uma boa e singela homenagem ao cinema mudo e por consequência o preto e branco, embora não chegue a entusiasmar como uma obra definitiva, marca pela ousadia numa época onde se valoriza mais o avanço tecnológico e suas invenções virtuais. Não deixa de ser um tributo que fazia falta para aqueles que deram suporte e começo da sétima arte.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
A Separação
Liberdade Cerceada
O cinema iraniano está de volta com todo seu vigor, simplicidade, reflexão religiosa, filosófica, cultural e política neste inesquecível filme A Separação, dirigido impecavelmente por Asghar Farhadi, que tem na sua filmografia o ótimo À Procura de Elly (2009), no qual abocanhou o prêmio Urso de Prata no Festival de Berlim daquele ano, já demonstrando segurança de elenco, enredo forte e com uma grande dose de dramaticidade, misturando o clássico suspense com tons homeopáticos e precisos de comicidade, diante de uma contida tragicidade, culminando com o inusitado drama familiar com os amigos no Mar Cáspio.
Farhadi novamente mostra em seu quinto longa-metragem que é um cineasta voltado essencialmente paras as coisas do cotidiano da metrópole de seu país, filma com naturalidade, tendo a câmara na mão e muito barulho, nada de silêncio e reflexões demoradas. Não faz parte da turma do cinema que filmava preferencialmente no interior do Irã, predominando o chão batido de estradas poeirentas, onde se consagraram: Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e ainda O Vento nos Levará (1999); notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000).
O filme é uma monumental metáfora que separa o estado de direito democrático, simbolizado pela professora e esposa Simin (Leila Hatami- de grande atuação mesclada com uma beleza deslumbrante). Tem um olhar sempre de interrogação e dúvida sobre seu futuro e as dificuldades para obter o rompimento do vínculo matrimonial e fugir daquele lugar de liberdade limitada ao extremo, onde as mulheres não passam de meras coadjuvantes e de restritos direitos, porém de enormes obrigações. Sua vontade maior é levar para o exterior sua filha adolescente Termeh (Sarina Farhadi- de comovente interpretação).
Do outro lado da metáfora está um regime ditatorial, de poucos ou quase nada de direitos, representado simbolicamente pelo marido bancário Nader (Peyman Moadi). Ele é um defensor até por ali da situação caótica em que vive em seu país. É difícil ser um guardião do Estado, onde a liberdade é precária e os direitos são normalmente submetidos às leis e dogmas religiosos ditados pelo Alcorão, o livro sagrado do Islã. Todos os adeptos e seguidores são submetidos aos drásticos e temíveis juramentos, onde se mentir poderão sofrer a punição divina, pois os muçulmanos creem no seu Deus (Alá), revelado ao profeta Maomé.
A película tem uma trama aparentemente simples, com o pedido de divórcio de uma mulher que quer ir embora para o exterior com sua filha menor de idade, que se nega num primeiro momento em acompanhá-la. Termeh blefa e fica com o pai e a tutora nomeada pelo Estado, buscando uma reaproximação dos pais. Mas as coisas se complicam com o aborto involuntário da empregada paterna Razieh (Sareh Bayat), sempre com o rosto coberto por um xador e receosa de ser descoberta pelo marido Hodjat (Shahab Husseini), de seu trabalho na casa de um homem separado. Nader é acusado de empurrá-la escada abaixo, afirmando desconhecer que estava grávida. Há um grande imbróglio e trocas de acusações, principalmente por Hodjat, um indivíduo estressado e violento, de pavio curto, que acusa o ex-patrão de sua esposa de ter matado seu filho.
A Separação enfoca com contundência os reduzidos direitos das mulheres e suas constantes humilhações e de raríssimos créditos. É visível que o Poder Judiciário é dependente do regime de exceção, onde a truculência se faz notar nos constantes chamamentos da polícia, sendo a pena de prisão decretada sem o amplo direito de defesa dos acusados, bem característico das ditaduras que relegam o estado de direito dos cidadãos a planos secundários fragilizados.
Um drama que mostra as circunstâncias acima dos fatos principais. Pessoas que dificilmente mentem, mesmo para se safarem das prisões. O que não falta são policiais sempre à espreita para algemar os indiciados, basta o julgador se sentir hostilizado, como um protótipo representante do Governo que não pode ser contestado ou ter o poder colocado em xeque, como alegoria evidente dos países antidemocráticos. Outra metáfora magnífica é a do marido tentando impedir a ida da esposa para fora de seu próprio país, não concedendo-lhe o divórcio, alegando que seu pai está com Alzheimer e necessita cuidados especiais, embora senil e putrefato esteja o regime opressor, tal qual ele simboliza ao negar a liberdade tão aguardada por uma criatura reprimida.
Existem todos os ingredientes para se admirar a denúncia numa civilização decadente, onde um povo sofre todas as amarguras impostas por uma censura de cima para baixo. Torna-se marcante pela beleza das palavras e frases com todas as alegrias e tristezas, num emaranhado típico de uma burocracia como Kafka já alertara e alertara na sua obra sempre revigorada e presente. Desde já se insere como um dos 10 melhores do ano e favorito para receber a estatueta do Oscar de 2012, como Melhor Filme Estrangeiro.
O diretor demonstra sutileza, ao deixar o final em aberto, embora pelo sorriso maroto da garota se deduza qual foi a melhor opção. A saída dos pais da sala de audiência nada mais é do que a metáfora do medo da revelação e o simbolismo da escolha. Um filme que aflora a dignidade pelo seu poder metafórico de abordar nas entrelinhas as questões proibidas no Irã, usando a sensibilidade para mesclar a arrogância estatal com a delicadeza dos personagens femininos em seu conteúdo de protesto. Há os dissabores e as complexidades das relações dos iranianos com sua pátria mãe, numa estrondosa alegoria montada num contexto, como se fosse um jogo de xadrez, faz um edificante manifesto de denúncia contra o tiranismo nesta obra-prima.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012
Millenium- Os Homens que Não Amavam as Mulheres
Família Enigmática
Longe do muito bom longa-metragem A Rede Social (2010), ou do significativo Clube da Luta (1999), porém mais próximo do controvertido O Curioso Caso de Benjamin Button (2008), David Fincher agora está com a verve da grandiloquência de cenas longas e situações escabrosas e chocantes como no estupro, nesta refilmagem de Os Homens que Não Amavam as Mulheres, baseado no best-seller homônimo do jornalista e escritor sueco Stieg Larsson, morto aos 50 anos, em 2004, sem ter conhecimento de seu grande sucesso editorial e cinematográfico. Esta é a primeira parte da trilogia Milleniun, que foi filmada originalmente também por um sueco Niels Arden Opley.
O filme é um suspense investigativo, onde o jornalista Mikael Blomkvist (Daniel Craig) é contratado para desvendar um mistério de 40 anos sobre o desaparecimento da sobrinha Harriet, do grande empresário e patriarca Henrik Vanger (Christopher Plummer), supostamente assassinada por um dos integrantes da enorme família com raízes no Nazismo. Mostra-se como um jornalista lacônico e determinado a restaurar a sua honra depois de ser condenado na justiça por difamação. Para isso, conta com a ajuda da eficiente hacker Lisbeth Salander (Rooney Mara- grande interpretação e forte candidata ao Oscar 2012), uma jovem punk de piercings e tatuagens espalhadas pelo corpo, com um comportamento antissocial e bizarro, cuja vida igualmente misteriosa em seu passado, por ser uma investigadora talentosa e contratada para levantar a ficha e os antecedentes de Blomkvist, uma missão que será o ponto de partida para que ela se junte a Mikael na investigação, logo chamará a atenção de todos.
A película não poupa os incríveis assassinatos, a corrupção que se alastra pelos membros hereditários dos poderosos Vanger. Mas não poderiam faltar os grandes segredos de família e os dramas pessoais de dois parceiros improváveis em busca da verdade por trás de um mistério de 40 anos. O jornalista ao se mudar para aquela ilha remota na costa gelada da Suécia, não imagina e nem tem qualquer noção do que o aguarda e dos perigos que rondarão sua vida tranquila. Há uma sucessão de atrocidades e violência com psicopatas entrando em ação.
O grande mérito de Lisbeth, apesar de se sentir isolada do mundo traiçoeiro, é sua capacidade magistral como hacker e estar sempre focada no que faz, sem se deixar iludir ou ser atrapalhada por sentimentalismos ou envolvimentos maiores, que a tornam como uma pessoa valiosa no seu trabalho duro e frio. Enquanto Mikael procura dialogar e buscar soluções amigáveis com os enigmáticos Vanger, Lisbeth navega suas intuições femininas e procura obstinadamente pela Internet. Chegam a forjar uma confiança razoável, embora fragilizada, enquanto descobrem assassinatos em série ocorridos por décadas que os envolvem numa parceria agora forte, para buscar a solução e as revelações daqueles crimes hediondos e colocados à margem da civilização.
Mas falta uma atmosfera de tensão durante boa parte do filme. Os planos médios e abertos são poucos, exceto para mostrar uma beleza natural. O clima não atinge uma sustentação tensa, também por falha de uma trilha sonora mais adequada e envolvente, como na cena de Mikael na casa de um familiar investigado. Ou a caminho da casa de Henrik sem saber o motivo da chamada urgente, mas contraditoriamente há uma carga mais dramática na ação de Lisbeth em sua pesquisa virtual.
Milleniun- Os Homens que Não Amavam as Mulheres tem falhas como da montagem, que o torna excessivamente longo e com cenas que poderiam ser cortadas, como do final totalmente desprezível, logo após o encontro em Paris entre o jornalista e a pessoa que elucida a trama. Faltou o uso maior de elipses, pois assim restou uma estética inchada e demodê ao filme, prejudicando o acabamento der uma obra mais enxuta e com menos retórica.
Mas a película tem bons acertos como a personagem Lisbeth, sempre que entra em cena sai boa coisa. Apesar se seus muitos equívocos é um razoável paradigma para as adaptações de séries literárias. Há uma boa técnica artística e diálogos harmônicos das duas linguagens, tendo em vista que Fincher preferiu não se expor por demasia, ao ser fiel ao livro em boa parte e também não contrariar o filme original, dando ritmo no cinema ao conteúdo literário e filmando inclusive na Suécia. Mas no todo esta versão da primeira parte é irregular e agora é esperar as continuações.
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Os Descendentes
Blefe Moralista
Alexander Payne é o mesmo diretor dos insossos Eleição (1999) e As Confissões de Schmidt (2002), com Jack Nicholson no segundo filme. Mas indiscutivelmente o melhor de sua filmografia é Sideways: Entre Umas e Outras (2004), com Paul Giamatti no papel de um homem depressivo, que tenta se tornar um escritor, é fascinado por vinhos e decide dar como presente de despedida de solteiro a seu melhor amigo, uma viagem pelas vinícolas da Califórnia. Logo se envolvem com duas mulheres, faz com que o amigo queira romper o matrimônio, que está marcado para daqui a poucos dias, enquanto o intelectual se apaixona por uma jovem que também aprecia os vinhos pinot noir.
No longa Os Descendentes, adaptado do livro homônimo de Kaui Hart Hemmings, Payne deixou o moralismo americano exacerbar e praticamente detonar com sua última obra, que tem um tema bem interessante, como do pai ausente e vivendo como um advogado bon vivant no Havaí, à espera do melhor momento para vender terras que valem milhões, pois é um dos herdeiros desta fortuna. Mas tem que retornar para casa às pressas e se dá conta que tem duas filhas: uma pré-adolescente de 10 anos e a outra uma rebelde adolescente sem causa de 17 anos, que está fazendo escola para a mais nova. Logo percebe que as meninas cresceram o bastante para colocá-lo em diversas dificuldades e encrencas, principalmente a caçula indisciplinada Scottie (Amara Miller).
O cineasta enfoca a família, sob o ponto de vista inicial, como desestruturada e em vias de falência. A trama tem no pai Matt (George Clooney- surpreende por abandonar seu tradicional histrionismo de galã, compondo um bom personagem de carne e osso) que está em crise conjugal com a esposa Elizabeth (Patrícia Hastie). Ela sofre um grave acidente de barco e está desenganada pelos médicos. Como dizer às filhas e aos parentes próximos da trágica notícia? Mas tudo isto ainda tem o componente de um grande segredo do núcleo familiar, que só a filha mais velha Alexandra (Shailene Woodley- em grande desempenho) sabe e guarda com bastante mágoa.
A película dá uma quebrada no ritmo e neste meio tempo, pai e filhas fazem uma viagem até o mar, em praias de águas sujas e moradores rudes, num outro lado do Havaí que é desconhecido para a maioria, sem o glamour cantado em prosa e verso. É lá que mora Matt e seus primos que querem vender as terras herdadas para uma grande incorporadora, intermediada por um corretor de imóveis que é o ponto da discórdia pelo seu passado recente com Elizabeth. Os fantasmas afloram justamente agora, na iminência da morte da mãe das garotas e no inconcebível machismo chauvinista do pai, que descobriu a intenção do divórcio da esposa abandonada antes do acidente.
Um filme que não chega a se debruçar com profundidade no relacionamento da ausência paterna com as filhas problemáticas, pois o foco principal está centrado com todas as artilharias voltadas para a traição, razão para a qual Payne parece se saborear ao mostrar a mãe em estado vegetativo irreversível, com o gosto de sangue salivando nos lábios de Matt. Ressalte-se o mérito de saber fugir bem do melodrama, com algumas boas tiradas de humor.
Os Descendentes levou o prêmio de melhor drama no Globo de Ouro e tem tudo para conquistar os corações dos velhinhos da Academia e amontoar estatuetas, apesar de seu ranço moralista e defensor dos bons costumes. É um drama cansativo no seu desenrolar pela falta de imaginação e previsibilidade do final, embora tenha uma bela trilha sonora e algumas similitudes peculiares, ainda que distantes e rasas, do bom e eficiente Kramer vs. Kramer (1979), de Robert Benton.
O cineasta mostra com todas as tintas sua inclinação em punir quem cometeu o ato da infidelidade. Um pai que se torna bonzinho de uma hora para outra, deixando de ser uma pessoa distante e fria para ser idolatrado. Bem típico de um cinema que gosta de super-heróis fabricados, fica um nostálgico recado retumbante a quem cometer aventuras ou ousar trair, será castigado exemplarmente independentemente das circunstâncias inerentes ou as complexidades de um relacionamento deteriorado, que em nenhum momento é abordado com clareza, deixando se esvair no vazio da falta de análise numa obra irregular e preconceituosa.
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