quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A Separação


















Liberdade Cerceada

O cinema iraniano está de volta com todo seu vigor, simplicidade, reflexão religiosa, filosófica, cultural e política neste inesquecível filme A Separação, dirigido impecavelmente por Asghar Farhadi, que tem na sua filmografia o ótimo À Procura de Elly (2009), no qual abocanhou o prêmio Urso de Prata no Festival de Berlim daquele ano, já demonstrando segurança de elenco, enredo forte e com uma grande dose de dramaticidade, misturando o clássico suspense com tons homeopáticos e precisos de comicidade, diante de uma contida tragicidade, culminando com o inusitado drama familiar com os amigos no Mar Cáspio.

Farhadi novamente mostra em seu quinto longa-metragem que é um cineasta voltado essencialmente paras as coisas do cotidiano da metrópole de seu país, filma com naturalidade, tendo a câmara na mão e muito barulho, nada de silêncio e reflexões demoradas. Não faz parte da turma do cinema que filmava preferencialmente no interior do Irã, predominando o chão batido de estradas poeirentas, onde se consagraram: Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e ainda O Vento nos Levará (1999); notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000).

O filme é uma monumental metáfora que separa o estado de direito democrático, simbolizado pela professora e esposa Simin (Leila Hatami- de grande atuação mesclada com uma beleza deslumbrante). Tem um olhar sempre de interrogação e dúvida sobre seu futuro e as dificuldades para obter o rompimento do vínculo matrimonial e fugir daquele lugar de liberdade limitada ao extremo, onde as mulheres não passam de meras coadjuvantes e de restritos direitos, porém de enormes obrigações. Sua vontade maior é levar para o exterior sua filha adolescente Termeh (Sarina Farhadi- de comovente interpretação).

Do outro lado da metáfora está um regime ditatorial, de poucos ou quase nada de direitos, representado simbolicamente pelo marido bancário Nader (Peyman Moadi). Ele é um defensor até por ali da situação caótica em que vive em seu país. É difícil ser um guardião do Estado, onde a liberdade é precária e os direitos são normalmente submetidos às leis e dogmas religiosos ditados pelo Alcorão, o livro sagrado do Islã. Todos os adeptos e seguidores são submetidos aos drásticos e temíveis juramentos, onde se mentir poderão sofrer a punição divina, pois os muçulmanos creem no seu Deus (Alá), revelado ao profeta Maomé.

A película tem uma trama aparentemente simples, com o pedido de divórcio de uma mulher que quer ir embora para o exterior com sua filha menor de idade, que se nega num primeiro momento em acompanhá-la. Termeh blefa e fica com o pai e a tutora nomeada pelo Estado, buscando uma reaproximação dos pais. Mas as coisas se complicam com o aborto involuntário da empregada paterna Razieh (Sareh Bayat), sempre com o rosto coberto por um xador e receosa de ser descoberta pelo marido Hodjat (Shahab Husseini), de seu trabalho na casa de um homem separado. Nader é acusado de empurrá-la escada abaixo, afirmando desconhecer que estava grávida. Há um grande imbróglio e trocas de acusações, principalmente por Hodjat, um indivíduo estressado e violento, de pavio curto, que acusa o ex-patrão de sua esposa de ter matado seu filho.

A Separação enfoca com contundência os reduzidos direitos das mulheres e suas constantes humilhações e de raríssimos créditos. É visível que o Poder Judiciário é dependente do regime de exceção, onde a truculência se faz notar nos constantes chamamentos da polícia, sendo a pena de prisão decretada sem o amplo direito de defesa dos acusados, bem característico das ditaduras que relegam o estado de direito dos cidadãos a planos secundários fragilizados.

Um drama que mostra as circunstâncias acima dos fatos principais. Pessoas que dificilmente mentem, mesmo para se safarem das prisões. O que não falta são policiais sempre à espreita para algemar os indiciados, basta o julgador se sentir hostilizado, como um protótipo representante do Governo que não pode ser contestado ou ter o poder colocado em xeque, como alegoria evidente dos países antidemocráticos. Outra metáfora magnífica é a do marido tentando impedir a ida da esposa para fora de seu próprio país, não concedendo-lhe o divórcio, alegando que seu pai está com Alzheimer e necessita cuidados especiais, embora senil e putrefato esteja o regime opressor, tal qual ele simboliza ao negar a liberdade tão aguardada por uma criatura reprimida.

Existem todos os ingredientes para se admirar a denúncia numa civilização decadente, onde um povo sofre todas as amarguras impostas por uma censura de cima para baixo. Torna-se marcante pela beleza das palavras e frases com todas as alegrias e tristezas, num emaranhado típico de uma burocracia como Kafka já alertara e alertara na sua obra sempre revigorada e presente. Desde já se insere como um dos 10 melhores do ano e favorito para receber a estatueta do Oscar de 2012, como Melhor Filme Estrangeiro.

O diretor demonstra sutileza, ao deixar o final em aberto, embora pelo sorriso maroto da garota se deduza qual foi a melhor opção. A saída dos pais da sala de audiência nada mais é do que a metáfora do medo da revelação e o simbolismo da escolha. Um filme que aflora a dignidade pelo seu poder metafórico de abordar nas entrelinhas as questões proibidas no Irã, usando a sensibilidade para mesclar a arrogância estatal com a delicadeza dos personagens femininos em seu conteúdo de protesto. Há os dissabores e as complexidades das relações dos iranianos com sua pátria mãe, numa estrondosa alegoria montada num contexto, como se fosse um jogo de xadrez, faz um edificante manifesto de denúncia contra o tiranismo nesta obra-prima.

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