quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A Pele de Vênus













Jogo de Sedução

Roman Polanski é um dos mais competentes cineastas octogenários em atividade, embora sua conturbada vida pessoal atrapalhe em muito seu destino no território dos Estados Unidos e países que façam extradição para lá. Seus problemas pessoais e sua suposta dívida para com a justiça, no entanto, não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória na sétima arte. Em 2010, preso na Suíça, não pôde receber o Urso de Prata de direção, em Berlim, por O Escritor Fantasma. Já em 2013, voltou a participar do Festival de Cannes com A Pele de Vênus, baseado na peça Venus in Fur, do norte-americano David Ives, que por sua vez inspirou-se no romance de Leopold von Sacher-Masoch, publicado em 1870, que viria tornar-se célebre definidor da fábula clássica da dominação sexual nas relações por perversão, advindo dele a terminologia masoquismo. Hector Babenco montou nos palcos brasileiros a referida peça, com interpretação de Bárbara Paz e André Garolli.

Ainda que o diretor polonês esteja meio devagar para filmar, o penúltimo longa-metragem, Deus da Carnificina (2011), foi sua primeira guinada na carreira para mergulhar no teatro, com bons motivos para ser assistido, também baseado numa peça teatral, da dramaturga francesa Yasmina Reza, que foi encenada várias vezes, iniciando em 2006 no Brasil, com Paulo Betti, Júlia Lemmertez e Deborah Evelyn. Não foi daqueles filmes como se acostumaram seus fãs, faltou vigor e o suspense em alta tensão para uma abordagem mais profunda de uma sociedade em decomposição, num cenário com dois casais, muito cinismo entre os pares com múltiplas acusações mútuas. Nesta segunda investida, A Pele de Vênus apresenta mais elementos consistentes neste puro drama de excelente exercício narrativo, sendo bem auxiliado por Alexandre Desplat na construção da fascinante trilha sonora instrumental. A montagem de Hervé de Luze e Margot Meynier é impecável para um cenário apropriado pela proposta, com duas locações apenas: os teatros Hébertot e Récamier, em Paris, além da mobília antiga e um fálico cactos integrado com a filha de Afrodite.

O realizador imprime consistência num aparente mote simples, embora haja complexidade humana que toma vulto e persista nas relações dolorosas e instigantes do casal protagonista interpretado por Mathieu Amalric como o diretor Thomas, uma espécie de alter ego de Polanski, também pela semelhança física, e Emmanuelle Seigner- casada há mais de 20 anos com o cineasta polonês- como a atriz Vanda que encarna com ardor seu papel que tem o mesmo nome. Obtém uma excelente performance na pele de uma mulher vingativa numa verdadeira catarse de situações inusitadas que se avolumam com o desenrolar da história, com línguas afiadas para alfinetadas pontuais sobre as relações com submissões humilhantes, onde a reciprocidade se espalha e atinge o âmago dos gladiadores como se estivessem numa arena.

A narrativa segue um ritmo fervoroso, ou seja, uma peça do palco filmada e transportada para a linguagem do cinema, mas bem solucionada pelo diretor no enredo adaptado conjuntamente com Ives, que evita a simplicidade de apenas transpô-la, ao buscar a interação, pois coloca um ótimo ritmo sequencial nos planos e contraplanos. O texto aborda questões como arte e vida, mas se esmera na reflexão das relações intrínsecas e extrínsecas entre um homem e uma mulher. O domínio pelo poder buscado com afinco na guerra dos sexos, temas predominantes na filmografia do cineasta, em especial A Faca na Água (1962), como os choques de um triângulo no mar, visto agora como se fosse uma versão daquele longa, onde se digladiam os dois personagens atritados. A personagem feminina é despudorada, invasiva, sedutora e instável como a tempestade no prólogo. A figura masculina se mostra inicialmente segura, compenetrada, mas que aos poucos passa por um momento de insegurança em vários sentidos, sente-se acuada num canto. Logo começa um clássico jogo de cena por pura sedução de ambos, no qual se mistura ficção e realidade com a perda do espaço demarcado, rompem-se as fronteiras da lucidez.

Polanski é daqueles cineastas que nunca passam indiferentes e seus filmes sempre causam reações na plateia, por sua verve sarcástica inerente, fundindo teatro e cinema, na mesma esteira de Alain Resnais, com Vocês Ainda Não Viram Nada! (2011) e Amar, Beber e Cantar (2014). Há neste drama o tensionamento sinistro e apavorante de O Bebê de Rosemary (1968), obra-prima do terror; tem a leveza de A Dança dos Vampiros (1967), um misto de terror e comédia; resquícios do frio noir que notabilizou o magnífico Chinatown (1974), que deixou belos ensinamentos de uma realização com fôlego até o último minuto da película; sem esquecer o instigamento de O Inquilino (1976), um verdadeiro achado de suspense; bem como na densa abordagem sobre a guerra em O Pianista (2002), que lhe valeu o Oscar de Melhor Diretor.

A Pele de Vênus é complexo e provocativo, pois consegue fazer de um encontro profissional do encenador com uma atriz à procura de um papel, transforma o palco num exorcismo de almas de criaturas amarguradas e ressentidas. A partir disso, surge um grande duelo de dois intérpretes magníficos como se fosse uma sessão de terapia: Amalric e Emmanuelle estão soberbos. O resultado é um filme superior para um exemplar domínio de cena do texto sem se afastar dos recursos da linguagem cinematográfica, construindo momentos dignos de um teatro filmado, como a câmera entrando pela porta principal na primeira cena e saindo pelo mesmo lugar no desfecho. Cria-se uma envolvente e sensível reflexão sobre as relações de sedução, obsessão, submissão, malícia e perversidade, com impacto sensorial e visual que só o cinema propicia.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Tristeza e Alegria


Reconstrução pela Tragédia

Um drama comovente da dura e crua história ocorrida com o próprio cineasta dinamarquês Nils Malmros, pouco conhecido no Brasil, mas com uma trajetória de premiação bem significativa, gozando de ótimo prestígio pela crítica internacional. Participou de três edições na competição oficial do Festival de Berlim, foi diversas vezes premiado pelos críticos da Dinamarca com o prêmio Bodil de melhor do ano, teve o reconhecimento do prêmio Robert pela academia de cinema de seu país em três oportunidades, sendo o escolhido para representar no Oscar deste ano, com Tristeza e Alegria, produção de 2013, que também foi bem recebida na Mostra de São Paulo de 2014.

A realização tem rara perfeição na recuperação por flashbacks do relacionamento controvertido do cineasta Johannes (Jakob Cedergren) com sua mulher, a professora Signe (Helle Fagralid). São mostradas situações rotineiras do passado com evidências de um ciúme doentio oriundo de uma loucura maníaco-depressiva dela para o marido, que também deixa transparecer um narcisismo bem marcante e provocador de uma situação tensa que acaba em surto psicótico ao extremo de matar a filha, como solução para romper um vínculo em forma de libertação, segundo o médico, nas terapias com o protagonista e suas confissões com análises das personalidades dos envolvidos diretamente. Já o presente retrata uma reconstrução de uma grande paixão fragilizada pelo evento da morte, mas que há uma tentativa séria de reinserção social da mãe, que é internada e está visivelmente traumatizada. Culpada ou vítima do contexto?

O diretor coloca em xeque o casal e a perda prematura da criança de apenas nove meses como a maior tristeza em formato de castigo que poderiam enfrentar. Um drama denso que não falta dor, mas há um fio de esperança para ambos. Para isto, os dois terão que se unir e montar uma fortaleza de reciprocidade de afeto, apoio e concessões mútuas, para tentar seguir levando a vida. Johannes pode parecer passivo demais em alguns momentos, por estar repleto de dúvidas e inquietações não acredita no que aconteceu, até perceber a realidade cruel no momento em que dá a notícia para os pais. Uma narrativa contundente num cenário de nevasca, bem característico dos países escandinavos, tendo no frio um fator dominante do ambiente que afeta também os relacionamentos humanos.

Eis um filme chocante e ousado sobre a experiência traumática ocorrida em 1984, numa trama verdadeira que é contada por Malmros. Repassada para a tela como demonstração de coragem e um exorcismo pessoal, através de um exercício de terapia no divã do psiquiatra. Fala sobre sua dor, sofrimento e sentimento de culpa pela falta de cuidados maiores com o fato inusitado, que carrega e o corrói por anos. Não há pieguismo, sequer descamba para o trivial melodrama, num relato sincero com emoções à flor da pele, mas com a alma e o coração em frangalhos pelos destroços deixados pelo tempo. Após mais de duas décadas, chega até o desfecho com todos os fantasmas renascendo e povoando a memória do fatídico dia da tragédia, no qual sobram raras alegrias num cenário sombrio de um filme melancólico que vai ao encontro do espectador pela confissão dilacerante.

Um cinema distante da grandiloquência, que procura nos pequenos gestos e imagens transmitir sinais de conflitos não solucionados, dando evidências do caminho pelo amor para conciliações nas intransigências refletidas das emoções obsessivas que levam para a perda do equilíbrio, no qual os irmãos Dardenne são mestres na temática infantil: O Filho (2002) e A Criança (2005). É possível consertar uma relação com consequências trágicas e também com a libertação dos personagens, quando há o envolvimento do filho do casal? Uma indagação que arrebata e instiga, lançada por Malmros, na mesma esteira de dois conterrâneos: Susanne Bier, em Segunda Chance (2014), e Lars von Trier no arrepiante Anticristo (2009). Bier aborda duas famílias que se cruzam por linhas tortas, ao questionar os limites da ética confrontados com as normas da lei vigente, diante da ação de um policial que leva para sua casa um recém-nascido pelos maus tratos dos pais drogados. Trier reflete sobre as loucuras da mente, através da evolução gradual dos transtornos de ansiedade para uma fulminante e progressiva síndrome do pânico que estão presentes na mãe, sua obsessão pelo filho morto tragicamente conflitua como um paradoxo pela paixão nutrida pelo marido, levando-a ao êxtase dos demônios que dominam seu estado decadente de lucidez.

Assiste-se Tristeza e Alegria com perplexidade, dor e angústia ao mesmo tempo, pois os contrapontos do roteiro são perturbadores e dão reviravoltas plausíveis, ao refletir os problemas dos pais em consonância com a existência da criança no meio do estopim. Há mágoas devastadoras e virulentas, que se encaixam na perda da razão pela loucura dos adultos num painel com tintas fortes e objetivas da insensatez que atordoa o absurdo das mentes perturbadas, sem deixar de cutucar com sutileza a vingança. Há disfarces de uma fragilidade reprimida para controlar a violência das criaturas, sem incorrer no discurso barato e vazio, inserindo-se num mundo acostumado aos atos bestiais e chocantes de pessoas distanciadas da realidade que ficam pelo caminho, como uma consequência bombástica. Registra-se um flagrante retrocesso de valores burlados dentro de uma engrenagem para satisfazer caprichos de personagens com personalidades distorcidas, carregando sentimentos culposos e sem concessões. As revelações se completam pelas imagens derradeiras, numa sombria amostragem do epílogo revelador do sacrifício como redenção. Um filmaço com sobriedade, rigor e elegância.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Homem Irracional


Crime e Castigo

Woody Allen mesmo se reinventando, ou seguindo sua trajetória de comédias de costumes e dramáticas, ou ainda nos dramas com pitadas de suspense com humor cáustico, mantém fiel o sarcasmo e a ironia fina, sempre presentes como marcas registradas de sua filmografia imensa. Neste 47º. longa-metragem não atua, mas dirige e escreve o roteiro de Homem Irracional, retomando com vigor sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do cotidiano. Evidente que poucos filmes se comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida sem graça. Depois veio a fase europeia, ao filmar em lugares distantes da cultuada Nova Iorque, iniciou por Londres com Ponto Final- Match Point (2005), um dos melhores dos últimos anos; o bom Scoop- O Grande Furo (2006); e o razoável O Sonho de Cassandra (2007), entre tantas realizações.

Nesta última realização, apresentada fora da competição no Festival de Cannes deste ano, novamente mergulha com boa profundidade nas neuroses e nos relacionamentos despudorados, nas traições com métodos de sedução convencionais, como uma terapia não ortodoxa decorrente das angústias atormentadoras. Seus personagens muitas vezes são reescritos, às vezes com bons resultados e em outros apenas discretos. Mais uma vez parte dos desajustes e do tédio, como molas propulsoras para ingressar na crise existencial que afeta o professor de filosofia Abe Lucas (Joaquin Phoenix- muito bem no papel). O personagem central chega numa pequena cidade dos Estados Unidos para lecionar, sofre o assédio de uma de suas alunas, Jill (Emma Stone), que se aproxima dele encantada pelo fascínio intelectual, mas se vê fisgada principalmente pela melancolia daquele homem triste, alcoólatra e deprimido.

O cineasta é sutil nas suas colocações e nas armadilhas que lança no enredo. Obviamente, que a aluna terá a concorrência de uma mulher mais experiente. Ou seja, da professora casada Rita (Parker Posey), que fará de tudo para ter um affair com o colega. A história não para por aí, logo Abe ouvirá por acaso uma conversa de uma desconhecida sobre a perda da guarda do filho numa lanchonete, em que a decisão fora injusta pelo juiz Spangler (Tom Kemp). Pronto, era a faísca para acender a chama, como algo consistente para sair da mesmice que faltava na vida do catedrático. Idealiza um plano de assassinato do magistrado, por ser um completo desconhecido, começou a tomar uma instigante forma sólida. Era improvável e quase que impossível ser descoberto. Contava com as parcerias ocultas involuntariamente das mulheres apaixonadas. A reviravolta da trama encontra inspiração no clássico romance Crime e Castigo, de Dostoievski, mas para isto o diretor deixa para trás as divagações filosóficas do professor que cita Kant, ao pregar o recurso da mentira; Sartre apostando que “o inferno são os outros”; Hannah Arendt e a sua “teoria da maldade”. Sai do universo teórico e ingressa no mundo real, ao preconizar na cena anterior: “Boa parte da filosofia não passa de masturbação verbal”.

O drama mostra para o protagonista que seu mundo agora mudou e que a vida parece contrariar, embora seja um alerta para aquela construção falsa de um castelo de areia desmoronando. Antes tinha uma fragilidade que aflorava e bebia uísque como se fosse água, uma espécie de antidepressivo, deixando-o vazio e sem perspectiva de um futuro, sem um sentido claro sobre a existência e sua continuação. Agora a cabeça roda, tudo parece perdido, mas surge a grande chance de reeguer-se da fantasia arquitetada, quando monta outro plano para sair da enrascada. O filme tem alegorias, como a lanterna utilizada no parque de diversões, como peça chave para um pai iluminar o caminho da filha, objeto este que será o mesmo que dará o inusitado desfecho do elevador. A transgressão pune com um castigo letal para o executor da arapuca. A luz virá em forma de fantasma para o mestre e sua inspiração em Dostoievski estará justificada pela irracionalidade tombada na escuridão do poço.

Tanto a mentira, como a traição e a desonestidade não têm perdão, assim como a frivolidade presente no crime, numa construção psicológica que retrata a bancarrota humana depreendida do ser irracional, através de imagens que retratam o orgulho ferido da aluna e a dignidade perdida de Abbe, na trajetória pelo recomeço. A neurose doentia está presente e dá soluções nada pragmáticas. Homem Irracional retrata as consequências de uma realidade num mundo de desatinos de verdades ignoradas, enfoca as demasiadas preocupações irreais, como metáfora da cegueira de vidas alimentadas ilusoriamente por sentimentos esfarelados e corrompidos por futilidades e desmandos. São desdobramentos de uma narrativa como pedras no tabuleiro de um jogo de xadrez, deixando a dor provocada pela angústia ganhar força e tornar-se consistente sobre os desajustes e vínculos destroçados por torpezas. Satiriza e ironiza a vida pelos vestígios eivados de perturbações latentes que são revelados por Allen, mas isso não é o todo, apenas um resultado através da busca do significado existencialista. Mesmo sendo um filme menor deste genial diretor bergmaniano, é uma contribuição significativa para o cinema, sempre voltado para os acontecimentos rotineiros do amor, da paixão desenfreada, os fracassos do ser humano e o pessimismo com o mundo das pessoas amarguradas.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Que Horas Ela Volta?


Vulcão na Mansão

Outro longa-metragem brasileiro que faz furor e repercute de forma admirável é Que Horas Ela Volta?, escrito e dirigido pela paulista Ana Muylaert, que já causara muito boa impressão com Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), sendo forte candidato a representar o Brasil no Oscar de 2016. Aplaudido pelo público e reconhecido pela crítica na abertura do 43º. Festival de Cinema de Gramado deste ano; foi bem recebido no Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, na seleção Carte Blanche, em 2014; exibido com sucesso na World Competition, em Sundunce, no início de 2015, em que Regina Casé e Camila Márdila dividiram o prêmio especial do júri de melhor atriz; também neste ano se apresentou no Festival de Berlim, sendo eleito o melhor filme na Mostra Panorama e conquistado o prêmio Cicae Art Cinema pela International Confederation of Art House, pelo júri independente daquele evento.

Ao retratar os contrastes sociais com contundência, especialmente a hipocrisia, o desconforto e o preconceito latentes que pairam e se materializam numa relação entre ricos e pobres, busca subsídios do passado herdado de uma fase de ouro das elites brasileiras nos seus aspectos exteriores, bem focado nas cenas de subordinação da empregada em relação aos patrões todo poderosos ostentado pelo núcleo familiar de um cotidiano frio de um profundo abismo nas singelas situações do dia a dia, como a frustração da reprovação no vestibular e o prêmio para ir estudar inglês na Austrália; ou o acidente da mãe com a falta de atenção do filho; ou ainda do marido solitário em seu atelier silencioso em busca de uma aventura amorosa. Há sinais evidentes e próximos pela similitude do tema com Casa Grande (2014), dirigido pelo estreante carioca Fellipe Barbosa, um drama brasileiro retratado sem demagogia pelos paradoxos da visão social de uma sociedade representada por uma classe média alta que tenta manter valores superados.

A história é composta por personagens bem estruturados e identificados claramente nas suas fragilidades, falta de afeto, desajustes, mesquinharias e de uma submissão oriunda da época de um colonialismo de outrora. A protagonista é Val (R. Casé- de interpretação soberba) que se mudou há treze anos do interior de Pernambuco para trabalhar numa mansão do aristocrata bairro do Morumbi, em São Paulo, e morar num quartinho acanhado nos fundos, pouco arejado, com uma televisão e um barulhento ventilador, na residência dos empregadores. Seu objetivo é dar melhores condições de vida para a espevitada filha Jéssica (Camila Márdila- perfeita no papel), deixada para trás ainda menina sob os cuidados do pai, ficando cicatrizes abertas de uma relação interrompida abruptamente, para ser babá do fragilizado Fabinho (Michel Joelsas), um garoto que gosta de dormir com o cafuné da doméstica, uma espécie de segunda mãe. Nordestino sofre na cidade grande é o recado direto, sem entrelinhas.

A trama faz um retrato fiel da alta burguesia paulista abastada que leva uma vida confortável em relação à maioria dos compatriotas. Os patrões vivem da herança familiar de Zé Carlos (Lourenço Mutarelli), embora Bárbara (Karine Telles) faça um trabalho mais de aparências no mundo da tendência da moda, não abre mão em apresentar a serviçal devidamente uniformizada para o público, entendendo ser um comportamento requintado de puro estilo, apesar do ridículo e da breguice exposta, contrariando seus princípios de mulher fina. A grande mudança na rotina acontece com o pedido de Jéssica, por telefone, para ir morar com a mãe e prestar vestibular na disputada Faculdade de Arquitetura da USP, a mesma prova que irá fazer Fabinho. É recebida, aparentemente, com boas vindas pelos donos da casa, só que quando deixa de seguir o protocolo dos escravos do passado, ao circular de maneira espaçosa como se fosse da família, tudo se complica. É vista como um furacão em erupção no espaço sagrado da suprema hipocrisia dos “bons chefes”. A quebra de paradigmas da jovem, proposta por Muylaert, é um marco da estruturas que se abalam, decorrente da irresignação dos tabus humilhantes ainda mantidos, principalmente a analogia explícita sobre o rato humano que toma banho com a casta de sangue azul na piscina.

O realismo está presente nos gestos e atitudes pelas imagens e diálogos reveladores. O drama narrado em ritmo cômico suaviza o impacto do distanciamento existente dos personagens envolvidos pelas diferenças, mas reflete a preocupação desta obra autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre a mansão e vai até o verdadeiro centro da família do rapazinho que busca afeto no quartinho minúsculo de Val. Lá, vai encontrar carinho, estímulo e amor maternal, contrapondo com sua condição elitizada e solitária, encontrado no badalado O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, um filme silencioso que capta os barulhos externos, além dos símbolos de uma brutal realidade, ou do seu genérico argentino Bem Perto de Buenos Aires (2014), de Benjamín Naishtat, que aborda as classes diferentes em lados opostos da cerca da pobreza. Ou seja: de um lado a doméstica e seu sobrinho, do outro, a patroa arquiteta e a namorada do rapaz que trabalha na residência dos amigos da ricaça.

Que Horas Ela Volta? não é apenas uma comedia dramática preocupada com as anomalias existentes nas as pirâmides salariais de um contexto severo e implacável para todos, mas incisivo na hipocrisia das relações empregatícias quando há diferenças abissais para aparar as arestas, mas a ruptura do elo do passado em busca do trabalho para melhorar a situação deprimente para sobreviver, através de uma narrativa de inspirada criatividade, pelo olhar do menos favorecido, sem cair na obviedade. Cada posição dos personagens torna-se autônoma no desenrolar do enredo, ao direcionar a abordagem das relações afetivas de empregada e filha com os integrantes da família patronal, mas sem perder a dignidade e a dor repassada para a plateia. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este notável retrato intimista neste filme de cores bem brasileiras, que irá reservar no desfecho outra revelação entre mãe e filha para uma redentora esperança.