Crime e Castigo
Woody Allen mesmo se reinventando, ou seguindo sua
trajetória de comédias de costumes e dramáticas, ou ainda nos dramas com
pitadas de suspense com humor cáustico, mantém fiel o sarcasmo e a ironia fina,
sempre presentes como marcas registradas de sua filmografia imensa. Neste 47º. longa-metragem não atua, mas dirige e escreve
o roteiro de Homem
Irracional, retomando com vigor
sua capacidade de construção de um cinema voltado
para as inquietações angustiantes do cotidiano. Evidente que poucos filmes se
comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa,
talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985),
naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da
tela indo ao encontro da garçonete que
assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida sem
graça. Depois veio a fase europeia, ao filmar em lugares distantes da cultuada
Nova Iorque, iniciou por Londres com Ponto
Final- Match Point (2005),
um dos melhores dos últimos anos; o bom Scoop-
O Grande Furo (2006); e o razoável O Sonho de Cassandra
(2007), entre tantas realizações.
Nesta última realização, apresentada fora da competição no
Festival de Cannes deste ano, novamente mergulha com boa profundidade nas
neuroses e nos relacionamentos despudorados, nas traições com métodos de
sedução convencionais, como uma terapia não ortodoxa decorrente das angústias
atormentadoras. Seus personagens muitas vezes são reescritos, às vezes com bons
resultados e em outros apenas discretos. Mais uma vez parte dos desajustes e do
tédio, como molas propulsoras para ingressar na crise existencial que afeta o
professor de filosofia Abe Lucas (Joaquin Phoenix- muito bem no papel). O personagem
central chega numa pequena cidade dos Estados Unidos para lecionar, sofre o
assédio de uma de suas alunas, Jill (Emma Stone), que se aproxima dele
encantada pelo fascínio intelectual, mas se vê fisgada principalmente pela
melancolia daquele homem triste, alcoólatra e deprimido.
O cineasta é sutil nas suas colocações e nas armadilhas que
lança no enredo. Obviamente, que a aluna terá a concorrência de uma mulher mais
experiente. Ou seja, da professora casada Rita (Parker Posey), que fará de tudo
para ter um affair com o colega. A história
não para por aí, logo Abe ouvirá por acaso uma conversa de uma desconhecida
sobre a perda da guarda do filho numa lanchonete, em que a decisão fora injusta
pelo juiz Spangler (Tom Kemp). Pronto, era a faísca para acender a chama, como
algo consistente para sair da mesmice que faltava na vida do catedrático. Idealiza
um plano de assassinato do magistrado, por ser um completo desconhecido, começou
a tomar uma instigante forma sólida. Era improvável e quase que impossível ser
descoberto. Contava com as parcerias ocultas involuntariamente das mulheres
apaixonadas. A reviravolta da trama encontra inspiração no clássico romance Crime e Castigo, de Dostoievski, mas para
isto o diretor deixa para trás as divagações filosóficas do professor que cita
Kant, ao pregar o recurso da mentira; Sartre apostando que “o inferno são os
outros”; Hannah Arendt e a
sua “teoria da maldade”. Sai do universo teórico e ingressa no mundo real, ao
preconizar na cena anterior: “Boa parte da filosofia não passa de masturbação
verbal”.
O drama mostra
para o protagonista que seu mundo agora mudou e que a vida parece contrariar,
embora seja um alerta para aquela construção falsa de um castelo de areia
desmoronando. Antes tinha uma fragilidade que aflorava e bebia uísque como se
fosse água, uma espécie de antidepressivo, deixando-o vazio e sem perspectiva
de um futuro, sem um sentido claro sobre a existência e sua continuação. Agora
a cabeça roda, tudo parece perdido, mas surge a grande chance de reeguer-se da
fantasia arquitetada, quando monta outro plano para sair da enrascada. O filme
tem alegorias, como a lanterna utilizada no parque de diversões, como peça
chave para um pai iluminar o caminho da filha, objeto este que será o mesmo que
dará o inusitado desfecho do elevador. A transgressão pune com um castigo letal
para o executor da arapuca. A luz virá em forma de fantasma para o mestre e sua
inspiração em Dostoievski estará justificada pela irracionalidade tombada na
escuridão do poço.
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