quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Homem Irracional


Crime e Castigo

Woody Allen mesmo se reinventando, ou seguindo sua trajetória de comédias de costumes e dramáticas, ou ainda nos dramas com pitadas de suspense com humor cáustico, mantém fiel o sarcasmo e a ironia fina, sempre presentes como marcas registradas de sua filmografia imensa. Neste 47º. longa-metragem não atua, mas dirige e escreve o roteiro de Homem Irracional, retomando com vigor sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do cotidiano. Evidente que poucos filmes se comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida sem graça. Depois veio a fase europeia, ao filmar em lugares distantes da cultuada Nova Iorque, iniciou por Londres com Ponto Final- Match Point (2005), um dos melhores dos últimos anos; o bom Scoop- O Grande Furo (2006); e o razoável O Sonho de Cassandra (2007), entre tantas realizações.

Nesta última realização, apresentada fora da competição no Festival de Cannes deste ano, novamente mergulha com boa profundidade nas neuroses e nos relacionamentos despudorados, nas traições com métodos de sedução convencionais, como uma terapia não ortodoxa decorrente das angústias atormentadoras. Seus personagens muitas vezes são reescritos, às vezes com bons resultados e em outros apenas discretos. Mais uma vez parte dos desajustes e do tédio, como molas propulsoras para ingressar na crise existencial que afeta o professor de filosofia Abe Lucas (Joaquin Phoenix- muito bem no papel). O personagem central chega numa pequena cidade dos Estados Unidos para lecionar, sofre o assédio de uma de suas alunas, Jill (Emma Stone), que se aproxima dele encantada pelo fascínio intelectual, mas se vê fisgada principalmente pela melancolia daquele homem triste, alcoólatra e deprimido.

O cineasta é sutil nas suas colocações e nas armadilhas que lança no enredo. Obviamente, que a aluna terá a concorrência de uma mulher mais experiente. Ou seja, da professora casada Rita (Parker Posey), que fará de tudo para ter um affair com o colega. A história não para por aí, logo Abe ouvirá por acaso uma conversa de uma desconhecida sobre a perda da guarda do filho numa lanchonete, em que a decisão fora injusta pelo juiz Spangler (Tom Kemp). Pronto, era a faísca para acender a chama, como algo consistente para sair da mesmice que faltava na vida do catedrático. Idealiza um plano de assassinato do magistrado, por ser um completo desconhecido, começou a tomar uma instigante forma sólida. Era improvável e quase que impossível ser descoberto. Contava com as parcerias ocultas involuntariamente das mulheres apaixonadas. A reviravolta da trama encontra inspiração no clássico romance Crime e Castigo, de Dostoievski, mas para isto o diretor deixa para trás as divagações filosóficas do professor que cita Kant, ao pregar o recurso da mentira; Sartre apostando que “o inferno são os outros”; Hannah Arendt e a sua “teoria da maldade”. Sai do universo teórico e ingressa no mundo real, ao preconizar na cena anterior: “Boa parte da filosofia não passa de masturbação verbal”.

O drama mostra para o protagonista que seu mundo agora mudou e que a vida parece contrariar, embora seja um alerta para aquela construção falsa de um castelo de areia desmoronando. Antes tinha uma fragilidade que aflorava e bebia uísque como se fosse água, uma espécie de antidepressivo, deixando-o vazio e sem perspectiva de um futuro, sem um sentido claro sobre a existência e sua continuação. Agora a cabeça roda, tudo parece perdido, mas surge a grande chance de reeguer-se da fantasia arquitetada, quando monta outro plano para sair da enrascada. O filme tem alegorias, como a lanterna utilizada no parque de diversões, como peça chave para um pai iluminar o caminho da filha, objeto este que será o mesmo que dará o inusitado desfecho do elevador. A transgressão pune com um castigo letal para o executor da arapuca. A luz virá em forma de fantasma para o mestre e sua inspiração em Dostoievski estará justificada pela irracionalidade tombada na escuridão do poço.

Tanto a mentira, como a traição e a desonestidade não têm perdão, assim como a frivolidade presente no crime, numa construção psicológica que retrata a bancarrota humana depreendida do ser irracional, através de imagens que retratam o orgulho ferido da aluna e a dignidade perdida de Abbe, na trajetória pelo recomeço. A neurose doentia está presente e dá soluções nada pragmáticas. Homem Irracional retrata as consequências de uma realidade num mundo de desatinos de verdades ignoradas, enfoca as demasiadas preocupações irreais, como metáfora da cegueira de vidas alimentadas ilusoriamente por sentimentos esfarelados e corrompidos por futilidades e desmandos. São desdobramentos de uma narrativa como pedras no tabuleiro de um jogo de xadrez, deixando a dor provocada pela angústia ganhar força e tornar-se consistente sobre os desajustes e vínculos destroçados por torpezas. Satiriza e ironiza a vida pelos vestígios eivados de perturbações latentes que são revelados por Allen, mas isso não é o todo, apenas um resultado através da busca do significado existencialista. Mesmo sendo um filme menor deste genial diretor bergmaniano, é uma contribuição significativa para o cinema, sempre voltado para os acontecimentos rotineiros do amor, da paixão desenfreada, os fracassos do ser humano e o pessimismo com o mundo das pessoas amarguradas.

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