Vulcão na Mansão
Outro longa-metragem brasileiro que faz furor e repercute de
forma admirável é Que Horas Ela Volta?,
escrito e dirigido pela paulista Ana Muylaert, que já causara muito boa
impressão com Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), sendo forte
candidato a representar o Brasil no Oscar de 2016. Aplaudido pelo público e
reconhecido pela crítica na abertura do 43º. Festival de Cinema de Gramado
deste ano; foi bem recebido no Festival Internacional de Cinema de Locarno, na
Suíça, na seleção Carte Blanche, em 2014; exibido com sucesso na World
Competition, em Sundunce, no início de 2015, em que Regina Casé
e Camila Márdila dividiram o prêmio especial do júri de melhor atriz; também
neste ano se apresentou no Festival de Berlim, sendo eleito o melhor filme na
Mostra Panorama e conquistado o prêmio Cicae Art Cinema pela International
Confederation of Art House, pelo júri independente daquele evento.
Ao retratar os contrastes sociais com contundência,
especialmente a hipocrisia, o desconforto e o preconceito latentes que pairam e
se materializam numa relação entre ricos e pobres, busca subsídios do passado herdado
de uma fase de ouro das elites brasileiras nos seus aspectos exteriores, bem
focado nas cenas de subordinação da empregada em relação aos patrões todo
poderosos ostentado pelo núcleo familiar de um cotidiano frio de um profundo
abismo nas singelas situações do dia a dia, como a frustração da reprovação no
vestibular e o prêmio para ir estudar inglês na Austrália; ou o acidente da mãe
com a falta de atenção do filho; ou ainda do marido solitário em seu atelier
silencioso em busca de uma aventura amorosa. Há sinais evidentes e próximos
pela similitude do tema com Casa Grande
(2014), dirigido pelo estreante carioca Fellipe Barbosa, um drama brasileiro
retratado sem demagogia pelos paradoxos da visão social de uma sociedade
representada por uma classe média alta que tenta manter valores superados.
A história é composta por personagens bem estruturados e
identificados claramente nas suas fragilidades, falta de afeto, desajustes,
mesquinharias e de uma submissão oriunda da época de um colonialismo de
outrora. A protagonista é Val (R. Casé- de interpretação soberba) que se mudou há
treze anos do interior de Pernambuco para trabalhar numa mansão do aristocrata
bairro do Morumbi, em São
Paulo , e morar num quartinho acanhado nos fundos, pouco
arejado, com uma televisão e um barulhento ventilador, na residência dos
empregadores. Seu objetivo é dar melhores condições de vida para a espevitada
filha Jéssica (Camila Márdila- perfeita no papel), deixada para trás ainda
menina sob os cuidados do pai, ficando cicatrizes abertas de uma relação
interrompida abruptamente, para ser babá do fragilizado Fabinho (Michel
Joelsas), um garoto que gosta de dormir com o cafuné da doméstica, uma espécie
de segunda mãe. Nordestino sofre na cidade grande é o recado direto, sem
entrelinhas.
A trama faz um retrato fiel da alta burguesia paulista
abastada que leva uma vida confortável em relação à maioria dos compatriotas. Os
patrões vivem da herança familiar de Zé Carlos (Lourenço Mutarelli), embora
Bárbara (Karine Telles) faça um trabalho mais de aparências no mundo da
tendência da moda, não abre mão em apresentar a serviçal devidamente uniformizada
para o público, entendendo ser um comportamento requintado de puro estilo,
apesar do ridículo e da breguice exposta, contrariando seus princípios de
mulher fina. A grande mudança na rotina acontece com o pedido de Jéssica, por
telefone, para ir morar com a mãe e prestar vestibular na disputada Faculdade
de Arquitetura da USP, a mesma prova que irá fazer Fabinho. É recebida,
aparentemente, com boas vindas pelos donos da casa, só que quando deixa de
seguir o protocolo dos escravos do passado, ao circular de maneira espaçosa
como se fosse da família, tudo se complica. É vista como um furacão em erupção
no espaço sagrado da suprema hipocrisia dos “bons chefes”. A quebra de
paradigmas da jovem, proposta por Muylaert, é um marco da estruturas que se
abalam, decorrente da irresignação dos tabus humilhantes ainda mantidos,
principalmente a analogia explícita sobre o rato humano que toma banho com a
casta de sangue azul na piscina.
O realismo está presente nos gestos e atitudes pelas imagens
e diálogos reveladores. O drama narrado em ritmo cômico suaviza o impacto do distanciamento
existente dos personagens envolvidos pelas diferenças, mas reflete a
preocupação desta obra autoral com a estratificação social, através da captação
da câmera que percorre a mansão e vai até o verdadeiro centro da família do rapazinho
que busca afeto no quartinho minúsculo de Val. Lá, vai encontrar carinho, estímulo
e amor maternal, contrapondo com sua condição elitizada e solitária, encontrado
no badalado O Som ao Redor (2012), de
Kleber Mendonça Filho, um filme silencioso que capta os barulhos externos, além
dos símbolos de uma brutal realidade, ou do seu genérico argentino Bem Perto de Buenos Aires (2014), de Benjamín
Naishtat, que aborda as classes diferentes em lados opostos da cerca da pobreza.
Ou seja: de um lado a doméstica e seu sobrinho, do outro, a patroa arquiteta e
a namorada do rapaz que trabalha na residência dos amigos da ricaça.
Que Horas Ela Volta?
não é apenas uma comedia dramática preocupada com as anomalias existentes nas
as pirâmides salariais de um contexto severo e implacável para todos, mas
incisivo na hipocrisia das relações empregatícias quando há diferenças abissais
para aparar as arestas, mas a ruptura do elo do passado em busca do trabalho
para melhorar a situação deprimente para sobreviver, através de uma narrativa
de inspirada criatividade, pelo olhar do menos favorecido, sem cair na
obviedade. Cada posição dos personagens torna-se autônoma no desenrolar do
enredo, ao direcionar a abordagem das relações afetivas de empregada e filha com
os integrantes da família patronal, mas sem perder a dignidade e a dor
repassada para a plateia. São elementos bem caracterizadores e envolventes que
marcam com rara qualidade este notável retrato intimista neste filme de cores bem
brasileiras, que irá reservar no desfecho outra revelação entre mãe e filha
para uma redentora esperança.
Um comentário:
Valeu Roni
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