quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Que Horas Ela Volta?


Vulcão na Mansão

Outro longa-metragem brasileiro que faz furor e repercute de forma admirável é Que Horas Ela Volta?, escrito e dirigido pela paulista Ana Muylaert, que já causara muito boa impressão com Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), sendo forte candidato a representar o Brasil no Oscar de 2016. Aplaudido pelo público e reconhecido pela crítica na abertura do 43º. Festival de Cinema de Gramado deste ano; foi bem recebido no Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, na seleção Carte Blanche, em 2014; exibido com sucesso na World Competition, em Sundunce, no início de 2015, em que Regina Casé e Camila Márdila dividiram o prêmio especial do júri de melhor atriz; também neste ano se apresentou no Festival de Berlim, sendo eleito o melhor filme na Mostra Panorama e conquistado o prêmio Cicae Art Cinema pela International Confederation of Art House, pelo júri independente daquele evento.

Ao retratar os contrastes sociais com contundência, especialmente a hipocrisia, o desconforto e o preconceito latentes que pairam e se materializam numa relação entre ricos e pobres, busca subsídios do passado herdado de uma fase de ouro das elites brasileiras nos seus aspectos exteriores, bem focado nas cenas de subordinação da empregada em relação aos patrões todo poderosos ostentado pelo núcleo familiar de um cotidiano frio de um profundo abismo nas singelas situações do dia a dia, como a frustração da reprovação no vestibular e o prêmio para ir estudar inglês na Austrália; ou o acidente da mãe com a falta de atenção do filho; ou ainda do marido solitário em seu atelier silencioso em busca de uma aventura amorosa. Há sinais evidentes e próximos pela similitude do tema com Casa Grande (2014), dirigido pelo estreante carioca Fellipe Barbosa, um drama brasileiro retratado sem demagogia pelos paradoxos da visão social de uma sociedade representada por uma classe média alta que tenta manter valores superados.

A história é composta por personagens bem estruturados e identificados claramente nas suas fragilidades, falta de afeto, desajustes, mesquinharias e de uma submissão oriunda da época de um colonialismo de outrora. A protagonista é Val (R. Casé- de interpretação soberba) que se mudou há treze anos do interior de Pernambuco para trabalhar numa mansão do aristocrata bairro do Morumbi, em São Paulo, e morar num quartinho acanhado nos fundos, pouco arejado, com uma televisão e um barulhento ventilador, na residência dos empregadores. Seu objetivo é dar melhores condições de vida para a espevitada filha Jéssica (Camila Márdila- perfeita no papel), deixada para trás ainda menina sob os cuidados do pai, ficando cicatrizes abertas de uma relação interrompida abruptamente, para ser babá do fragilizado Fabinho (Michel Joelsas), um garoto que gosta de dormir com o cafuné da doméstica, uma espécie de segunda mãe. Nordestino sofre na cidade grande é o recado direto, sem entrelinhas.

A trama faz um retrato fiel da alta burguesia paulista abastada que leva uma vida confortável em relação à maioria dos compatriotas. Os patrões vivem da herança familiar de Zé Carlos (Lourenço Mutarelli), embora Bárbara (Karine Telles) faça um trabalho mais de aparências no mundo da tendência da moda, não abre mão em apresentar a serviçal devidamente uniformizada para o público, entendendo ser um comportamento requintado de puro estilo, apesar do ridículo e da breguice exposta, contrariando seus princípios de mulher fina. A grande mudança na rotina acontece com o pedido de Jéssica, por telefone, para ir morar com a mãe e prestar vestibular na disputada Faculdade de Arquitetura da USP, a mesma prova que irá fazer Fabinho. É recebida, aparentemente, com boas vindas pelos donos da casa, só que quando deixa de seguir o protocolo dos escravos do passado, ao circular de maneira espaçosa como se fosse da família, tudo se complica. É vista como um furacão em erupção no espaço sagrado da suprema hipocrisia dos “bons chefes”. A quebra de paradigmas da jovem, proposta por Muylaert, é um marco da estruturas que se abalam, decorrente da irresignação dos tabus humilhantes ainda mantidos, principalmente a analogia explícita sobre o rato humano que toma banho com a casta de sangue azul na piscina.

O realismo está presente nos gestos e atitudes pelas imagens e diálogos reveladores. O drama narrado em ritmo cômico suaviza o impacto do distanciamento existente dos personagens envolvidos pelas diferenças, mas reflete a preocupação desta obra autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre a mansão e vai até o verdadeiro centro da família do rapazinho que busca afeto no quartinho minúsculo de Val. Lá, vai encontrar carinho, estímulo e amor maternal, contrapondo com sua condição elitizada e solitária, encontrado no badalado O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, um filme silencioso que capta os barulhos externos, além dos símbolos de uma brutal realidade, ou do seu genérico argentino Bem Perto de Buenos Aires (2014), de Benjamín Naishtat, que aborda as classes diferentes em lados opostos da cerca da pobreza. Ou seja: de um lado a doméstica e seu sobrinho, do outro, a patroa arquiteta e a namorada do rapaz que trabalha na residência dos amigos da ricaça.

Que Horas Ela Volta? não é apenas uma comedia dramática preocupada com as anomalias existentes nas as pirâmides salariais de um contexto severo e implacável para todos, mas incisivo na hipocrisia das relações empregatícias quando há diferenças abissais para aparar as arestas, mas a ruptura do elo do passado em busca do trabalho para melhorar a situação deprimente para sobreviver, através de uma narrativa de inspirada criatividade, pelo olhar do menos favorecido, sem cair na obviedade. Cada posição dos personagens torna-se autônoma no desenrolar do enredo, ao direcionar a abordagem das relações afetivas de empregada e filha com os integrantes da família patronal, mas sem perder a dignidade e a dor repassada para a plateia. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este notável retrato intimista neste filme de cores bem brasileiras, que irá reservar no desfecho outra revelação entre mãe e filha para uma redentora esperança.

Um comentário:

silvio disse...

Valeu Roni