quinta-feira, 29 de junho de 2017

A Garota Ocidental- Entre o Coração e a Tradição


Conflitos Civilizatórios

Escrito e dirigido pelo pouco conhecido cineasta belga Stephan Streker, que se baseou em fatos reais dos conflitos de civilizações que pululam entre o Ocidente e o Oriente, realizou com muita sensibilidade este instigante A Garota Ocidental- Entre o Coração e a Tradição, numa abordagem imparcial de um rígido núcleo de uma família muçulmana que entra em processo de desmoronamento justamente pela desagregação das tradições arraigadas. O diretor deixa fluir seu olhar para as intercorrências oriundas do microcosmo familiar dos problemas inerentes aos laços afetivos sobre as divergências dentro do universo de imigrantes paquistaneses, tanto pelos usos e costumes, como pela tradição e a religião. É mantida uma coerência bem demonstrada com méritos inegáveis pelos fatores apresentados e que são desenvolvidos durante a história.

A trama tem como protagonista a jovem paquistanesa Zahira (Lina El Arabi- de desempenho impecável da estreante atriz francesa), uma estudante de 18 anos que engravida do namorado também oriundo de seu país de origem, que rejeita a paternidade e vira as costas para a garota. Tanto o pai como a mãe e o próprio rapaz querem que ela aborte, o que vai contra os princípios éticos e morais da futura mãe, que vacila num primeiro momento e depois refuta a ideia terminantemente, após várias postergações do ato. Tem o apoio da melhor amiga do colégio, Aurore (Alice de Lencquesaing). O irmão Amir (Sébastien Houbani) lhe dá apoio inicialmente, mas com o passar do tempo também adere aos pais, bem como suas duas outras irmãs. O realizador demonstra uma boa influência da temática sempre bem esmiuçada entre pais e filhos pelos conterrâneos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, autores dos excelentes dramas O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008).

É colocada em xeque a situação conturbada e o clímax que toma contornos de alta voltagem, quando Zahira é obrigada pelos familiares a optar por um marido arranjado entre três candidatos paquistaneses que ela jamais os viu, numa circunstância semelhante da mãe e da irmã que tiveram destinos idênticos, sem o direito de escolher livremente por amor a seus parceiros. O dilema aumenta com o transcorrer do tempo, com fugas e retornos à residência. O pai é cardíaco e sofre com a intransigência conflituosa e delicada com a filha rebelde, deixando transparecer de modo explícito toda a vergonha arrebatadora perante a comunidade muçulmana. São evidenciadas no longa a vergonha, a desonra, os usos costumeiros de uma tradição religiosa abalados completamente diante das divergências opostas estampadas como paradoxos ao velho mundo ocidental.

Esta coprodução da Bélgica, França, Paquistão e Luxemburgo, através desta temática pertinente coloca o longa num plano maior, em que a religião se mistura com as tradições de um povo que reside num país europeu com outros conhecimentos, outras maneiras de encarar a vida, em que a liberdade de expressão está acima das manifestações étnicas estabelecidas e avessas a mudanças diante de suas complexidades afloradas pelas lendas e ritos da qual não se visualiza uma fresta para uma solução harmônica de lucidez em detrimento da paixão conservadora. A equidade está acentuada na obra que retrata com um olhar de dualidade, sem tomar partido ou descambar para a panfletagem, mantendo-se isenta, distanciando-se de soluções fáceis ou pieguismo barato, embora a tragédia esteja anunciada nas entrelinhas durante o desenrolar frenético da trama com o impactante desfecho.

Um filme bem dosado e perturbador num contexto equilibrado na defesa da liberdade que aponta as incongruências das tradições que afetam os valores afetivos interpessoais que transformam as pessoas. Um fiel retrato na filosofia do modo de vida daquele povo com suas regras e rituais próprios advindos de uma cultura milenar religiosa e o fanatismo exacerbado, esculpido em personagens de carne e osso que funcionam como elementos essenciais, despidos com sensibilidade e pouco atentos às mudanças comportamentais em sua aldeia de origem, através de reflexões com a contundência contumaz sobre o seio familiar, através deste olhar antropológico pela comunidade muçulmana extremamente devota, que defende o pragmatismo acomodador do casamento arranjado que culminará no inevitável choque de pensamentos.

A Garota Ocidental é um drama universal que foca com vigor e verossimilhança um enredo típico das diferenças evidentes entre o mundo moderno em iminente choque frontal com as raízes viscerais retrógradas oriundas de uma transferência lendária de séculos. Uma reflexão para uma abordagem complexa de uma realização acima da média, que vai a fundo na questão do choque cultural de civilizações e dá contornos notáveis para uma conjuntura de uma aparente turbulência no núcleo de uma aparente família feliz. Porém, apenas como alegoria de uma estrondosa tensão que existe pelo mundo em vários guetos de imigrantes espalhados por este planeta em meio aos milhões de comunidades de costumes locais que formam características bastante particulares. Uma fabulosa analogia entre o passado com o presente, o arcaico com o moderno e as gerações novas que anseiam na busca da liberdade incondicional e o amor na sua plenitude, indo de encontro com os costumes antiquados e vistos como ultrapassados, embora ainda muito resistentes pela força física, pela chantagem emocional, pela coação financeira, até o abandono de um remanescente irresignado.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Neve Negra


Mistérios Familiares

Neve Negra é o filme argentino mais visto em seu país de origem neste ano e tem o retorno do cineasta Martin Hodara. No elenco está o astro Ricardo Darín, que volta a trabalhar com o realizador após dez anos ter dividido a direção no policial noir O Sinal (2007), porém desta vez apenas como intérprete no papel de Salvador, um homem rude que vive solitário e isolado do mundo numa cabana nas gélidas montanhas da Patagônia. Depois de trinta anos, ele recebe a inesperada visita do irmão Marcos (Leonardo Sbaraglia- o mesmo de O Silêncio no Céu e Relatos Selvagens) que volta contrariado da Espanha acompanhado de sua mulher, Laura (a atriz espanhola Laia Costa), uma companheira grávida que faz a ligação da trama pelo olhar do espectador. Antes passam para visitar a irmã Sabrina (Dolores Fonzi) que está internada numa clínica psiquiátrica sob efeito de medicação para evitar surtos violentos desde a morte do irmão caçula numa caçada, estopim da crise de relacionamento entre os familiares.

O thriller foca no prólogo, quando o casal volta do exterior para enterrar as cinzas do tirano pai dos irmãos, na busca do lugar exato em que fora pedido para depositar o que sobrou. Mas o objetivo maior será vender as terras e uma serraria que ficou de herança para um grupo de investidores canadenses, algo que não está previsto para o nativo que mora ali e sobrevive da caça e não pretende se mudar daquele lugar. Com reviravoltas no roteiro do diretor em parceria com Leonel D’Agostino, deixa o espectador confuso e muitas vezes se vê conduzido para uma solução aparentemente simples, porém logo é revista e o envolvimento é superado por outra hipótese ainda mais inusitada que será solucionada somente no final. Há méritos em torno da expectativa criada no imbróglio e as mudanças que sugerem um tom investigativo de dados duvidosos como nos bons policiais, mas com um recheio nos moldes do clássico cinemão de sessões lotadas.

No desenrolar da trama, há o encontro frente a frente nada amistoso entre Marcos e Salvador. Os dois vivem um conflito velado no qual rememoram um segredo do passado misterioso que só eles conhecem. Guardam mágoas e ressentimentos que beiram à discórdia sem perspectiva de reatarem as conturbadas relações sentimentais. A câmera capta as marcas negras na neve e em repetidos flashbacks conta a história em doses homeopáticas para ir desenrolando lentamente o emaranhado dos enigmas que restaram, como se estivesse investigando um possível crime, embora exista uma forte tendência, há dissimulações que causam algumas dúvidas. A culpa escondida e uma tênue vingança se entrelaçam e caminham juntas para um equivocado e dolorido desenlace. O irmão mais velho vitimizado por uma acusação nebulosa mergulha numa imensa solidão e com um trauma que lhe atormenta e corrói seus pensamentos com um devastador sentimento de injustiça observa os fantasmas decorrentes de uma situação da qual nunca se livrou com consequências nefastas do acaso.

Neve Negra tem um bom suspense com razoável construção psicológica num contexto de emoção contida e acertada, sem se afastar do ponto certo de um equilíbrio mesurado. A trilha sonora é adequada e não chega a interferir no clímax exato do transcorrer do enredo, que se não chega a surpreender, tem como méritos o conjunto da produção, tanto pela bela fotografia que explora as belezas naturais, como pelo homogêneo elenco, em especial o desempenho de Leonardo Sbaraglia que está impecável, e deixa em plano secundário Ricardo Darín em uma atuação muita caricata e pouco inspirada neste longa realizado com algumas surpresas, sem exageros ou excessos. Hodara cumpre bem a expectativa de manter atenta a plateia, deixando aflorar no epílogo as circunstâncias reveladoras, em face da abordagem com domínio sobre o que pretende retratar. A câmera atua como cúmplice na realidade temporal e pela invasão da privacidade novamente como um fator atordoante que traz com boa eficácia uma densidade narrativa pelo intenso frio, pela forte nevasca e a tempestade acachapante que se aproxima como indicativos de uma nova tragicidade que acentua a tensão existente entre os irmãos.

Uma construção típica de um filme do gênero com as ferramentas adequadas do suspense pelo isolamento do personagem central da narrativa dentro de um bem arquitetado plano que envolve sua solidão pelos fantasmas misteriosos que assombram um presente sem perspectiva. Eis um filme policial que traz no bojo uma mescla do drama existencial. Está em jogo não só as lembranças que perseguem Salvador, mas o sentimento da reflexão sobre uma injustiça, além da nítida sensação da perda do poder, das raízes e da referência da terra que em parceria o acolheu por todo este tempo, pela complexidade de sua vida e o tempo que ainda lhe resta para desfrutar e amargar os prazeres e dissabores da vida. O abalo emocional destrói a razão que é jogada num plano secundário. Porém, o desfecho é marcado por uma fragilidade ingênua e até certo ponto óbvia e pouco convincente naquele ambiente hostil, mas não invalida a obra, apenas mascara em parte uma reflexão mais aprofundada.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Faces de Uma Mulher


Traumas da Infância

O drama familiar com pitadas de bom suspense tem como título original Orpheline (Órfã), do diretor e roteirista Arnaud des Pallières, reconhecido pelo instigante Michael Kohlhaas- Justiça e Honra (2013). Foi batizado no Brasil com a sugestiva denominação de Faces de Uma Mulher e se caracteriza pela intensidade de uma narrativa pela ótica da investigação psicológica, ao partir do fim do enredo para mesclar situações presentes, para retornar e compreender as razões do passado. Um realizador com um olhar profundo sobre as injustiças da sociedade em relação à mulher, seus traumas e sua condição de um ser humano completamente desassistido pela forma brutal pela qual a vida conduz o destino, através de um roteiro complexo e hábil com muita sensibilidade em que quatro personagens femininas são fundidas em apenas uma única sofrida protagonista.

A trama é bem estruturada de causas e efeitos como consequências para criar o entrelaçado roteiro de Des Pallières e Christelle Berthevas repleto de armadilhas para fisgar e prender o espectador, que tem como referência estética o longa Não Estou Lá (2007), de Todd Haynes. Kiki (Vega Cuzytek) é a garotinha traumatizada na infância que dá o mote causador da história, passa pela fase da adolescência e o despojamento agressivo (Solène Rigot), que será na fase adulta Karine (a ótima intérprete Adèle Haenel, de O Homem Que Elas Amavam Demais) e (a bela e sensual atriz Adèle Exarchopoulos, de Azul é a Cor Mais Quente) que leva um cotidiano monótono trabalhando como professora em uma escola primária, enquanto pensa em ter um filho com o apaixonado namorado, até a polícia prendê-la. Eis um elenco homogêneo que conta ainda com a personagem Tara (Gemma Arterton, em grande estilo).

O filme tem um desenrolar nada linear que tenta confundir a plateia, como se fossem personagens diferentes numa representação multifacetada. Mas aos poucos o enredo dá voltas até chegar à menina órfã e suas vidas múltiplas com outros nomes e sobrevivendo dos fantasmas do passado de violências e abusos pelas atitudes autodestrutivas diante da inexistência de um objetivo maior de vida. O nó vai desatando e clareia pelas imagens e diálogos o futuro da personagem central, que tem uma forte erotização de seus relacionamentos sem amarras e preconceitos, está bem condensado num estratégico apelo sexual sem estereótipos como um dos ingredientes bem condimentados. Há profundidade na difícil transição da conturbada infância para adolescência até esbarrar no mundo adulto e os sonhos perturbados, contrastando com a fuga para a Romênia ditatorial, deixando para trás uma França tida como berço da civilização cultural, mas que trata mal seus compatriotas marginalizados circunstancialmente.

O cineasta retrata com imparcialidade as fragilidades femininas e suas confusas idealizações e utopias indefinidas. Há muitas dificuldades de se reencontrar, numa posição beirando a ausência, como se vê na cena da infância da criança com sérios problemas emocionais e há apenas uma vaga indagação sobre o distanciamento da realidade e a culpa que a persegue, sendo abordados com equilíbrio, como decorrências do fato marcante diante do inesperado choque frontal com o surgimento de outras pessoas envolvidas no contexto como um entrave penoso pela hostilidade. Tudo contribui para a crise no processo perturbador do esvaziamento amoroso. A essência e a existência estão presentes, ainda que num momento de falsa harmonia entre o casal que busca a felicidade. A protagonista tenta superar as adversidades pela força de vontade e uma capacidade emocional que se esvai e se desequilibra, tendo em vista que por dentro está estraçalhada pelas lembranças e os transtornos diante da iminência do rompimento.

Faces de Uma Mulher tem uma influência concreta e inarredável da temática profunda do microcosmo familiar abordado pelo irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, como nos excelentes dramas O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008). Os efeitos traumáticos pretéritos são conduzidos com grande desenvoltura pelo realizador que direciona para um desfecho inusitado, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom de justificativa dentro de um mosaico deste painel pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa a mente de uma mãe despreparada, embora todo o carinho maternal que nutre pelo recém-nascido. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus traumas existenciais que mergulha no sofrimento, na tristeza, na solidão, e se escancara como resultado final neste espetacular drama francês que desemboca em rupturas com a redenção dolorida.