Mistérios Familiares
Neve Negra é o
filme argentino mais visto em seu país de origem neste ano e tem o retorno do cineasta
Martin Hodara. No elenco está o astro Ricardo Darín, que volta a trabalhar com o
realizador após dez anos ter dividido a direção no policial noir O
Sinal (2007), porém desta vez apenas como intérprete no papel de Salvador, um homem rude que vive solitário e isolado do mundo numa cabana nas gélidas montanhas
da Patagônia. Depois de trinta anos, ele recebe a inesperada visita do irmão
Marcos (Leonardo Sbaraglia- o mesmo de O
Silêncio no Céu e Relatos Selvagens)
que volta contrariado da Espanha acompanhado de sua mulher, Laura (a atriz
espanhola Laia Costa), uma companheira grávida que faz a ligação da trama pelo
olhar do espectador. Antes passam para visitar a irmã Sabrina (Dolores Fonzi)
que está internada numa clínica psiquiátrica sob efeito de medicação para
evitar surtos violentos desde a morte do irmão caçula numa caçada, estopim da
crise de relacionamento entre os familiares.
O thriller foca no prólogo, quando o casal volta do exterior para
enterrar as cinzas do tirano pai dos irmãos, na busca do lugar exato em que
fora pedido para depositar o que sobrou. Mas o objetivo maior será vender as
terras e uma serraria que ficou de herança para um grupo de investidores
canadenses, algo que não está previsto para o nativo que mora ali e sobrevive
da caça e não pretende se mudar daquele lugar. Com reviravoltas no roteiro do
diretor em parceria com Leonel D’Agostino, deixa o espectador confuso e muitas
vezes se vê conduzido para uma solução aparentemente simples, porém logo é
revista e o envolvimento é superado por outra hipótese ainda mais inusitada que
será solucionada somente no final. Há méritos em torno da expectativa criada no
imbróglio e as mudanças que sugerem um tom investigativo de dados duvidosos
como nos bons policiais, mas com um recheio nos moldes do clássico cinemão de
sessões lotadas.
No desenrolar da trama, há o encontro frente a frente nada
amistoso entre Marcos e Salvador. Os dois vivem um conflito velado no qual
rememoram um segredo do passado misterioso que só eles conhecem. Guardam mágoas
e ressentimentos que beiram à discórdia sem perspectiva de reatarem as
conturbadas relações sentimentais. A câmera capta as marcas negras na neve e em
repetidos flashbacks conta a história
em doses homeopáticas para ir desenrolando lentamente o emaranhado dos enigmas
que restaram, como se estivesse investigando um possível crime, embora exista
uma forte tendência, há dissimulações que causam algumas dúvidas. A culpa
escondida e uma tênue vingança se entrelaçam e caminham juntas para um
equivocado e dolorido desenlace. O irmão mais velho vitimizado por uma acusação
nebulosa mergulha numa imensa solidão e com um trauma que lhe atormenta e
corrói seus pensamentos com um devastador sentimento de injustiça observa os
fantasmas decorrentes de uma situação da qual nunca se livrou com consequências
nefastas do acaso.
Neve Negra tem um bom
suspense com razoável construção psicológica num contexto de emoção contida e
acertada, sem se afastar do ponto certo de um equilíbrio mesurado. A trilha
sonora é adequada e não chega a interferir no clímax exato do transcorrer do
enredo, que se não chega a surpreender, tem como méritos o conjunto da produção,
tanto pela bela fotografia que explora as belezas naturais, como pelo homogêneo
elenco, em especial o desempenho de Leonardo Sbaraglia que está impecável, e
deixa em plano secundário Ricardo Darín em uma atuação muita caricata e pouco
inspirada neste longa realizado com algumas surpresas, sem exageros ou excessos.
Hodara cumpre bem a expectativa de manter atenta a plateia, deixando aflorar no
epílogo as circunstâncias reveladoras, em face da abordagem com domínio sobre o
que pretende retratar. A câmera atua como cúmplice na realidade temporal e pela
invasão da privacidade novamente como um fator atordoante que traz com boa
eficácia uma densidade narrativa pelo intenso frio, pela forte nevasca e a
tempestade acachapante que se aproxima como indicativos de uma nova tragicidade
que acentua a tensão existente entre os irmãos.
Uma construção típica de um filme do gênero com as
ferramentas adequadas do suspense pelo isolamento do personagem central da
narrativa dentro de um bem arquitetado plano que envolve sua solidão pelos
fantasmas misteriosos que assombram um presente sem perspectiva. Eis um filme
policial que traz no bojo uma mescla do drama existencial. Está em jogo não só
as lembranças que perseguem Salvador, mas o sentimento da reflexão sobre uma
injustiça, além da nítida sensação da perda do poder, das raízes e da
referência da terra que em parceria o acolheu por todo este tempo, pela
complexidade de sua vida e o tempo que ainda lhe resta para desfrutar e amargar
os prazeres e dissabores da vida. O abalo emocional destrói a razão que é
jogada num plano secundário. Porém, o desfecho é marcado por uma fragilidade
ingênua e até certo ponto óbvia e pouco convincente naquele ambiente hostil,
mas não invalida a obra, apenas mascara em parte uma reflexão mais aprofundada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário