quarta-feira, 14 de junho de 2017

Neve Negra


Mistérios Familiares

Neve Negra é o filme argentino mais visto em seu país de origem neste ano e tem o retorno do cineasta Martin Hodara. No elenco está o astro Ricardo Darín, que volta a trabalhar com o realizador após dez anos ter dividido a direção no policial noir O Sinal (2007), porém desta vez apenas como intérprete no papel de Salvador, um homem rude que vive solitário e isolado do mundo numa cabana nas gélidas montanhas da Patagônia. Depois de trinta anos, ele recebe a inesperada visita do irmão Marcos (Leonardo Sbaraglia- o mesmo de O Silêncio no Céu e Relatos Selvagens) que volta contrariado da Espanha acompanhado de sua mulher, Laura (a atriz espanhola Laia Costa), uma companheira grávida que faz a ligação da trama pelo olhar do espectador. Antes passam para visitar a irmã Sabrina (Dolores Fonzi) que está internada numa clínica psiquiátrica sob efeito de medicação para evitar surtos violentos desde a morte do irmão caçula numa caçada, estopim da crise de relacionamento entre os familiares.

O thriller foca no prólogo, quando o casal volta do exterior para enterrar as cinzas do tirano pai dos irmãos, na busca do lugar exato em que fora pedido para depositar o que sobrou. Mas o objetivo maior será vender as terras e uma serraria que ficou de herança para um grupo de investidores canadenses, algo que não está previsto para o nativo que mora ali e sobrevive da caça e não pretende se mudar daquele lugar. Com reviravoltas no roteiro do diretor em parceria com Leonel D’Agostino, deixa o espectador confuso e muitas vezes se vê conduzido para uma solução aparentemente simples, porém logo é revista e o envolvimento é superado por outra hipótese ainda mais inusitada que será solucionada somente no final. Há méritos em torno da expectativa criada no imbróglio e as mudanças que sugerem um tom investigativo de dados duvidosos como nos bons policiais, mas com um recheio nos moldes do clássico cinemão de sessões lotadas.

No desenrolar da trama, há o encontro frente a frente nada amistoso entre Marcos e Salvador. Os dois vivem um conflito velado no qual rememoram um segredo do passado misterioso que só eles conhecem. Guardam mágoas e ressentimentos que beiram à discórdia sem perspectiva de reatarem as conturbadas relações sentimentais. A câmera capta as marcas negras na neve e em repetidos flashbacks conta a história em doses homeopáticas para ir desenrolando lentamente o emaranhado dos enigmas que restaram, como se estivesse investigando um possível crime, embora exista uma forte tendência, há dissimulações que causam algumas dúvidas. A culpa escondida e uma tênue vingança se entrelaçam e caminham juntas para um equivocado e dolorido desenlace. O irmão mais velho vitimizado por uma acusação nebulosa mergulha numa imensa solidão e com um trauma que lhe atormenta e corrói seus pensamentos com um devastador sentimento de injustiça observa os fantasmas decorrentes de uma situação da qual nunca se livrou com consequências nefastas do acaso.

Neve Negra tem um bom suspense com razoável construção psicológica num contexto de emoção contida e acertada, sem se afastar do ponto certo de um equilíbrio mesurado. A trilha sonora é adequada e não chega a interferir no clímax exato do transcorrer do enredo, que se não chega a surpreender, tem como méritos o conjunto da produção, tanto pela bela fotografia que explora as belezas naturais, como pelo homogêneo elenco, em especial o desempenho de Leonardo Sbaraglia que está impecável, e deixa em plano secundário Ricardo Darín em uma atuação muita caricata e pouco inspirada neste longa realizado com algumas surpresas, sem exageros ou excessos. Hodara cumpre bem a expectativa de manter atenta a plateia, deixando aflorar no epílogo as circunstâncias reveladoras, em face da abordagem com domínio sobre o que pretende retratar. A câmera atua como cúmplice na realidade temporal e pela invasão da privacidade novamente como um fator atordoante que traz com boa eficácia uma densidade narrativa pelo intenso frio, pela forte nevasca e a tempestade acachapante que se aproxima como indicativos de uma nova tragicidade que acentua a tensão existente entre os irmãos.

Uma construção típica de um filme do gênero com as ferramentas adequadas do suspense pelo isolamento do personagem central da narrativa dentro de um bem arquitetado plano que envolve sua solidão pelos fantasmas misteriosos que assombram um presente sem perspectiva. Eis um filme policial que traz no bojo uma mescla do drama existencial. Está em jogo não só as lembranças que perseguem Salvador, mas o sentimento da reflexão sobre uma injustiça, além da nítida sensação da perda do poder, das raízes e da referência da terra que em parceria o acolheu por todo este tempo, pela complexidade de sua vida e o tempo que ainda lhe resta para desfrutar e amargar os prazeres e dissabores da vida. O abalo emocional destrói a razão que é jogada num plano secundário. Porém, o desfecho é marcado por uma fragilidade ingênua e até certo ponto óbvia e pouco convincente naquele ambiente hostil, mas não invalida a obra, apenas mascara em parte uma reflexão mais aprofundada.

Nenhum comentário: