Relatos Sinceros
Morto tragicamente pelo filho ano passado, o veterano
documentarista Eduardo Coutinho está presente novamente com seu singular painel
de relatos contados pela boca de personagens do povo em Últimas Conversas, 14º longa-metragem de uma carreira rica, com a
qual se despede. Desta vez por alunos de Ensino Médio das escolas públicas do
Rio de Janeiro, pessoas humildes que tiveram muitas dificuldades no aprendizado
e ainda em dúvidas para o futuro. Tentam superar obstáculos, sendo que destes
há de tudo um pouco, das grandes paixões até ao sonhador inveterado. Busca
extrair e descobrir dos jovens a essência dos seus sonhos, pensamentos e como
vivem no cotidiano.
O mérito maior do cineasta é saber selecionar da série de
depoimentos aqueles mais consistentes e emocionantes sob o ponto de vista
humano e com força de um pensamento positivo e até esperançoso. Sem ser ufanista,
longe disto, pois sabe controlar e dar o tom na entrevista. É um emérito
perguntador, deixando os entrevistados à vontade para falarem algo interessante
ou até mesmo besteiras. É tudo verdade, como o chamado festival que empresta o
nome. O material bruto de 32 horas de gravação foi editado pela parceira de
outras obras, a montadora Jordana Berg, tendo na versão final a assinatura do
inseparável amigo João Moreira Salles, documentarista e produtor que dá um
toque requintado pelo seu estilo próprio, assim como fez em Notícias de Uma Guerra Particular (1999)
e Santiago (2006). Foram parceiros
nos documentários Peões e Entreatos, ambos de 2004, sobre o
passado no ABC paulista e os bastidores da campanha política de 2002 do
presidente Lula.
O filme começa com o diretor falando sobre a morte, a falta
de vontade de viver, se deve continuar filmando, porém cumprirá o contrato,
pois recebeu para realizar esta derradeira produção. Desta vez o espectador não
só ouve sua voz como o vê com o cigarro entre os dedos, revelando aflição com o
filme ora em formação: "é melhor não fazer do que ter um filme de 70
minutos em que não se acredite", chega a afirmar que "sempre cumpri
meus contratos, mesmo que tenha assinado para fazer um filme e entregue
outro". Mostra-se desanimado no intervalo da quarta entrevista, quase
premonitória, fala da tristeza dos adolescentes reprimidos pelos pais e do
arrependimento de não ter realizado um filme só com a alegria das crianças, simbolizado
com a graciosa garotinha de 6 anos, filha de médicos, que ele chama de lady.
Ela dá show ao falar com sinceridade, espontaneidade e clarividência.
O cineasta é hábil ao retirar o substrato de cada
adolescente marcado pela dor, tristeza, dúvida e muita mágoa, fazendo-os
confessar as verdades, como a primeira moça ateia que escreve poemas; a garota
abusada sexualmente pelo padrasto, assim como a irmã que também sofre o mesmo,
ambas têm na mãe posição contrária às filhas; a moça almeja ser geógrafa e
gostaria de ver um maremoto no Brasil, afirma que seria bem legal, fala em se casar
com um homem bonito; tem ainda a jovem que se acha esperta e é contra as
pessoas ingênuas, diz com alma e ardor que o mundo é dos espertalhões e que não
conhece ninguém que seja bobo que se dera bem; a garota que chama a companheira
da mãe de “papi” e que seguirá sua carreira de enfermagem; a jovem que não quis
festa de 15 anos, temendo a ausência do pai separado e ausente; o rapaz ateu
que quer ser médico; o outro estudante que fala do silêncio e o medo de não ter
som por perto, questiona a vida e namora a morte, faz uma profunda reflexão
sobre a existência e o seu sentido, num dos melhores depoimentos, pela pujança
e o desnudamento para a câmera.
Um realizador nato que será sempre lembrado por Cabra Marcado para Morrer (1984), em
que foram iniciadas as filmagens na década de 60, com o assassinato de um líder
camponês, interrompidas pelo golpe militar de 1964 e concluídas dezessete anos
depois. Este seu último documentário tem muito de sua obra-prima Edifício Master (2002), no qual uma
equipe de cinema filmou por sete dias o cotidiano dos moradores de um prédio em
Copacabana, com 276 apartamentos conjugados, com cerca de 500 moradores, foram entrevistados
37, com um resultado fabuloso de histórias íntimas e reveladoras; bem como do
memorável Jogo de Cena (2007), um
achado que mescla realidade e ficção; sem esquecer de As Canções (2011) que aborda com fidelidade as angústias e
tristezas mescladas com os amores fundidos em felicidades e recordações amargas
ou gostosas de pessoas do povo.
Um cinema com vários questionamentos e indagações como o bullying sofrido pela juventude, além da
abordagem das cotas raciais colocadas em xeque, a reflexão da relação da filha
com um casal homossexual, a ausência paterna, o abuso sexual, a dor da adolescência
pobre, sombria e incerta contrapondo com a espontaneidade e alegria da fase
infantil retratada pela criança rica e branca no cenário de uma sala simplória com
paredes azul e branca, porta azul e uma cadeira, às vezes preenchida e, em
outras, vazia e silenciosa, como a porta aberta para um mundo de hexitações,
indagações e difícil para a maioria. Embora melancólico nas situações duvidosas
para o futuro, há muita emoção contida, como se fosse uma sessão de terapia,
onde o psicanalista é o diretor com seu jeito peculiar e único. Últimas Conversas encerra uma carreira
de um ciclo inesquecível de um legado para ser lembrado, sorvido e memorizado
pelos problemas deste universo de vidas conflitadas e amargas, porém sem perder
a luz da esperança. Dizer que Eduardo Coutinho é um gênio, talvez seja pouco,
ele é um dos maiores documentaristas do mundo.