Elite Decadente
Outro longa-metragem brasileiro que faz furor e repercute de
forma admirável é Casa Grande, do
estreante carioca Fellipe Barbosa, que também assina o roteiro em parceria com
Karen Sztajnberg, título colocado claramente para homenagear Gilberto Freyre,
foi baseado em fatos autobiográficos do cineasta, retrata os contrastes sociais
de maneira contundente. Ao se debruçar no presente, busca subsídios do passado herdado
de uma fase de ouro das elites brasileiras em decomposição pela superada classe
nos seus aspectos exteriores, bem focado na cena de abertura do casarão
ostentado pelo núcleo familiar em avançado estágio de derrocada.
A história é composta por personagens bem estruturados e são
identificados claramente suas fragilidades, desajustes e rompantes mesquinhos. O
protagonista é o jovem Jean (Thales Cavalcanti- de boa atuação), que faz de
tudo para se desvencilhar dos pais superprotetores Sônia (Suzana Pires-
impecável no papel da mãe) e Hugo (Marcello Novaes- uma surpresa agradável). O
rapaz tem sérios problemas de ansiedade e está permanentemente em conflito com
a figura paterna, um ricaço que começa a entrar em crise financeira pelos
negócios da bolsa de valores que despenca. A trama faz um retrato fiel da alta
burguesia carioca através daquele grupo familiar abastado que leva uma vida
confortável em relação à maioria dos compatriotas.
O realismo está presente nos gestos e principalmente na crítica
pelas imagens corrosivas, em especial na entrevista do pai buscando uma nova
atividade, quando revela sua verdadeira condição de homem em estado de
decrepitude. A falência que emerge de uma situação, que aos poucos corrói e
devasta o patamar superior, mas que ninguém sabe de seus problemas financeiros.
Para se manter, o casal corta despesas, como a demissão do motorista
e de uma das empregadas. O filho, mais preocupado com o namoro e o vestibular, começa
a enfrentar pela primeira vez a dura e triste realidade do esfacelamento socioeconômico
pela perda do poder aquisitivo familiar, cada vez mais em ruínas.
Um drama que reflete a preocupação desta obra autoral com a
estratificação social, através da captação da câmera que percorre a mansão em
decomposição e vai até o verdadeiro núcleo familiar do jovem no fabuloso
epílogo na favela, que reserva para a cena final a revelação inusitada. Lá, vai
encontrar carinho, amor e a libertação sexual no amanhecer daquele lugar
acolhedor, mas em contrapartida por aqueles ex-empregados em seus cotidianos
quase que inocentes, representantes típicos de pessoas menos favorecidas, contrapondo
com sua condição elitizada e solitária. Assim como no badalado O Som ao Redor (2012), de Kleber
Mendonça Filho, fundamentalmente um filme silencioso que capta os barulhos
externos, além dos símbolos de uma brutal realidade.
O cineasta retrata com sensibilidade e sem demagogia os
contrastes pela visão social desta sociedade representada por uma classe média
alta que tenta manter valores superados dos fatos reais bem brasileiros, numa
alusão sutil da queda de Eike Batista, demonstrada na matéria do jornal lido
pelo patriarca, diante do contraste escancarado na geografia carioca pelos
condomínios luxuosos e mansões dividindo a paisagem com as favelas sem
infraestrutura nos morros. É instigante a cena de palavras ríspidas, ironias e
arrogância explícita, no encontro dos familiares de Jean com sua namoradinha
miscigenada Luiza (Bruna Amaya), um choque de ideias sobre cotas raciais na
faculdade e o bolsa-família e seus efeitos colaterais, na qual a intolerância prevalece
por posições arcaicas. Ele estuda num dos melhores colégios particulares do Rio;
ela, numa escola pública. Eis um filme preocupado com as anomalias e distanciamento
entre as pirâmides salariais de um contexto severo e implacável para todos,
como na busca de uma alternativa para despedir por justa causa a empregada de
fantasias eróticas, como se fosse um objeto descartável, embora a motivação
fosse bem outra.
O mordaz Casa Grande
teve várias premiações merecidas, entre as quais a de Melhor Filme pelo Júri
Popular do Festival do Rio, Melhor Filme no Prêmio da Crítica pela Abraccine na
Mostra Internacional de São Paulo, reconhecimento do júri, melhores ator e
atriz coadjuvantes e melhor roteiro no Festival de Paulínia no ano passado. Não
por acaso, pois Barbosa demonstra domínio de cenas nos planos e contraplanos,
quase impecáveis, com uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem
cair na obviedade. Cada situação dos personagens torna-se autônoma no
desenrolar do enredo, ao direcionar a abordagem das relações afetivas de
empregados com os familiares, além da falência de uma elite hipócrita, mas sem
perder a poesia e a dor repassada para a plateia. São elementos bem caracterizadores
e envolventes que marcam com rara qualidade este belo e perturbador retrato
intimista neste filme de cores bem brasileiras, através desta realização maior
no cenário nacional.
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