quinta-feira, 21 de maio de 2015

Últimas Conversas

















Relatos Sinceros

Morto tragicamente pelo filho ano passado, o veterano documentarista Eduardo Coutinho está presente novamente com seu singular painel de relatos contados pela boca de personagens do povo em Últimas Conversas, 14º longa-metragem de uma carreira rica, com a qual se despede. Desta vez por alunos de Ensino Médio das escolas públicas do Rio de Janeiro, pessoas humildes que tiveram muitas dificuldades no aprendizado e ainda em dúvidas para o futuro. Tentam superar obstáculos, sendo que destes há de tudo um pouco, das grandes paixões até ao sonhador inveterado. Busca extrair e descobrir dos jovens a essência dos seus sonhos, pensamentos e como vivem no cotidiano.

O mérito maior do cineasta é saber selecionar da série de depoimentos aqueles mais consistentes e emocionantes sob o ponto de vista humano e com força de um pensamento positivo e até esperançoso. Sem ser ufanista, longe disto, pois sabe controlar e dar o tom na entrevista. É um emérito perguntador, deixando os entrevistados à vontade para falarem algo interessante ou até mesmo besteiras. É tudo verdade, como o chamado festival que empresta o nome. O material bruto de 32 horas de gravação foi editado pela parceira de outras obras, a montadora Jordana Berg, tendo na versão final a assinatura do inseparável amigo João Moreira Salles, documentarista e produtor que dá um toque requintado pelo seu estilo próprio, assim como fez em Notícias de Uma Guerra Particular (1999) e Santiago (2006). Foram parceiros nos documentários Peões e Entreatos, ambos de 2004, sobre o passado no ABC paulista e os bastidores da campanha política de 2002 do presidente Lula.

O filme começa com o diretor falando sobre a morte, a falta de vontade de viver, se deve continuar filmando, porém cumprirá o contrato, pois recebeu para realizar esta derradeira produção. Desta vez o espectador não só ouve sua voz como o vê com o cigarro entre os dedos, revelando aflição com o filme ora em formação: "é melhor não fazer do que ter um filme de 70 minutos em que não se acredite", chega a afirmar que "sempre cumpri meus contratos, mesmo que tenha assinado para fazer um filme e entregue outro". Mostra-se desanimado no intervalo da quarta entrevista, quase premonitória, fala da tristeza dos adolescentes reprimidos pelos pais e do arrependimento de não ter realizado um filme só com a alegria das crianças, simbolizado com a graciosa garotinha de 6 anos, filha de médicos, que ele chama de lady. Ela dá show ao falar com sinceridade, espontaneidade e clarividência.

O cineasta é hábil ao retirar o substrato de cada adolescente marcado pela dor, tristeza, dúvida e muita mágoa, fazendo-os confessar as verdades, como a primeira moça ateia que escreve poemas; a garota abusada sexualmente pelo padrasto, assim como a irmã que também sofre o mesmo, ambas têm na mãe posição contrária às filhas; a moça almeja ser geógrafa e gostaria de ver um maremoto no Brasil, afirma que seria bem legal, fala em se casar com um homem bonito; tem ainda a jovem que se acha esperta e é contra as pessoas ingênuas, diz com alma e ardor que o mundo é dos espertalhões e que não conhece ninguém que seja bobo que se dera bem; a garota que chama a companheira da mãe de “papi” e que seguirá sua carreira de enfermagem; a jovem que não quis festa de 15 anos, temendo a ausência do pai separado e ausente; o rapaz ateu que quer ser médico; o outro estudante que fala do silêncio e o medo de não ter som por perto, questiona a vida e namora a morte, faz uma profunda reflexão sobre a existência e o seu sentido, num dos melhores depoimentos, pela pujança e o desnudamento para a câmera.

Um realizador nato que será sempre lembrado por Cabra Marcado para Morrer (1984), em que foram iniciadas as filmagens na década de 60, com o assassinato de um líder camponês, interrompidas pelo golpe militar de 1964 e concluídas dezessete anos depois. Este seu último documentário tem muito de sua obra-prima Edifício Master (2002), no qual uma equipe de cinema filmou por sete dias o cotidiano dos moradores de um prédio em Copacabana, com 276 apartamentos conjugados, com cerca de 500 moradores, foram entrevistados 37, com um resultado fabuloso de histórias íntimas e reveladoras; bem como do memorável Jogo de Cena (2007), um achado que mescla realidade e ficção; sem esquecer de As Canções (2011) que aborda com fidelidade as angústias e tristezas mescladas com os amores fundidos em felicidades e recordações amargas ou gostosas de pessoas do povo.

Um cinema com vários questionamentos e indagações como o bullying sofrido pela juventude, além da abordagem das cotas raciais colocadas em xeque, a reflexão da relação da filha com um casal homossexual, a ausência paterna, o abuso sexual, a dor da adolescência pobre, sombria e incerta contrapondo com a espontaneidade e alegria da fase infantil retratada pela criança rica e branca no cenário de uma sala simplória com paredes azul e branca, porta azul e uma cadeira, às vezes preenchida e, em outras, vazia e silenciosa, como a porta aberta para um mundo de hexitações, indagações e difícil para a maioria. Embora melancólico nas situações duvidosas para o futuro, há muita emoção contida, como se fosse uma sessão de terapia, onde o psicanalista é o diretor com seu jeito peculiar e único. Últimas Conversas encerra uma carreira de um ciclo inesquecível de um legado para ser lembrado, sorvido e memorizado pelos problemas deste universo de vidas conflitadas e amargas, porém sem perder a luz da esperança. Dizer que Eduardo Coutinho é um gênio, talvez seja pouco, ele é um dos maiores documentaristas do mundo.

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