sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Folhas de Outono

 

Os Solitários

O finlandês Aki Kaurismäki é um realizador voltado para as questões sociais, tanto em seu país como as diversas mazelas na Europa. No excelente O Porto (2011), ganhador do Prêmio da Crítica no Festival de Cannes, possivelmente seu melhor longa-metragem, ambienta sua trama na cidade portuária Le Havre, na gris e sorumbática região da Normandia, na França. A solidariedade e a amizade aos imigrantes que desembarcam clandestinamente, vindos como animais em contêineres e jogados em solo perigoso, são abordadas magnificamente neste manifesto crítico de um libelo contra a intransigência dos povos ditos de primeiro mundo. Ainda que tenha na mentira do seu personagem principal a forma ilícita para salvar a pele de um garoto, protegendo-o da sanha irascível de uma política de imigração abominável. Também é dele O Homem Sem Passado (2001), no qual um homem após chegar a Helsinque de trem é surrado tão brutalmente que perde a memória. Vive como pode, no submundo da cidade, onde encontrará pessoas como ele, deserdadas da sociedade, que serão suas companheiras e o ajudarão a reajustar sua existência. Em O Outro Lado da Esperança (2017), narra um fugitivo da guerra na Síria que busca asilo. Depois de percorrer vários países, solicita permissão de estadia na Finlândia. Enquanto espera pela resposta, busca pela irmã, desaparecida, obtém ajuda de um pequeno comerciante que dá emprego em seu restaurante.

O veterano cineasta tem em sua filmografia a instigante A Trilogia do Proletariado, mostra a classe trabalhadora protagonizada por mulheres e homens marginalizados pela falta ou condições precárias de emprego. Um ensaio que tem como objetivo verificar como a desolação humana traz em suas narrativas retratos atuais de uma sociedade em decadência, com o sistema capitalista vigente. Sombras no Paraíso (1986) aborda uma caixa de supermercado e um motorista do caminhão de lixo, que tentam nas poucas horas de descanso divertimento em bares escutando música; Ariel (1988) conduz para a história de um homem, que nos minutos iniciais do filme perde seu pai por suicídio. Decide sair da pequena cidade em que vivia e ir para a capital ganhar a vida. Nesse processo passa por momentos complexos em que a brutalidade e o individualismo surgem como os novos pilares de sua jornada; A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos (1990) retrata uma supervisora de embalagens numa linha de produção em uma fábrica, mora com sua mãe e seu padrasto. Vive uma relação bastante caótica e tão exploradora quanto de seu emprego. Agora segue com a saga proletária com Folhas de Outono, coproduzido com a Alemanha, numa quadrilogia que reabre a temática do diretor, que também assina o roteiro, com suas marcas autorais interessantes.

Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes do ano passado, indicado para representar seu país na 96ª. edição do Oscar, e apontado pela Revista Time como o melhor filme de 2023, esta comédia romântica com tons de dramaticidade acompanha a história de Ansa (Alma Pöysti), uma estoquista de supermercado, e Holappa (Jussi Vatanen), um operário alcoólatra da construção civil que manuseia o compressor de ar, tem como seu único amigo oriundo do último emprego, Huotaria (Janne Hyytiäinen). A trama é ambientada na periferia de Helsinque, quando a Rússia continua bombardeando a Ucrânia e a personagem feminina ouve por um antigo rádio as notícias trágicas, mas cansa dos desprazeres do cotidiano e troca para outra emissora musical que traz mais leveza ao momento delicado mundial. Ela mora sozinha num pequeno apartamento, enquanto ele divide as acomodações precárias com os colegas num contêiner. O destino mostra os dois perdendo os empregos, quase simultaneamente. Um por colocar em sua bolsa um produto vencido da prateleira que era para ser descartado no lixo, metaforicamente alguém se resume àquela parte do resto a ser ignorado e jogado fora; o outro por beber em pleno expediente de trabalho e sofrer um acidente, o que faz o empregador despedi-lo por justa causa, embora os Equipamentos de Proteção Individual essenciais ao trabalhado seguro estivessem vencidos e inapropriados para uso na empresa. Completamente desconhecidos, os caminhos dos dois se cruzam acidentalmente numa noite em um pub de karaokê com frequentadores solitários. Ouvem músicas populares com títulos desde um cancioneiro pop finlandês até a apresentação da girl band Maustetytöt, cuja canção "Nascida na tristeza e vestida de decepção” resume o estado de espírito decorrente do capitalismo tardio.

Folhas de Outono é uma agradável obra marcada por diálogos, embora seja silenciosa e repleta de angústias daqueles seres solitários trabalhadores à deriva de uma sociedade de desafios para o futuro. Por não ser descartável, o prazo de validade do casal ainda não expirou, por isto precisa de poesia e direito ao amor na sua plenitude. O cineasta aponta para episódios sombrios através de personagens tragicômicos. Flutua com boa ternura da comédia agridoce romântica para pequenas tragédias pessoais, como o atropelamento que adia ainda mais essa união. A construção de um painel convincente comove e fisga o espectador para os dilemas dos dois desajustados socialmente, que querem e desejam amar. A procura do personagem por auxílio nos Alcoólicos Anônimos é edificante e mostra o quanto o rapaz luta para se afastar do vício destroçante, mas para isto é fundamental o voto de confiança da pessoa amada. Admirável as cenas sequenciais envolvendo a ida e o ponto de encontro dos dois no cinema como resgate e bálsamo para continuar vivendo com dignidade. Assistem um filme contrário ao que ele imaginou, por não ser nada romântico, como Os Mortos Não Morrem (2019), de Jim Jarmusch, com Bill Murray e Adam Driver, comparado por alguns distraídos com obras notáveis de Robert Bresson e Jean-Luc Godard. Ironicamente ela diz que nunca tinha rido tanto.

Eis um retrato melancólico dessa realidade difícil na qual estão inseridos personagens que vagueiam desanimados como zumbis num cenário adverso, mas com a esperança da essência do amor. Automaticamente atraídos um pelo outro, eles decidem sair em um encontro e, talvez, começar um relacionamento improvável que pode ser a solução para afastar o tédio de uma solidão existencial aniquiladora dos dois. Por culpa da desatenção de um deles, acabam se afastando. São encontros e desencontros marcados por uma melancolia avassaladora, mas que ainda acreditam na felicidade, embora haja uma atmosfera carregada de certa forma pelo pessimismo. Para alguns críticos, uma homenagem ao gênero romântico criado por Charles Chaplin em Luzes da Cidade (1931) e Luzes da Ribalta (1952), protagonizados pelo eterno personagem vagabundo e Calvero, respectivamente. A história é marcada por elipses que impulsionam o enredo, ou o minimalismo nas expressões, gestos e as belas imagens apanhadas dos personagens, como no desabafo de Holappa: "Estou deprimido porque bebo muito". Questionado pelo amigo "e por que você bebe muito?" Responde "porque estou deprimido". O diretor reforça seu estilo que combina questões sociais e mundiais como o desemprego e a guerra nos países vizinhos, através de um humor sutil numa estética e questionamentos bem peculiares.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O Melhor Está Por Vir

 

Tributo a Fellini

Nanni Moretti é um dos mais importantes e competentes diretores da Itália. Flutua entre os dramas familiares, religiosos, políticos e sociais como O Crocodilo (2006), quando abordou o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que teve sua imagem abalada sem perdão; questionou a escolha do papa em Habemus Papam (2011) com boa dose de humor e ironia fina ao discorrer sobre a eleição do Sumo Pontífice realizada entre os cardeais na escolha do vacilante Melville. Já fizera antes em A Missa Acabou (1985) ao satirizar a igreja através de um complicado padre na periferia de Roma. Ganhou o Prêmio do Júri em Cannes com Mia Madre (2015), num retorno às origens de abordagens profundas sobre a morte e a forte sensação da perda pelas lembranças pretéritas, bem como o que poderia ter feito e não fez para quem partiu, quase um remorso instintivo dos que ficaram. Uma análise sincera e despojada das provocações que remanesceram da existência e sua complexidade, como fez no drama O Quarto do Filho (2001), possivelmente sua obra maior, sendo premiado com a Palma de Ouro em Cannes, na história do psicanalista residente em Ancona que tem dois filhos, até que uma tragédia o transtorna completamente, por deixar de acompanhar o filho à praia, e que acabou morrendo afogado. Gosta de usar situações que vivenciou para incrementar suas realizações de cunho pessoal, assim foi em Caro Diário (1993), Aprile (1998) e Mia Madre, drama este que o faz relembrar a morte de sua própria mãe durante as filmagens de Habemus Papam.

Moretti voltou em grande estilo em sua realização anterior, Tre Piani (2021), ao retratar três famílias que vivem no mesmo condomínio de classe média alta, e suas vidas acabam ardilosamente se entrelaçando. Embora pudesse pelas circunstâncias conduzir a trama para um filme menor com demagogias baratas e lacrimejantes, mas habilmente foge das armadilhas piegas e faz uma obra espetacular com cenas marcantes, como dos casais dançando na rua. Agora faz uma justa e merecida homenagem ao mestre conterrâneo Federico Fellini ao realizar um remake de Oito e Meio (1963). Além de assinar o disperso roteiro em parceria com Francesca Marciano, Federica Pontremoli e Valia Santella, também atua como protagonista na comédia de costumes italiana O Melhor Está Por Vir, coproduzida com a França. O longa acompanha o ultrapassado cineasta Giovanni (Moretti), que tenta terminar um filme de época, ambientado em Roma, em 1956, sobre os comunistas italianos, mas enfrenta uma série de obstáculos. Está sempre no limite de suas forças com o contumaz estresse para alcançar seu objetivo de acreditar em algo melhor para sua carreira e vida pessoal conturbada com a esposa Paola (Margherita Buy), uma produtora de cinema que ao mesmo tempo divide as atenções com outra produção para um jovem promissor diretor. Ou seja, dois filmes dentro de um terceiro principal..

Embora faça uma reflexão amargurada com algum humor irônico, o realizador tenta nesta obra retratar uma concepção sobre a arte com o viés da abordagem das ideologias que cercam a sociedade contemporânea, como o comunismo e suas linhas da praticidade e as inconveniências políticas históricas. As diversas contradições são apontadas pelos seus erros, como os comunistas italianos oriundos da extinta União Soviética. O personagem central assume uma postura de desvairado ao encarnar as memórias e os incômodos que o atormentam. Diante das recorrentes provocações rasteiras de uma esquerda em choque com o mercado cinematográfico e os rumos com os novos talentos que surgem e a recepção de um novo público de espectadores. Estão presentes os empecilhos profissionais e pessoais para concluir seu novo filme de esperança. Acredita sinceramente que deve levar para a telona a história do Partido Comunista da Itália, bem como ter perdido a grande oportunidade de ter rompido com os tiranos russos para obter a verdadeira liberdade e o caminho da independência. Porém, ninguém mais se lembra desses acontecimentos, tendo em vista que o mundo mudou e a maneira de fazer uma película sobre aquela época também soçobrou. Pensa que está fazendo uma obra política, mas a atriz entende que ele está realizando é um filme de amor, possivelmente ela esteja com a razão.

O longa de Moretti peca por se tornar chato e repetitivo. Ele que sempre estrelou seus filmes, desta vez exagerou, ao usar e abusar do protagonismo histriônico que leva o espectador à exaustão. Nem como temática principal, sequer como construção de personagens, o filme não consegue decolar, tornando-se enfadonho e arrastado até o desfecho ufanista. A história deveria ter um frescor próprio pela tentativa de ser atual neste recorte específico na representação de um artista maniático no decorrer de seu processo de criação. Há uma tentativa válida de explicar as cenas musicais, deslocadas e atravessadas no enredo. Comportamento este que não está na criação do personagem, mas nas incursões dos rumos da história maçante, onde o circo húngaro poderia ter um aproveitamento melhor, mesmo que haja uma tentativa pouco convincente de colocá-lo no enredo através de uma situação de mudanças e conflitos na Revolução da Hungria com a ocupação soviética. Os rituais familiares com a maneira de expressar opiniões, afastam a esposa, que não quer mais continuar com a relação pelos episódios de picuinhas do marido em crise profissional, de ideias e vida amorosa dividida pelos conflitos do cotidiano. Já a filha prefere namorar em segredo um diplomata idoso polonês.

A comédia apresenta, apesar de ter dificuldade de aceitar que as coisas andam rápido, o personagem central com uma tendência de abraçar as novidades e mudar seus caminhos e o destino que o cercam quando observa os novos rumos. Apesar de ser uma contradição de comportamento e de ideais que nem ele acredita, mas que percebe e reconhece os novos horizontes existenciais batendo à porta. Nas variações da visão artística estão presentes as concessões que precisam ser feitas para que haja o financiamento e a distribuição, quando Giovanni fica inconformado numa reunião com a Netflix ao buscar financiamento para seu projeto de filme. Os executivos asseveram que "nossos conteúdos são vistos em 190 países, 190 países, 190 países”, e que sua produção não serve para o streaming. Mas há uma esperança que vem dos cofres da Ásia, após fracassar com a França. Na crise criativa proposta e nas escolhas de filmes dentro de um outro, a comédia se refere diretamente a Oito e Meio. Também há citações aos longas Caçada Humana (1966), de Arthur Penn e Um Grito de Revolta (1972), dos Irmãos Taviani, nas relações amorosas e clichês abundantes. Apesar das boas intenções de Moretti para uma reflexão sobre esquecer ideias retrógadas e dar alvíssaras para um futuro melhor, radiante e politicamente correto, O Melhor Está Por Vir não correspondeu à expectativa. Um mosaico construído por uma gama enorme de personagens em ciclos de amor, política, frustrações, arrependimentos, renovações e desajustes pelas decepções familiares e profissionais. Eis um tributo a Fellini que merecia ser mais meritório, mas que ficou devendo.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Maestro

 

Cenas de um Casamento

No apagar das luzes de 2023, Maestro entrou em cartaz na plataforma Netflix, o segundo longa-metragem do ator galã de 48 anos e agora diretor Bradley Cooper, que havia estreado por trás das câmeras com relativo sucesso em Nasce Uma Estrela (2018), estrelado por Lady Gaga. Uma cinebiografia de Leonard Bernstein interpretado por Cooper que usa um postiço nariz falso para retratar “Lenny”, como era conhecido o regente, compositor e pianista por seus amigos ao focar sua personalidade e suas paixões na vida real. Responsável pela composição da trilha sonora de filmes famosos como Um Dia em Nova Iorque (1949), de Gene Kelly e Stanley Donen, Sindicato de Ladrões (1954), de Elia Kazan, e Amor, Sublime Amor (1961), de Robert Wise e Jerome Robbins. Natural de Massachusetts, nos Estados Unidos, condutor principal da Orquestra Filarmônica de Nova Iorque por 18 anos. Foi o primeiro maestro norte-americano a reger orquestras europeias, como a Filarmônica de Viena com as sinfonias de Gustav Mahler. O diretor e o corroteirista Josh Singer destacaram a Segunda Sinfonia de Mahler, denominada Ressurreição. Compôs obras como Missa, a pedido de Jacqueline Kennedy para a inauguração do Kennedy Center, trecho que está presente no filme. Notabilizou-se como um condutor que não usa apenas os braços e a batuta para controlar o ritmo, a direção e o tom geral de uma orquestra.

Deve ser ressaltado que era para ser uma cinebiografia deste consagrado músico em orquestras que tocaram obras de Mahler, Beethoven, Wagner e Strauss, mas virou um melodrama ao abordar as complexas relações com cenas inusitadas do casamento com a atriz costarriquenha de TV e teatro Felicia Montealegre (Carey Mulligan), na mistura de suas maiores paixões: a arte pela música, a esposa e os flertes com alguns homens. O casal se conheceu em uma festa, em 1946, passando pelo primeiro noivado que foi rompido, e reiniciado para chegar ao matrimônio com vinte e cinco anos de duração, tendo três filhos da união. Um filme oposto a outras cinebiografias convencionais, por ser ousada e estranha. Diferente do empolgante documentário Ennio, O Maestro (2022), de Giuseppe Tornatore, que contava a vida e a carreira artística do lendário maestro italiano Ennio Morricone; de Bohemian Rhapsody (2018), dirigido por Bryan Singer, sobre Freddie Mercury e seus companheiros; bem como do outro grande compositor no documentário Aznavour por Charles (2019), de Marc di Domenico, sobre o icônico cantor e compositor mundial Charles Aznavour; nada a ver com a cinebiografia Elvis (2022), de Baz Luhrmann, que documenta a vida e a carreira artística do músico que se tornou o Rei do Rock’n’Roll; nem próximo de Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras (2017), do competente Tom Volf, entre tantas outras realizações similares sobre grandes estrelas.

Em Ennio, O Maestro havia intensidade, grandiloquência, sublimação e um formato espetacular, que vai muito além de enumerar os sucessos na eficiente montagem que une vários pontos de uma trajetória em que a música é o foco primordial da história contada. Já em Maestro, a música e a história da carreira de Bernstein com todo seu magnetismo, exuberância e brilho estão em segundo plano. Na realidade, o filme está interessado nos conflitos por trás do gênio, relatando seu relacionamento atribulado com Felicia. Apresenta uma análise de um personagem forte e complexo como pretende ser, em uma discutível visão sobre as contradições de um artista entre a vida pessoal e a profissional. Mira completamente na vida dupla do cinebiografado por trás da figura icônica e suas contradições, num duvidoso recorte voltado especialmente para seu casamento com as constantes traições. Com a música de fundo, a trama segue o relacionamento com a esposa como o objetivo principal. Desinteressado em esmiuçar a biografia do regente para quem não o conhece, o que pode deixar muitos espectadores sem norte. Mais preocupado em mostrar os affaires homossexuais pela infidelidade, quando chega a abandoná-la, mas volta para casa apenas quando fica sabendo do diagnóstico de câncer pulmonar agressivo da mulher. A sexualidade e a indecisão do regente renderam uma carta da companheira frustrada: “Você é homossexual, nunca mudará – você não admite a possibilidade de uma vida dupla, mas se a sua paz de espírito, a sua saúde e todo o seu sistema nervoso dependem de um determinado padrão sexual, o que você pode fazer?”

O prisma do enredo é construído sobre um casal aparentemente feliz e perfeito que acabou se separando devido ao constrangimento insuportável da mulher e o medo do marido em assumir a vida dupla. A preocupação do diretor é clara em explorar os desatinos complexos dos sentimentos de uma pessoa indecisa na relação amorosa ao invés de contar sua trajetória artística inquestionável da grande estrela mundial. Até o desfecho, o compositor se mostra inconstante, embora mencione a mulher como seu grande amor, ainda que os percalços, contraditoriamente, estejam presentes no longo relacionamento. Ela diz que sempre procurou um substituto para a figura paterna, enquanto ele revela seu amargor pela violência do pai, revelam angústias e fragilidades presentes, com o passado influindo no comportamento dos dois. O longa inicia com a citação do próprio maestro que não quer trazer respostas, mas simplesmente provocar perguntas. O espectador que esperava uma realização dedicada ao processo criativo e informativo, possivelmente irá se decepcionar.

Eis uma narrativa com minguados questionamentos do cinema e sua fusão com a música, sendo um filme pouco objetivo. Embora nos caminhos percorridos pelo casal exista alguma beleza com certa tristeza, quando o microcosmo familiar se reúne para uma confraternização para celebrar a existência. A cena ambientada dos dois participando de uma outrora sequência em preto e branco tem o condão de fantasiar uma paixão sob o embalo musical. Também a morte sendo mostrada através do pai abraçando a filha para interromper a dor. Outro significativo momento é o plano do carinho derradeiro aos três filhos com ausência de palavras, apenas a imagem que revela a perda. Cooper faz uma abordagem atípica e completamente fora do convencional para cinebiografias musicais. Por isto, seu filme Maestro, com toda a abundância dos complexos relacionamentos pessoais e focos sexuais reiterados, mesmo deixando de lado muitas informações sobre a vida profissional do personagem central, tem tudo para ser um grande premiado e o queridinho da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas no Oscar de 2024. Ainda que haja irregularidades e ausência de profundidade, bem como um distanciamento do artista com a essência da música e o descaso voluntário do cineasta com sua obra na criação e fundamentos, com cenas de um casamento fluindo à exaustão, na qual o genial Ingmar Bergman foi mestre em mergulhar nas profundezas da alma, há bons argumentos para os defensores deste melodrama.