Os Solitários
O finlandês Aki Kaurismäki é um realizador voltado para as questões sociais, tanto em seu país como as diversas mazelas na Europa. No excelente O Porto (2011), ganhador do Prêmio da Crítica no Festival de Cannes, possivelmente seu melhor longa-metragem, ambienta sua trama na cidade portuária Le Havre, na gris e sorumbática região da Normandia, na França. A solidariedade e a amizade aos imigrantes que desembarcam clandestinamente, vindos como animais em contêineres e jogados em solo perigoso, são abordadas magnificamente neste manifesto crítico de um libelo contra a intransigência dos povos ditos de primeiro mundo. Ainda que tenha na mentira do seu personagem principal a forma ilícita para salvar a pele de um garoto, protegendo-o da sanha irascível de uma política de imigração abominável. Também é dele O Homem Sem Passado (2001), no qual um homem após chegar a Helsinque de trem é surrado tão brutalmente que perde a memória. Vive como pode, no submundo da cidade, onde encontrará pessoas como ele, deserdadas da sociedade, que serão suas companheiras e o ajudarão a reajustar sua existência. Em O Outro Lado da Esperança (2017), narra um fugitivo da guerra na Síria que busca asilo. Depois de percorrer vários países, solicita permissão de estadia na Finlândia. Enquanto espera pela resposta, busca pela irmã, desaparecida, obtém ajuda de um pequeno comerciante que dá emprego em seu restaurante.
O veterano cineasta tem em sua filmografia a instigante A Trilogia do Proletariado, mostra a classe trabalhadora protagonizada por mulheres e homens marginalizados pela falta ou condições precárias de emprego. Um ensaio que tem como objetivo verificar como a desolação humana traz em suas narrativas retratos atuais de uma sociedade em decadência, com o sistema capitalista vigente. Sombras no Paraíso (1986) aborda uma caixa de supermercado e um motorista do caminhão de lixo, que tentam nas poucas horas de descanso divertimento em bares escutando música; Ariel (1988) conduz para a história de um homem, que nos minutos iniciais do filme perde seu pai por suicídio. Decide sair da pequena cidade em que vivia e ir para a capital ganhar a vida. Nesse processo passa por momentos complexos em que a brutalidade e o individualismo surgem como os novos pilares de sua jornada; A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos (1990) retrata uma supervisora de embalagens numa linha de produção em uma fábrica, mora com sua mãe e seu padrasto. Vive uma relação bastante caótica e tão exploradora quanto de seu emprego. Agora segue com a saga proletária com Folhas de Outono, coproduzido com a Alemanha, numa quadrilogia que reabre a temática do diretor, que também assina o roteiro, com suas marcas autorais interessantes.
Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes do ano passado, indicado para representar seu país na 96ª. edição do Oscar, e apontado pela Revista Time como o melhor filme de 2023, esta comédia romântica com tons de dramaticidade acompanha a história de Ansa (Alma Pöysti), uma estoquista de supermercado, e Holappa (Jussi Vatanen), um operário alcoólatra da construção civil que manuseia o compressor de ar, tem como seu único amigo oriundo do último emprego, Huotaria (Janne Hyytiäinen). A trama é ambientada na periferia de Helsinque, quando a Rússia continua bombardeando a Ucrânia e a personagem feminina ouve por um antigo rádio as notícias trágicas, mas cansa dos desprazeres do cotidiano e troca para outra emissora musical que traz mais leveza ao momento delicado mundial. Ela mora sozinha num pequeno apartamento, enquanto ele divide as acomodações precárias com os colegas num contêiner. O destino mostra os dois perdendo os empregos, quase simultaneamente. Um por colocar em sua bolsa um produto vencido da prateleira que era para ser descartado no lixo, metaforicamente alguém se resume àquela parte do resto a ser ignorado e jogado fora; o outro por beber em pleno expediente de trabalho e sofrer um acidente, o que faz o empregador despedi-lo por justa causa, embora os Equipamentos de Proteção Individual essenciais ao trabalhado seguro estivessem vencidos e inapropriados para uso na empresa. Completamente desconhecidos, os caminhos dos dois se cruzam acidentalmente numa noite em um pub de karaokê com frequentadores solitários. Ouvem músicas populares com títulos desde um cancioneiro pop finlandês até a apresentação da girl band Maustetytöt, cuja canção "Nascida na tristeza e vestida de decepção” resume o estado de espírito decorrente do capitalismo tardio.
Folhas de Outono é uma agradável obra marcada por diálogos, embora seja silenciosa e repleta de angústias daqueles seres solitários trabalhadores à deriva de uma sociedade de desafios para o futuro. Por não ser descartável, o prazo de validade do casal ainda não expirou, por isto precisa de poesia e direito ao amor na sua plenitude. O cineasta aponta para episódios sombrios através de personagens tragicômicos. Flutua com boa ternura da comédia agridoce romântica para pequenas tragédias pessoais, como o atropelamento que adia ainda mais essa união. A construção de um painel convincente comove e fisga o espectador para os dilemas dos dois desajustados socialmente, que querem e desejam amar. A procura do personagem por auxílio nos Alcoólicos Anônimos é edificante e mostra o quanto o rapaz luta para se afastar do vício destroçante, mas para isto é fundamental o voto de confiança da pessoa amada. Admirável as cenas sequenciais envolvendo a ida e o ponto de encontro dos dois no cinema como resgate e bálsamo para continuar vivendo com dignidade. Assistem um filme contrário ao que ele imaginou, por não ser nada romântico, como Os Mortos Não Morrem (2019), de Jim Jarmusch, com Bill Murray e Adam Driver, comparado por alguns distraídos com obras notáveis de Robert Bresson e Jean-Luc Godard. Ironicamente ela diz que nunca tinha rido tanto.
Eis um retrato melancólico dessa realidade difícil na qual estão inseridos personagens que vagueiam desanimados como zumbis num cenário adverso, mas com a esperança da essência do amor. Automaticamente atraídos um pelo outro, eles decidem sair em um encontro e, talvez, começar um relacionamento improvável que pode ser a solução para afastar o tédio de uma solidão existencial aniquiladora dos dois. Por culpa da desatenção de um deles, acabam se afastando. São encontros e desencontros marcados por uma melancolia avassaladora, mas que ainda acreditam na felicidade, embora haja uma atmosfera carregada de certa forma pelo pessimismo. Para alguns críticos, uma homenagem ao gênero romântico criado por Charles Chaplin em Luzes da Cidade (1931) e Luzes da Ribalta (1952), protagonizados pelo eterno personagem vagabundo e Calvero, respectivamente. A história é marcada por elipses que impulsionam o enredo, ou o minimalismo nas expressões, gestos e as belas imagens apanhadas dos personagens, como no desabafo de Holappa: "Estou deprimido porque bebo muito". Questionado pelo amigo "e por que você bebe muito?" Responde "porque estou deprimido". O diretor reforça seu estilo que combina questões sociais e mundiais como o desemprego e a guerra nos países vizinhos, através de um humor sutil numa estética e questionamentos bem peculiares.