Cenas de um Casamento
No apagar das luzes de 2023, Maestro entrou em cartaz na plataforma Netflix, o segundo longa-metragem do ator galã de 48 anos e agora diretor Bradley Cooper, que havia estreado por trás das câmeras com relativo sucesso em Nasce Uma Estrela (2018), estrelado por Lady Gaga. Uma cinebiografia de Leonard Bernstein interpretado por Cooper que usa um postiço nariz falso para retratar “Lenny”, como era conhecido o regente, compositor e pianista por seus amigos ao focar sua personalidade e suas paixões na vida real. Responsável pela composição da trilha sonora de filmes famosos como Um Dia em Nova Iorque (1949), de Gene Kelly e Stanley Donen, Sindicato de Ladrões (1954), de Elia Kazan, e Amor, Sublime Amor (1961), de Robert Wise e Jerome Robbins. Natural de Massachusetts, nos Estados Unidos, condutor principal da Orquestra Filarmônica de Nova Iorque por 18 anos. Foi o primeiro maestro norte-americano a reger orquestras europeias, como a Filarmônica de Viena com as sinfonias de Gustav Mahler. O diretor e o corroteirista Josh Singer destacaram a Segunda Sinfonia de Mahler, denominada Ressurreição. Compôs obras como Missa, a pedido de Jacqueline Kennedy para a inauguração do Kennedy Center, trecho que está presente no filme. Notabilizou-se como um condutor que não usa apenas os braços e a batuta para controlar o ritmo, a direção e o tom geral de uma orquestra.
Deve ser ressaltado que era para ser uma cinebiografia deste consagrado músico em orquestras que tocaram obras de Mahler, Beethoven, Wagner e Strauss, mas virou um melodrama ao abordar as complexas relações com cenas inusitadas do casamento com a atriz costarriquenha de TV e teatro Felicia Montealegre (Carey Mulligan), na mistura de suas maiores paixões: a arte pela música, a esposa e os flertes com alguns homens. O casal se conheceu em uma festa, em 1946, passando pelo primeiro noivado que foi rompido, e reiniciado para chegar ao matrimônio com vinte e cinco anos de duração, tendo três filhos da união. Um filme oposto a outras cinebiografias convencionais, por ser ousada e estranha. Diferente do empolgante documentário Ennio, O Maestro (2022), de Giuseppe Tornatore, que contava a vida e a carreira artística do lendário maestro italiano Ennio Morricone; de Bohemian Rhapsody (2018), dirigido por Bryan Singer, sobre Freddie Mercury e seus companheiros; bem como do outro grande compositor no documentário Aznavour por Charles (2019), de Marc di Domenico, sobre o icônico cantor e compositor mundial Charles Aznavour; nada a ver com a cinebiografia Elvis (2022), de Baz Luhrmann, que documenta a vida e a carreira artística do músico que se tornou o Rei do Rock’n’Roll; nem próximo de Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras (2017), do competente Tom Volf, entre tantas outras realizações similares sobre grandes estrelas.
Em Ennio, O Maestro havia intensidade, grandiloquência, sublimação e um formato espetacular, que vai muito além de enumerar os sucessos na eficiente montagem que une vários pontos de uma trajetória em que a música é o foco primordial da história contada. Já em Maestro, a música e a história da carreira de Bernstein com todo seu magnetismo, exuberância e brilho estão em segundo plano. Na realidade, o filme está interessado nos conflitos por trás do gênio, relatando seu relacionamento atribulado com Felicia. Apresenta uma análise de um personagem forte e complexo como pretende ser, em uma discutível visão sobre as contradições de um artista entre a vida pessoal e a profissional. Mira completamente na vida dupla do cinebiografado por trás da figura icônica e suas contradições, num duvidoso recorte voltado especialmente para seu casamento com as constantes traições. Com a música de fundo, a trama segue o relacionamento com a esposa como o objetivo principal. Desinteressado em esmiuçar a biografia do regente para quem não o conhece, o que pode deixar muitos espectadores sem norte. Mais preocupado em mostrar os affaires homossexuais pela infidelidade, quando chega a abandoná-la, mas volta para casa apenas quando fica sabendo do diagnóstico de câncer pulmonar agressivo da mulher. A sexualidade e a indecisão do regente renderam uma carta da companheira frustrada: “Você é homossexual, nunca mudará – você não admite a possibilidade de uma vida dupla, mas se a sua paz de espírito, a sua saúde e todo o seu sistema nervoso dependem de um determinado padrão sexual, o que você pode fazer?”
O prisma do enredo é construído sobre um casal aparentemente feliz e perfeito que acabou se separando devido ao constrangimento insuportável da mulher e o medo do marido em assumir a vida dupla. A preocupação do diretor é clara em explorar os desatinos complexos dos sentimentos de uma pessoa indecisa na relação amorosa ao invés de contar sua trajetória artística inquestionável da grande estrela mundial. Até o desfecho, o compositor se mostra inconstante, embora mencione a mulher como seu grande amor, ainda que os percalços, contraditoriamente, estejam presentes no longo relacionamento. Ela diz que sempre procurou um substituto para a figura paterna, enquanto ele revela seu amargor pela violência do pai, revelam angústias e fragilidades presentes, com o passado influindo no comportamento dos dois. O longa inicia com a citação do próprio maestro que não quer trazer respostas, mas simplesmente provocar perguntas. O espectador que esperava uma realização dedicada ao processo criativo e informativo, possivelmente irá se decepcionar.
Eis uma narrativa com minguados questionamentos do cinema e sua fusão com a música, sendo um filme pouco objetivo. Embora nos caminhos percorridos pelo casal exista alguma beleza com certa tristeza, quando o microcosmo familiar se reúne para uma confraternização para celebrar a existência. A cena ambientada dos dois participando de uma outrora sequência em preto e branco tem o condão de fantasiar uma paixão sob o embalo musical. Também a morte sendo mostrada através do pai abraçando a filha para interromper a dor. Outro significativo momento é o plano do carinho derradeiro aos três filhos com ausência de palavras, apenas a imagem que revela a perda. Cooper faz uma abordagem atípica e completamente fora do convencional para cinebiografias musicais. Por isto, seu filme Maestro, com toda a abundância dos complexos relacionamentos pessoais e focos sexuais reiterados, mesmo deixando de lado muitas informações sobre a vida profissional do personagem central, tem tudo para ser um grande premiado e o queridinho da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas no Oscar de 2024. Ainda que haja irregularidades e ausência de profundidade, bem como um distanciamento do artista com a essência da música e o descaso voluntário do cineasta com sua obra na criação e fundamentos, com cenas de um casamento fluindo à exaustão, na qual o genial Ingmar Bergman foi mestre em mergulhar nas profundezas da alma, há bons argumentos para os defensores deste melodrama.
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