quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Narciso em Férias

Memórias da Cadeia

A histórica noite da grande final da 3ª. edição do Festival da Record, realizada em 21 de outubro de 1967, foi retratada com muita lucidez no documentário Uma Noite em 67 (2010). Dirigido com simplicidade e sem perfumarias por Renato Terra e Ricardo Calil, acabou sendo uma boa surpresa o trabalho destes diretores estreantes. O filme reabilitou e renovou aos espectadores os memoráveis festivais de música popular brasileira na antiga Rede Record de Televisão, palco que serviu para lançamento de artistas iniciantes e promissores como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que mais tarde formariam o Movimento Tropicália ou Tropicalismo, com Gal Costa e Maria Bethânia, onde se realçava as roupas coloridas e diferentes que ditavam a moda na época, tendo nos comportadinhos Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo e seus fiéis seguidores trajando smokings, com aparências de bons moços dentro de uma formalidade para as apresentações noturnas impostas.

A dupla de realizadores está de volta com o badalado documentário Narciso em Férias, com exclusividade na plataforma de streaming da Globoplay, para contar a saga da prisão do cantor e compositor Caetano Veloso em 27 de dezembro de 1968, pelo regime militar. Um relato triste e sem artifícios melodramáticos, embora com bom humor, de suas memórias desse período sombrio da história brasileira no qual foi levado de seu modesto apartamento, em São Paulo, em que residia com esposa Dedé, para uma cadeia no Rio de Janeiro, permanecendo por 54 dias encarcerado. O músico foi preso com o amigo Gilberto Gil pela madrugada, logo após cantar algumas canções como Súplica e Assum Preto. Com precisão lembra que faziam 14 dias da publicação do famigerado Ato Institucional nº. 5 (AI-5), que concedia amplos poderes ao Presidente decretar Estado de Sítio, suspender os direitos políticos dos cidadãos por até dez anos, cassar mandatos políticos, suspender garantias constitucionais, demitir, dispensar, reformar ou transferir os servidores públicos.

Caetano conta na primeira pessoa sua viagem ao passado em um cenário simples com uma parede fria de cimento ao fundo acinzentada, que remete para um calabouço, sentado numa cadeira o tempo todo, sendo questionado pelo entrevistador. Relembra que foi colocado inicialmente numa sala comprida na presença de um general do Exército que jantava tranquilamente. Foi transferido num camburão para outro local, sendo jogado numa solitária com jornais velhos que acabou lendo por falta de opções, uma latrina e janelões altos sem ver o sol; Gil ficou em outra próxima. As refeições eram ruins e servidas por uma portinhola, sem contato com os carcereiros. Os documentaristas deixam correr livres os relatos de Caetano que enfatiza a falta de ânimo sequer para se masturbar ou chorar, pois se sentia ressequido de lágrimas, bem como não saber por que estava detido e sequer era interrogado. Após algum tempo, obteve na clandestinidade dois livros: O Bebê de Rosemary, de Ira Levin e O Estrangeiro, de Albert Camus.

Das suas memórias, manifesta sem mágoas a nova transferência, que ocasionou o encontro com Perfeito Fortuna, com quem fez amizade, Paulo Francis, Ferreira Gullar e um homônimo de Antônio Calado, preso por ter o mesmo nome do famoso escritor. Relata que ficou alegre por ter contato com pessoas, mas triste por acordar à noite com gritos de pessoas sendo torturadas, que pareciam ser presos comuns e de baixa renda, como no longa Tropa de Elite. Teve o cabelo cortado, mas que metaforicamente seria uma espécie de liberdade e a sobrevivência da qual esperava, porque não tinha morrido. Na descrição de Caetano, sempre transparecendo altivez, não esqueceu as edições da revista Manchete levadas por Dedé. Revelou seu medo por baratas por serem insetos de mau agouro e o soldadinho que chorou do nada ao olhar para ele. O momento de maior emoção foi lembrar da canção Sideral e cantar Hey Jude, dos Beatles, uma música que lhe provoca uma sensação de libertação. Falou da irmã Irene e sua risada que inspirou um de seus clássicos musicais. O interrogatório ocorreria bem depois, causando medo ao ter que indicar dados de seus familiares. Finalmente acabou sendo formalmente acusado, e só aí descobriu que seu crime teria sido uma denúncia falsa de ter parodiado o Hino Nacional em ritmo de Tropicália na Boate Sucata.

Outra interessante passagem é a do oficial treinado nos EUA pela CIA, que tinha grande conhecimento sobre o Tropicalismo, na qual a juventude bradava pelo antiamericanismo e o nacionalismo como sendo o grito de guerra em forma de protesto contra a ditadura. Este movimento musical foi bem abordado pela análise importante no documentário homônimo Tropicália (2012), com direção de Marcelo Machado, que resgata uma fase cultural quase esquecida na história brasileira, diante do inconformismo de uma geração amordaçada por todos os lados. No referido filme, Caetano e Gil são exilados em Londres, pois suas canções incomodavam, apesar de serem muito sutis ao usarem metáforas, como se depreende de letras aparentemente ingênuas, tais como Baby, cantada por Gal Costa, ao pronunciar “da margarina”, “da gasolina”, dentro de um contexto de insatisfação. Caetano não era visto com muita simpatia ao interpretar Alegria, Alegria, mencionando a Coca-Cola, Brigite Bardot e bombas, embora sem maiores conotações políticas, ou na linda É Proibido Proibir.

Narciso em Férias tem uma cena marcante do inverossímil interrogatório de Caetano que literalmente lê algumas partes do documento. Com boa ironia, acha graça de alguns trechos em que o acusam de ler e se inspirar no sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano Herbert Marcuse, um crítico do capitalismo, da tecnologia moderna, do materialismo histórico, da cultura do entretenimento, por representarem novas formas de controles sociais. Apesar de admitir ter lido o filósofo, se posiciona como um defensor do pluralismo de partidos e da liberdade de expressão, refutando a pecha de admirador do sistema socialista (comunismo). Aponta com clarividência as patacoadas do sistema repressivo quando é solto, preso e solto novamente, numa confusão entre a Polícia Federal e a Aeronáutica. O desespero e a crise por perder a razão e a lucidez do artista documentado ao chegar a casa de seus familiares, em Salvador, são realçadas no epílogo. Eis um documentário sobre um relato histórico da ditadura militar instalada a partir de 1964. Um bom filme sem ressentimentos que se não é definitivo, contribui para retratar os porões dos anos de chumbo no Brasil, com suas atrocidades e os resquícios deixados pelos abalos psicológicos e físicos nos compatriotas com ideias opostas, mas com o viés da dignidade humana destruída.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Crimes de Família

 

Distopias Sociais

 Outro longa-metragem argentino que está tendo muito boa acolhida junto ao público e aos críticos é Crimes de Família, dirigido por Sebastián Schindel, que assinou o roteiro em parceria com Pablo Del Teso. Um thriller familiar realizado para a telona, mas que acabou estreando mundialmente em agosto na Netflix por decorrência da pandemia. O cenário é o luxuoso bairro da Recoleta, em Buenos Aires, para retratar de maneira direta e sem concessões uma elite arrogante, mas que se considera soberana e intocável diante das classes menos favorecidas. Uma magnífica abordagem sobre o poderio financeiro e econômico de uma casta bem-sucedida na qual o dinheiro compra praticamente tudo, com a prevalência do machismo e a pouca importância dada aos anseios da mulher. São os aspectos sociais inerentes de uma Argentina rica, embora já dando sinais de decadência, contrastando com a outra de caráter eminentemente pobre advinda do interior, especificamente a província de Misiones na fronteira com o Brasil, uma das mais esquecidas e com déficit de emprego formal.

 A história é composta por personagens bem estruturados e identificados claramente nas suas fragilidades, falta de afeto, submissão, desajustes, mesquinharias e a prepotência remanescente da época de um colonialismo de outrora. A protagonista é Alicia (Cecilia Roth- em mais uma ótima atuação), uma mãe da alta sociedade que está desesperada e faz de tudo para que seu filho Daniel (Benjamín Amadeo), um comerciante falido, drogado, acusado de tentar matar e estuprar a ex-mulher Marcela (Sofía Gala Castiglione), com quem tem um filho menor, não seja preso. O pai do rapaz é Ignácio (Miguel Ángel Solá), que contesta a tentativa da esposa de livrar a cara do jovem desregrado e pagar milhões para um advogado. Gladys (Yanina Ávila) é a empregada acusada de roubar os patrões, cometer infanticídio e tentar esconder o corpo do recém-nascido no banheiro do confortável apartamento. A doméstica é analfabeta e tem um retardo mental, não conheceu sua mãe, foi criada pelo pai de quem sofreu abuso sexual, sendo também explorada pela madrasta. Sua defesa no tribunal é feita pela Defensoria Pública. Durante o processo, os patrões adotam o filho da serviçal e a patroa acaba descobrindo um segredo que mudaria todo o rumo da trama com reflexos arrasadores na sua vida.

 Schindel faz uma bela reflexão sobre as cicatrizes abertas dos vínculos entre empregada e empregadores interrompida abruptamente, ao retratar os contrastes sociais com contundência, especialmente a hipocrisia, o desconforto e o preconceito latente que pairam e se materializam numa relação entre ricos e pobres, busca nas entrelinhas marcar a fase de ouro das elites nos seus aspectos exteriores para a defesa de familiares protegidos, bem focados nas cenas dos julgamentos sequenciais dos dois acusados. Dá elementos com bons subsídios para evidenciar o panorama dos poderosos ostentado pelo núcleo familiar de um cotidiano frio advindo de um profundo abismo nas situações do dia a dia e da dedicação cega da mãe para o filho mimado. A distopia social em xeque se faz presente também nos julgamentos, além da falsidade, da mentira e da desconfiança para com a doméstica, quando Alicia nega ter sugerido o aborto porque não iria criar outro filho dela. Nenhum apoio será acenado ou sequer uma oferta financeira para custear a defesa de Gladys.

 O infanticídio ocorrido na residência dos patrões não tem perdão e prevalece a hipocrisia tirânica pelo medo do escândalo e da repercussão negativa. Manter a empregada encarcerada e bem longe soa como um irônico alívio para manter as aparências, mesmo que esta lhe defenda e mostre grandeza, tendo em vista sua preocupação com o futuro de seu filho menor. O filme tem um desfecho surpreendente na revelação do pai da criança morta por asfixia, bem como a autoria dos furtos de dinheiro no apartamento. É uma sucessão de mentiras e desvios de conduta que irão dar contundência no enredo trágico com viés de um jogo de proteção maternal. O epílogo é edificante pelo restabelecimento da verdade e a redenção das mães em seus papéis de leoas protetoras, principalmente da protagonista capaz de ameaçar, falsear a verdade e subornar um promotor para retirar do processo uma prova que incriminaria Daniel. O drama narrado com sutilezas não afasta o impacto do distanciamento existente dos personagens envolvidos pelas diferenças, mas reflete a preocupação desta obra autoral com a estratificação social exacerbada, através da captação da câmera que percorre o suntuoso imóvel e mergulha no inferno prisional.

 Há sinais evidentes e próximos pela similitude da temática com Casa Grande (2014), dirigido pelo estreante carioca Fellipe Barbosa, um drama brasileiro retratado sem demagogia pelos paradoxos da visão social de uma sociedade representada por uma classe média alta que tenta manter valores superados, bem como também nos remete para o nacional Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, sobre os contrastes existentes nas pirâmides salariais de um contexto severo e implacável, mas incisivo na hipocrisia das relações empregatícias quando há diferenças abissais no aparo das arestas para melhorar a situação deprimente para sobreviver, pelo olhar do menos favorecido, sem cair na obviedade. Crimes de Família mescla com verossimilhança a crítica social com os filmes de tribunais para abordar as falsas aparências com a falta da verdade nas anomalias sociais em que o dinheiro compra quase tudo, menos a dignidade e o amor materno de uma submissa. Cada posição dos personagens torna-se autônoma no desenrolar do enredo, ao direcionar a abordagem das relações afetivas da empregada e seu filho com os integrantes da família patronal, mas sem perder o humanismo da dor repassada. São elementos caracterizadores e envolventes que darão com rara qualidade o retrato intimista e digno da triste realidade presente nos gestos e atitudes pelas imagens e diálogos.