Distopias Sociais
Outro longa-metragem argentino que está tendo muito boa
acolhida junto ao público e aos críticos é Crimes
de Família, dirigido por Sebastián Schindel, que assinou o roteiro em
parceria com Pablo Del Teso. Um thriller
familiar realizado para a telona, mas que acabou estreando mundialmente em
agosto na Netflix por decorrência da pandemia. O cenário é o luxuoso bairro da
Recoleta, em Buenos Aires,
para retratar de maneira direta e sem concessões uma elite arrogante, mas que
se considera soberana e intocável diante das classes menos favorecidas. Uma
magnífica abordagem sobre o poderio financeiro e econômico de uma casta
bem-sucedida na qual o dinheiro compra praticamente tudo, com a prevalência do
machismo e a pouca importância dada aos anseios da mulher. São os aspectos
sociais inerentes de uma Argentina rica, embora já dando sinais de decadência,
contrastando com a outra de caráter eminentemente pobre advinda do interior, especificamente
a província de Misiones na fronteira com o Brasil, uma das mais esquecidas e
com déficit de emprego formal.
A história é composta por personagens bem estruturados e
identificados claramente nas suas fragilidades, falta de afeto, submissão, desajustes,
mesquinharias e a prepotência remanescente da época de um colonialismo de
outrora. A protagonista é Alicia (Cecilia Roth- em mais uma ótima atuação), uma
mãe da alta sociedade que está desesperada e faz de tudo para que seu filho
Daniel (Benjamín Amadeo), um comerciante falido, drogado, acusado de tentar
matar e estuprar a ex-mulher Marcela (Sofía Gala Castiglione), com quem tem um
filho menor, não seja preso. O pai do rapaz é Ignácio (Miguel Ángel Solá), que
contesta a tentativa da esposa de livrar a cara do jovem desregrado e pagar
milhões para um advogado. Gladys (Yanina Ávila) é a empregada acusada de roubar
os patrões, cometer infanticídio e tentar esconder o corpo do recém-nascido no
banheiro do confortável apartamento. A doméstica é analfabeta e tem um retardo mental, não
conheceu sua mãe, foi criada pelo pai de quem sofreu abuso sexual, sendo também
explorada pela madrasta. Sua defesa no tribunal é feita pela Defensoria Pública.
Durante o processo, os patrões adotam o filho da serviçal e a patroa acaba
descobrindo um segredo que mudaria todo o rumo da trama com reflexos
arrasadores na sua vida.
Schindel faz uma bela reflexão sobre as cicatrizes abertas dos
vínculos entre empregada e empregadores interrompida abruptamente, ao retratar
os contrastes sociais com contundência, especialmente a hipocrisia, o desconforto
e o preconceito latente que pairam e se materializam numa relação entre ricos e
pobres, busca nas entrelinhas marcar a fase de ouro das elites nos seus
aspectos exteriores para a defesa de familiares protegidos, bem focados nas
cenas dos julgamentos sequenciais dos dois acusados. Dá elementos com bons
subsídios para evidenciar o panorama dos poderosos ostentado pelo núcleo
familiar de um cotidiano frio advindo de um profundo abismo nas situações do
dia a dia e da dedicação cega da mãe para o filho mimado. A distopia social em
xeque se faz presente também nos julgamentos, além da falsidade, da mentira e
da desconfiança para com a doméstica, quando Alicia nega ter sugerido o aborto
porque não iria criar outro filho dela. Nenhum apoio será acenado ou sequer uma
oferta financeira para custear a defesa de Gladys.
O infanticídio ocorrido na residência dos patrões não tem
perdão e prevalece a hipocrisia tirânica pelo medo do escândalo e da
repercussão negativa. Manter a empregada encarcerada e bem longe soa como um irônico
alívio para manter as aparências, mesmo que esta lhe defenda e mostre grandeza,
tendo em vista sua preocupação com o futuro de seu filho menor. O filme tem um
desfecho surpreendente na revelação do pai da criança morta por asfixia, bem como
a autoria dos furtos de dinheiro no apartamento. É uma sucessão de mentiras e desvios
de conduta que irão dar contundência no enredo trágico com viés de um jogo de
proteção maternal. O epílogo é edificante pelo restabelecimento da verdade e a
redenção das mães em seus papéis de leoas protetoras, principalmente da
protagonista capaz de ameaçar, falsear a verdade e subornar um promotor para
retirar do processo uma prova que incriminaria Daniel. O drama narrado com
sutilezas não afasta o impacto do distanciamento existente dos personagens
envolvidos pelas diferenças, mas reflete a preocupação desta obra autoral com a
estratificação social exacerbada, através da captação da câmera que percorre o suntuoso imóvel e mergulha no inferno prisional.
Há sinais evidentes e próximos pela similitude da temática
com Casa Grande (2014), dirigido pelo
estreante carioca Fellipe Barbosa, um drama brasileiro retratado sem demagogia
pelos paradoxos da visão social de uma sociedade representada por uma classe
média alta que tenta manter valores superados, bem como também nos remete para
o nacional Que Horas Ela Volta?
(2015), de Anna Muylaert, sobre os contrastes existentes nas pirâmides
salariais de um contexto severo e implacável, mas incisivo na hipocrisia das
relações empregatícias quando há diferenças abissais no aparo das arestas para
melhorar a situação deprimente para sobreviver, pelo olhar do menos favorecido,
sem cair na obviedade. Crimes de Família mescla
com verossimilhança a crítica social com os filmes de tribunais para abordar as
falsas aparências com a falta da verdade nas anomalias sociais em que o
dinheiro compra quase tudo, menos a dignidade e o amor materno de uma submissa.
Cada posição dos personagens torna-se autônoma no desenrolar do enredo, ao
direcionar a abordagem das relações afetivas da empregada e seu filho com os
integrantes da família patronal, mas sem perder o humanismo da dor repassada.
São elementos caracterizadores e envolventes que darão com rara qualidade o
retrato intimista e digno da triste realidade presente nos gestos e atitudes pelas
imagens e diálogos.
Um comentário:
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