Superação de Vida
Considerado unanimemente como um dos grandes talentos da
música brasileira, o maestro João Carlos Martins volta a ser tema no drama
cinebiográfico João, O Maestro, filme
apresentado recentemente na abertura do 45º. Festival de Cinema de Gramado
deste ano. Escrito e dirigido por Mauro Lima, um especialista em cinebiografias,
foi também o realizador de Meu Nome Não É Johnny (2008) e Tim Maia (2014), no qual o sarcasmo e a
vida desregrada surgiam como pilares. A história do pianista descendente de uma
família de portugueses é justamente o contrário por ser solene e até moderada.
Recontada novamente, depois de ser transposta para a telona no documentário A Paixão Segundo Martins (2004), pela
ótica da cineasta alemã Irene Langemann, que retrata a trajetória de triunfos,
grandes momentos e fracassos do músico, traz no título uma brincadeira com Paixão Segundo S. Mateus, de Bach,
mostra a herança deixada na gravação completa da obra do compositor alemão, que
totalizam 21 CDs.
A trama no longa brasileiro é apresentada em três fases que
se intercalam em
flashbacks. Davi Campolongo
é o intérprete na fase de criança, quando já se mostrava um apaixonado por
música clássica e um prodígio do piano com amplo domínio de notas e partituras,
embora tivesse uma saúde debilitada na infância. Iniciou a carreira aos 7 anos,
quando recebeu um prêmio. A partir daí, estudou e se tornou uma celebridade
mundial com apresentações no Uruguai, Argentina, EUA, Bulgária, Alemanha e
outros países da Europa. É vivido por Rodrigo Pandolfo quando jovem, o ótimo
ator gaúcho que despontou em Elis (2015)
e Minha Mãe É Uma Peça (2013), tem
uma entrega irretocável pela dedicação à arte e a obsessão pelo perfeccionismo
técnico do personagem retratado. A terceira e última fase é a adulta, e que tem
no papel o ator global Alexandre Nero, de discreta força dramática e com um
desempenho burocrático, sendo um pouco mais contido seu
histrionismo.
O protagonista deslancha e firma-se como um dos maiores
intérpretes e conhecedores mundiais do vasto repertório de Johann Sebastian
Bach (1685-1750), músico, compositor e organista, que faz parte da tríade ao
lado de Mozart e Beethoven. Martins esteve presente ao lado das mais
importantes orquestras do mundo e teve contato com artistas renomados. Pandolfo
dá uma sustentação ao biografado numa construção psicológica exemplar, dá vida e
emoção no maior papel de sua carreira, mesmo que esteja apenas dublando, atua
com uma assombrosa naturalidade, muito além da expectativa. Está perfeito ao se
desreprimir sexualmente num bordel em Montevidéu, há uma boa passagem pelas
festas memoráveis com mulheres e conquistas amorosas que levam ao primeiro
casamento (Fernanda Nobre), os dois filhos e à separação. Mas a carreira teve
de ser interrompida por causa de dois acidentes. O primeiro ocorreu em 1966, em Nova Iorque , quando joga
bola com os atletas da Portuguesa de Desportos (SP) num treino em um parque,
seu time do coração, uma pedra entrou em seu braço, prejudicando os movimentos
da mão direita que trará sérios transtornos. Depois de um longo tratamento,
voltou a tocar com esforço redobrado, apresenta-se em concertos com uma mão só.
Porém, o pior acidente viria mais tarde, em 1995, na Bulgária, ao reagir a um
assalto levou um golpe na cabeça, que resultou numa lesão cerebral com
desdobramentos na fala e nos movimentos da mão esquerda pelas dores intensas,
além das dificuldades inerentes que o levaria a abandonar a carreira por muitos
anos e se dedicar a empresariar cantores e lutas de boxe.
Com a nova esposa (Alinne Moraes) surge o retorno e a
reinvenção do pianista, que não desiste da música. É o começo de mais uma
superação diante das precárias condições físicas para tocar piano, que se dá na
Orquestra Bachiana Filarmônia de São Paulo, através do auxílio institucional do
SESI/FIESP, quando é guindado a regente. O diretor, porém, se perde nesta fase
que encaminha para o desfecho e quase que liquida, mas macula, a isenção da realização,
ao confundir merchandising com uma
agressiva propaganda explícita e desnecessária de um dos patrocinadores do
drama. Ficaria de bom tamanho se fosse inserida somente nos créditos finais. Apesar
da derrapada, Lima tem méritos inquestionáveis neste tributo humanista ao insuperável
homem da música, por construir um cenário edificante com acerto na reconstrução
de época e a trajetória pobre na infância sendo bem pontificada.
Um bom filme que oscila do intenso para um pragmatismo
recorrente no epílogo, numa narrativa didática com um elenco em que há homogeneidade,
inclusive nas dublagens perfeitas na história incomum do emblemático maestro. As
relações atribuladas com conquistas e desfazimentos afetivos pela compulsão, os
acidentes pelos azares da vida sem pieguismos, mas além de tudo, um
impressionante vigor acima de tudo para superar as turbulências sem deixar o
desânimo tomar conta. São circunstâncias essenciais para uma vida intensa do virtuose
biografado, de altos e baixos, advindos de reveses e vitórias das armadilhas do
destino e sua força para manter-se de pé nos piores momentos neste passeio de
fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e
dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma trajetória
recheada de futilidades, dando lugar para uma saga que ainda segue o mestre enfrentando
pelos infortúnios das dores físicas crônicas.