quarta-feira, 30 de agosto de 2017

João, O Maestro


Superação de Vida

Considerado unanimemente como um dos grandes talentos da música brasileira, o maestro João Carlos Martins volta a ser tema no drama cinebiográfico João, O Maestro, filme apresentado recentemente na abertura do 45º. Festival de Cinema de Gramado deste ano. Escrito e dirigido por Mauro Lima, um especialista em cinebiografias, foi também o realizador de Meu Nome Não É Johnny (2008) e Tim Maia (2014), no qual o sarcasmo e a vida desregrada surgiam como pilares. A história do pianista descendente de uma família de portugueses é justamente o contrário por ser solene e até moderada. Recontada novamente, depois de ser transposta para a telona no documentário A Paixão Segundo Martins (2004), pela ótica da cineasta alemã Irene Langemann, que retrata a trajetória de triunfos, grandes momentos e fracassos do músico, traz no título uma brincadeira com Paixão Segundo S. Mateus, de Bach, mostra a herança deixada na gravação completa da obra do compositor alemão, que totalizam 21 CDs.

A trama no longa brasileiro é apresentada em três fases que se intercalam em flashbacks. Davi Campolongo é o intérprete na fase de criança, quando já se mostrava um apaixonado por música clássica e um prodígio do piano com amplo domínio de notas e partituras, embora tivesse uma saúde debilitada na infância. Iniciou a carreira aos 7 anos, quando recebeu um prêmio. A partir daí, estudou e se tornou uma celebridade mundial com apresentações no Uruguai, Argentina, EUA, Bulgária, Alemanha e outros países da Europa. É vivido por Rodrigo Pandolfo quando jovem, o ótimo ator gaúcho que despontou em Elis (2015) e Minha Mãe É Uma Peça (2013), tem uma entrega irretocável pela dedicação à arte e a obsessão pelo perfeccionismo técnico do personagem retratado. A terceira e última fase é a adulta, e que tem no papel o ator global Alexandre Nero, de discreta força dramática e com um desempenho burocrático, sendo um pouco mais contido seu histrionismo.

O protagonista deslancha e firma-se como um dos maiores intérpretes e conhecedores mundiais do vasto repertório de Johann Sebastian Bach (1685-1750), músico, compositor e organista, que faz parte da tríade ao lado de Mozart e Beethoven. Martins esteve presente ao lado das mais importantes orquestras do mundo e teve contato com artistas renomados. Pandolfo dá uma sustentação ao biografado numa construção psicológica exemplar, dá vida e emoção no maior papel de sua carreira, mesmo que esteja apenas dublando, atua com uma assombrosa naturalidade, muito além da expectativa. Está perfeito ao se desreprimir sexualmente num bordel em Montevidéu, há uma boa passagem pelas festas memoráveis com mulheres e conquistas amorosas que levam ao primeiro casamento (Fernanda Nobre), os dois filhos e à separação. Mas a carreira teve de ser interrompida por causa de dois acidentes. O primeiro ocorreu em 1966, em Nova Iorque, quando joga bola com os atletas da Portuguesa de Desportos (SP) num treino em um parque, seu time do coração, uma pedra entrou em seu braço, prejudicando os movimentos da mão direita que trará sérios transtornos. Depois de um longo tratamento, voltou a tocar com esforço redobrado, apresenta-se em concertos com uma mão só. Porém, o pior acidente viria mais tarde, em 1995, na Bulgária, ao reagir a um assalto levou um golpe na cabeça, que resultou numa lesão cerebral com desdobramentos na fala e nos movimentos da mão esquerda pelas dores intensas, além das dificuldades inerentes que o levaria a abandonar a carreira por muitos anos e se dedicar a empresariar cantores e lutas de boxe.

Com a nova esposa (Alinne Moraes) surge o retorno e a reinvenção do pianista, que não desiste da música. É o começo de mais uma superação diante das precárias condições físicas para tocar piano, que se dá na Orquestra Bachiana Filarmônia de São Paulo, através do auxílio institucional do SESI/FIESP, quando é guindado a regente. O diretor, porém, se perde nesta fase que encaminha para o desfecho e quase que liquida, mas macula, a isenção da realização, ao confundir merchandising com uma agressiva propaganda explícita e desnecessária de um dos patrocinadores do drama. Ficaria de bom tamanho se fosse inserida somente nos créditos finais. Apesar da derrapada, Lima tem méritos inquestionáveis neste tributo humanista ao insuperável homem da música, por construir um cenário edificante com acerto na reconstrução de época e a trajetória pobre na infância sendo bem pontificada.

Um bom filme que oscila do intenso para um pragmatismo recorrente no epílogo, numa narrativa didática com um elenco em que há homogeneidade, inclusive nas dublagens perfeitas na história incomum do emblemático maestro. As relações atribuladas com conquistas e desfazimentos afetivos pela compulsão, os acidentes pelos azares da vida sem pieguismos, mas além de tudo, um impressionante vigor acima de tudo para superar as turbulências sem deixar o desânimo tomar conta. São circunstâncias essenciais para uma vida intensa do virtuose biografado, de altos e baixos, advindos de reveses e vitórias das armadilhas do destino e sua força para manter-se de pé nos piores momentos neste passeio de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma trajetória recheada de futilidades, dando lugar para uma saga que ainda segue o mestre enfrentando pelos infortúnios das dores físicas crônicas.

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