A Família
Laís Bodanzky é um diretora atenta às circunstâncias e às
reflexões de todas as idades e à intolerância civilizatória. Assim foi com o
ótimo Chega de Saudade (2008) que
procurava retirar o peso da terceira idade, mas com muita sutileza e doçura
demonstrava todos os seus problemas inerentes à velhice e o tempo que se esvai
lentamente, deixando recordações mescladas com mágoas e lembranças saborosas da
vida. Em Bicho de Sete Cabeças
(2000), debruça-se sobre o sistema que devora a presa, corroendo todas as suas
fragilidades e virtudes encobertas por nuvens negras refletidas das drogas,
numa metáfora magnífica realizada no conflito do pai com o filho drogado. As Melhores Coisas do Mundo (2010) retrata
os prazeres e desprazeres da adolescência, onde um jovem vê seu pai se separar
da mãe e assumir a homossexualidade, motivo este que lhe trará enormes desavenças
no ambiente escolar, sofre bullying dos colegas que têm atitudes agressivas
pela violência explícita e hostis como o isolamento na turma, surgindo
claramente o preconceito sexual, num mergulho no universo juvenil das grandes
paixões, os relacionamentos com as namoradinhas, os traumas da garotada e a
difícil passagem para o mundo adulto repleto de preconceitos e complicações inerentes
da transição.
O último longa da cineasta, que escreveu o roteiro com seu
ex-marido Luiz Bolognesi, foi o grande vencedor do Festival de Gramado deste
ano, ganhando seis Kikitos: melhor filme, direção, ator, atriz, atriz
coadjuvante e montagem. Abocanhou o prêmio do Festival de Cinema Brasileiro de
Paris, e teve também boa aceitação na Mostra Panorama do Festival de Berlim. Como Nossos Pais é um drama familiar
sobre o neofeminismo, numa urdida trama na qual Rosa (Maria Ribeiro), 38 anos,
é uma típica brasileira, classe média, que passa por momentos conturbados na
sua vida particular e profissional, marcada por conflitos pessoais e operacionais.
Divide seu tempo com as lidas domésticas, educa e leva as duas filhas para o
colégio, sustenta o lar e tem atritos com o marido, Dado (Paulo Vilhena), um
antropólogo que está quase sempre viajando em aldeias indígenas. Esta
supermulher contemporânea tem seus sonhos frustrados por um emprego burocrático
até ser despedida por uma confusão de um texto que pretendia escrever, que dava
asas à sua imaginação fértil e redentora de uma dramaturga sufocada pelo
trabalho rotineiro, inspirada na peça teatral Casa de Bonecas (1879), do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, motivo de muitas polêmicas, mediante o teor, que denunciava a
exclusão das mulheres na sociedade burguesa da época.
Um filme sobre as ilusões reprimidas e os objetivos
profissionais enfraquecidos, além das dificuldades da vida matrimonial e o
cotidiano numa trama simples, construído para uma reflexão sobre a rotina metódica
e os aspectos da solidão familiar, o desfortúnio do amor, a mesmice diária
atordoante e as fantasias eróticas com um pai de uma coleguinha das filhas. Há
menos vitórias e mais derrotas da vida banal que leva, pelos detalhes da
singeleza de um turbilhão de pensamentos que povoam e permanecem para
evidenciar a racionalidade de continuar lutando com dignidade. Um drama
alicerçado com sobriedade pelas tintas sombrias da razão e da emoção contida
dos dias que passam sem um objetivo maior no futuro do casal de pouca
perspectiva. Rosa continua também sendo uma filha insegura e careta às vezes,
possui uma convivência conflitada de vínculos estremecidos pelos anseios
recorrentes da ligação com a arrebatadora mãe, Clarice (Clarisse Abujamra), uma
mulher esforçada para derrubar as barreiras das convenções pré-estabelecidas, que
descobre uma doença grave, e de quem receberá sem muita cerimônia a revelação
da paternidade biológica, decorrente de uma freudiana
relação beirando um clima de rivalidade entre elas. Mais um problema a ser
resolvido. Quem é seu verdadeiro pai? O pai afetivo, que a criou, Homero (Jorge
Mautner) é um artista plástico que também está sempre com o pé na estrada e
eles têm pouco contato. O biológico é um ministro de Brasília que não quer
aproximação ou estreitar laços, para não ser prejudicado em seu cargo e sua
família.
O realismo está presente nos gestos e atitudes pelas imagens
e diálogos reveladores da realizadora. Assim foi nas obras anteriores, tanto no
relacionamento de pai e filho com as drogas; como falar da terceira idade, sem
criar clichês constrangedores, nem glamorizar por uma retórica falsa de melhor
idade, afastando-se deste ardil com sabedoria; na abordagem sem estereótipos da
juventude, com suas agonias à flor da pele. Demonstra estar cada vez mais madura,
ao retratar uma sociedade que ainda dá pouca importância na valoração da mulher
no contexto da sociedade. Como Nossos
Pais tem intensidade e luz própria no vigor do enredo, mas simplifica no
simbólico desfecho em aberto, ao remeter para o clássico romance Dom Casmurro, de Machado de Assis:
Capitu traiu ou não Bentinho? Aqui os personagens se invertem. Uma narrativa
sem grandes invenções estéticas, que tem um bom elenco como sustentação, com
destaques para Maria Ribeiro que carrega o filme na difícil tarefa de múltiplos
papéis de filha, mãe e supermulher, além da ótima presença de Clarisse Abujamra.
Pode não ser o melhor de Bodanzky, mas há muita sensibilidade e humanismo
carreados para um questionamento verossímil na turbulência das contradições que
o universo feminino sofre e carrega, estando muitas vezes num isolamento de
cobranças diárias sem limites impostas pelo fechado espaço machista com
reflexos no complexo núcleo familiar.
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