terça-feira, 19 de setembro de 2017

Glory


Valores Corrompidos

Vem da Bulgária em coprodução com a Grécia o segundo longa-metragem dos diretores Kristina Grozeva e Petar Valchanov, Glory, presente no Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça. Para contar uma triste história real, a inspiração dos realizadores veio por uma notícia veiculada na imprensa búlgara, em que um humilde operário de manutenção da rede ferroviária comete um ato politicamente correto, ao ligar para a polícia e informar que encontrou sacos com milhões em dinheiro espalhados nos trilhos dos trens, por acaso. Enquanto algumas pessoas de sua comunidade o ridicularizam, o Ministério dos Transportes quer agraciá-lo com um relógio de pulso para desviar as atenções da sociedade de um escândalo por superfaturamento na compra de vagões, com o intuito de torná-lo um herói nacional. Acontece que o objeto é de má qualidade e logo para de funcionar. É a segunda parte de uma trilogia que seguirá a proposta de transformar notícias da mídia em produção para o cinema, que começou com A Lição (2014), ao abordar sobre uma professora toda certinha de ensino fundamental de uma escola pública, que descobre um furto de dinheiro dentro da sala de aula, cria-se uma obsessão em descobrir quem foi o culpado e as justificativas que levaram os personagens para o crime.

A trama acompanha a saga de Tsanko Petrov (Stefan Denolyubov- de impecável desempenho), um trabalhador honesto com barba longa decorrente de uma promessa, de hábitos simples, mora sozinho numa aldeia rodeado de animais domésticos, que sente dificuldades de expressão pela gagueira. Ao encontrar uma pequena fortuna no seu local de trabalho, seu périplo começa com o presente recebido de péssima qualidade e com a perda de seu antigo relógio guardado no momento do tributo articulado por parte de Julia Staikova (Margita Gosheva- ótima interpretação, foi a professora de A Lição), uma ardilosa chefe do departamento de relações públicas do governo, que está mais preocupada com sua inseminação artificial para engravidar, deixando as tarefas profissionais para o marido resolver e sequer atende as ligações do outrora homenageado. Razão pela qual faz com que ele inicie uma busca intensa e sem limites pelo relógio confiscado de relevante valor estimativo por ser uma relíquia familiar, que empresta o nome ao título do longa, no qual acertava metodicamente pelo serviço telefônico de ajuste de horas.

O filme tem um roteiro enxuto e com uma narrativa direta e sem invenções mirabolantes, num tom cru, com diálogos curtos e objetivos, coloca o protagonista envolvido numa engrenagem burocrática kafkiana com pessoas perigosas que farão de tudo para afastá-lo do cotidiano, após dar um depoimento contundente num canal de televisão afirmando que o ministro fez vistas grossas para seu alerta de furto de combustíveis pelos seus colegas ferroviários nos trens estacionados. Uma poderosa denúncia de corrupção que soa como uma epidemia espalhada em países pouco democráticos que esbarram nos padrões da moral e da dignidade de pessoas que ainda sustentam com bravura a honestidade tão escorraçada em nossos dias. Eis um primoroso drama social que faz um retrato profundo dos valores éticos corrompidos num país deteriorado institucionalmente no leste europeu, como metáfora de um regime arcaico comunista em vias de extinção pelas fragilidades de uma burocracia emperrante de um sistema totalmente superado. Os cineastas colocam no meio deste turbilhão o carismático Petrov na tentativa de solucionar o seu caso particular que irá enfrentar uma série de adversidades inverossímeis que o faz questionar os limites da urbanidade, numa meditação sobre o que é certo ou errado, tendo como mote a recorrente ilicitude praticada com a anuência do alto escalão governamental em conluio com uma vilipendiada polícia e seus atos de torpeza. O epílogo é a síntese da agressividade contida no ser humano e a vingança sintomática estampada no homem oprimido em seus valores maiores pela injustiça.

Glory é um retrato digno sobre as circunstâncias relevantes que levaram o personagem central para uma verdadeira teia de aranha na armação de seus fios condutores, no qual o emaranhado de desculpas, farpas e acusações incriminatórias o leva para seu retiro à espera do bote final. O diploma honorário recebido foi outro repugnante blefe inquietante. O embrião fecundado contrasta com o novo visual do protagonista e suas marcas relevantes pelas cicatrizes advindas da atrocidade da força do poder e da violência desmesurada. São metáforas de uma nação integrante da antiga cortina de ferro dentro de um continente em crise sócio-econômica. A ética e o bom senso estão literalmente estraçalhados por um motivo maior e enobrecedor do ferroviário com seu olhar fulminante, aspecto sombrio e dolorido, com um gesto de defesa dos atribuídos fatos indignos que o perseguem, deixa a imaginação retumbando no olhar do espectador agoniado e envolvido pela luta tenaz e desesperada de nosso anti-herói para manter a dignidade apesar de tudo.

Um drama minimalista na essência da produção, com foco nos problemas universais, num cenário que contrasta o urbano com o abandono rural, através de uma narrativa de realismo seco, com momentos de um clímax de suspense pela surpresa sequencial, bem construída na cena da vida comum de uma pessoa conflitada pelas situações alheias ao desejado. A dupla Grozeva e Valchanov se debruça nos valores éticos degenerados pela corrupção sem controle. Um mergulho profundo sobre a doença sistêmica de uma crise sem precedentes e as consequências nefastas da humilhação que arrasará com o objetivo mínimo de uma pessoa íntegra como símbolo alegórico de um Estado desatento de suas obrigações precípuas e inerentes para com seus filhos e a opressão de classes mais pobres. São elementos notáveis deste magnífico drama pelos questionamentos e a exposição do processo burocrático que remete para uma reflexão imparcial e impactante, com um desfecho revelador.

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