quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Golpe de Sorte em Paris

 

O Triângulo

Woody Allen reaparece com Golpe de Sorte em Paris, 50º. longa-metragem do diretor e roteirista, uma mescla de melodrama, suspense e policial tragicômico, onde o azar, a sorte ou o acaso com os contratempos do destino estão presentes e se entrelaçam no cotidiano dos personagens. Afasta-se de sua trajetória de comédias de costumes dramáticas, mas segue fiel no sarcasmo e na sutil ironia fina como marcas registradas de sua extensa carreira, por ser um dos melhores cineastas em atividade no mundo. Ainda que sua conturbada vida pessoal atrapalhe seu destino e o cancelamento que sofreu no território dos EUA não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória na sétima arte. Este é o primeiro filme do cineasta cujo idioma principal não é o inglês, e o segundo filmado inteiramente na França depois de Meia-Noite em Paris (2011). Pretendia filmar em Paris no verão de 2020, mas foi impedido pela pandemia da Covid-19. Entrevistado pelo ator Alec Baldwin em junho de 2022, mencionou que seu quinquagésimo filme, considerado pelo próprio realizador de 88 anos como um drama semelhante, no qual flerta com Ponto Final: Match Point (2005), provavelmente seria o último.

Numa visita à filmografia de Allen, Zelig (2003) é uma de suas das obras-primas; bem como se vislumbra uma retomada do inesquecível A Rosa Púrpura do Cairo (1985), talvez seu maior filme, naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película para fugir do martírio de sua vida sem graça; o romântico-nostálgico Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2018); porém, o penúltimo longa, O Festival do Amor (2022), assim como as realizações anteriores, tenta se aproximar de suas melhores obras ao focar nas perturbações existenciais do escritor em crise de criação, hipocondríaco e neurótico. Reprisava elementos dos filmes anteriores: Roda Gigante (2017), Café Society (2016) e Homem Irracional (2015). Há também obras que ficaram bem aquém de sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações e neuroses do dia a dia. Principalmente, depois que começou sua fase europeia, ao filmar em lugares distantes de sua querida Nova Iorque, assim foi em Vicki e Cristina em Barcelona (2008), decepcionante sob todos os aspectos, salvando-se tão somente Penélope Cruz; O Sonho de Cassandra (2007), um pouco melhor, com alguma graça e finesse; Scoop- O Grande Furo (2006) teve certa dose de ironia, mas era muito irregular e sucumbiu.

Golpe de Sorte em Paris apresentar uma história com algum romantismo do mero acaso com pitadas de sorte na glamourosa Cidade Luz, mas depois descamba para situações de ciúmes desvairados, traição, culpa, obsessão e tragédia. Até poderia render bons frutos nestas temáticas das relações humanas e amores frustrados. Acontece que Allen está muito preguiçoso e deu mostras de pouca inspiração. A trama aborda a jovem Fanny (Lou de Laâge) caminhando pela rua completamente despreocupada, depois de sair do trabalho em uma galeria de arte parisiense. Do nada, há o encontro casual com o escritor Alain (Niels Schneider), um antigo colega dos velhos tempos de um colégio onde estudavam na mesma sala de aula. A declaração de amor do rapaz que jamais esqueceu a garota de outrora, deixa ela perturbada pela surpresa da paixão secreta guardada por todos estes anos. O golpe fortuito de sorte acontece no reencontro eventual, pensam eles, ou no que seria o início de um final improvável de uma mulher casada pelas circunstâncias.

Allen imprime pouca consistência num aparente mote simples, embora haja complexidade humana que toma vulto e persista nas relações de traição com culpa e arrependimento, inspirado aparentemente no best-seller Crime e Castigo, de Dostoiévski. A justiça aleatória é forçada, ao remeter para os hediondos desaparecimentos através de mortes realizadas pelos ditadores da América do Sul. A reviravolta macabra no enxuto roteiro se estabelece quando a mãe da moça (Valérie Lemercier), fanática pelos romances policiais de Simenon, investiga o genro, Jean (Melvil Poupaud), um marido apaixonado e obsessivo, rico, egoísta, e com seus negócios obscuros, começa a desconfiar da esposa pelas suas mudanças de comportamento. Aquele casal ideal com uma vida de futilidades e jantares pomposos vai se esboroando, embora realizados aparentemente em um apartamento de luxo. As caças do esposo na floresta na busca de cervos para serem abatidos é o prenúncio de algo que está para acontecer, embora a felicidade, dos dois, marido e mulher, refletissem uma paz e uma aparente serenidade dos dias como se fossem para sempre. O encantamento da protagonista pelo ex-colega coloca tudo em desarmonia, quando os rápidos encontros clandestinos aos poucos vão se tornando rotineiros. A trama toma contornos perigosos, quando Fanny entende que está vivendo uma vida da qual não gostaria na realidade. Abre margem para os conflitos, perde o controle da situação e a imprevisibilidade passa a ser constante no triângulo amoroso, captada pelas lentes do excelente diretor de fotografia Vittorio Storaro.

Algumas pistas para o espectador são indicadas ao optar pela ficção imaginária do trivial ou pelo realismo doentio, diante da sucessão de fatos que acontecem até o desfecho pouco convencional. Eis uma verdadeira ciranda de situações inusitadas que se avolumam com o desenrolar da história, marca registrada do cineasta que nunca passa indiferente e seus filmes sempre causam reações, por menor que sejam, diante de sua verve sarcástica inerente. São as relações intrincadas com submissões, num desdobramento que segue o ritmo de uma narrativa que mistura e recorre à temática de Jean Renoir em A Regra do Jogo (1939), como na caçada na floresta, a tradicional burguesia francesa da época (final da década de 30). Faz de um encontro fortuito em uma sessão de situações cotidianas, para uma transformação da vida numa prisão com ressentimentos em busca da eliminação do rival. O resultado de Golpe de Sorte em Paris tem um desfecho politicamente correto com um ranço de moralismo que beira os bons costumes. Decepciona no todo pela indolência, pois a reflexão sobre as relações de sedução, obsessão, submissão, investigação, culpa e perversidade não tem o impacto que se espera do cineasta, que muitas realizações propiciaram ao cinema na sua essência dos desejos que giravam com os vínculos afetivos diante das desilusões e suas neuroses, como típicas características da sensibilidade criativa do velho mestre.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

A Viúva Clicquot- A Mulher que Formou um Império

Uma Mulher Resistente

Obras cinematográficas sobre vinhos e espumantes já renderam bons filmes, quase sempre instigantes, e em muitas vezes, aguça por serem agradáveis, reveladores e com algum mistério. Tivemos a comédia dramática mesclada com suspense policial O Vinho Perfeito (2014), do diretor italiano Ferdinando Vicentini Orgnani, inspirado no romance O Mestre Margarida, do autor russo Mikhail Bulgakov. Um enredo voltado diretamente para uma história em relação aos regozijos e prazeres sensoriais dos vinhos. Outro filme marcante foi Sideways- Entre Umas e Outras (2004), de Alexander Payne, ao narrar a intimidade de dois amigos pelas fazendas vinícolas da Califórnia na despedida de solteiro de um deles, como forma de refúgio de todos os problemas: separação, trabalho, mulher e amor. Em Um Bom Ano (2006), de Ridley Scott, o protagonista é obrigado a voltar para França, onde foi educado na arte da elaboração para classificar as uvas por um tio, dono de um vinhedo no país, por conta de seu falecimento. Outra realização interessante foi Sobre Amigos, Amor e Vinhos (2014), de Éric Lavaine, que estimula pela elegância simples da empatia dos personagens com os espectadores, bem como pela maneira como é focada as difíceis relações humanas, principalmente ao tentar ser agradável com todos, pode soar falso, e até estourar como uma bolha inflada.

O diretor inglês Thomas Napper, de 54 anos, tem em sua filmografia o filme Jawbone- Último Assalto (2017), depois dirigiu alguns seriados pouco expressivos. Em seu segundo longa-metragem, A Viúva Clicquot- A Mulher que Formou um Império, baseado no livro A viúva Clicquot: A história de um império do champanhe e da mulher que o construiu, da historiadora Tilar J. Mazzeo, foi adaptado pelos roteiristas Erin Dignam e Christopher Monger, nesta coprodução dos EUA com a França, equivocadamente falada em inglês. Conta a história de Barbe-Nicole Ponsardin (Haley Bennett), uma viúva de 27 anos, que depois da morte prematura do lunático esposo, François (Tom Sturridge), admirador do dramaturgo e filósofo Voltaire sobre as relações amorosas. Dedicado obsessivamente ao plantio dos vinhedos com músicas clássicas para melhor desempenho na colheita. Ela sofre muitas agruras e problemas por não ser do gênero masculino nos anos de 1800, na França. Tem que enfrentar o sogro, Phillipe Cliquot (Ben Miles), que reflete uma sociedade atrasada e completamente arcaica de pensamentos e comportamentos retrógrados que agem com o instinto machista de métodos clássicos, e ainda as normas retrógradas daquela época. Uma das quais foi editada pelo todo soberano Napoleão Bonaparte, em 1803, que proibia a mulher estar à frente e comandar negócios comerciais.

Os franceses viviam uma série de conflitos que colocavam aquele grande império em xeque, liderado por Napoleão e seu exército poderoso contra uma série de alianças de nações europeias. Houve embargos comerciais contra a Holanda, a Rússia, e outros países europeus. Barbe-Nicole teve um bom aliado para furar o bloqueio e exportar, o agente de vendas, Muller (Chris Larkin), amigo próximo do marido com seu estilo de galã e conquistador. O realizador aborda o tema e retrata em uma narrativa direta e sem rodeios a protagonista que desrespeita as convenções legais ao assumir os negócios da família Clicquout, como uma mulher destemida, bem além do seu tempo, empoderada e com muita fibra, na companhia de sua filha pequena, mesmo sem ter formação empresarial e conhecimento técnico de empreendedorismo. Ainda que sem apoio dos familiares, passa a conduzir a empresa e toma decisões políticas e financeiras que desafiam uma sociedade composta basicamente de homens, que não admitiam, em hipótese alguma, serem comandados e receberem ordens do sexo oposto numa época de guerras, na qual as mulheres ficavam somente em casa. Tem como grande mérito ser transformadora para inquietar o espectador de maneira transgressora.

A grande dama mostrou talento ao revolucionar a indústria de Champagne, torna-se uma das primeiras empresárias do ramo no mundo com a marca Veuve Clicquot, grife das mais reconhecidas e premiadas do setor, sustentada por 250 anos de história. Sem medo de arriscar sua independência financeira, já que a pequena fortuna da família vinha da indústria de tecidos. A entrada no ramo vinícola ocorreu após se casar, cujo sogro, um patriarca acostumado com o ramo têxtil, decidiu investir no comércio de bebidas. Em meio ao caos das guerras napoleônicas, em pouco mais de uma década fez da pequena empresa familiar um negócio colossal. Transformou o produto que vendia apenas como um simples luxo, para torna-se uma lenda em seu país. Teve ousadia, foi corajosa e mostrou muita resiliência ao superar preconceitos e dificuldades em tempos sombrios. Embora seja um drama, a realização tem um tom com fio condutor documental, ao estampar com eficiência a condição da viúva como uma estratégia de marketing para obter ótimos resultados. Para isto, sobrou uma invejável força interior e uma resistente capacidade emocional naquela mãe e mulher, que nunca se esvaiu ou se desequilibrou, mesmo que os transtornos e entraves governamentais se multiplicassem, para não abdicar de uma esperança de resgate, como na cena final do julgamento no Tribunal.

A Viúva Clicquot mostra os efeitos sociais impactantes no contexto, na rara falta de solidariedade mesclada com o deboche arrogante do universo masculino, através de atitudes condenáveis a uma pessoa realmente afetada pelo infortúnio do destino quando perde o companheiro precocemente neste drama baseado em fatos reais. Revela o caráter provocado por uma casta influente contagiada por uma cultura de outrora desumana da sociedade dominada pelos homens, que se importa muito pouco com os anseios, a dor e a necessidade de dar uma oportunidade, pelo simples fato de ser mulher. Além da vida da personagem central com sua filha menor dependente e afastada do convívio familiar, tem ainda que conviver com a segregação de gênero devido à condição de não ter nascido homem. Um filme com um olhar feminino, com bons diálogos, em que as imagens magníficas das lentes de Caroline Champetier são reveladoras, com o auxílio sem invasão da bela trilha sonora de Bryce Dessner. O desenrolar da trama é interessante pela sensibilidade e delicadeza de focar a chaga maligna enraizada no seio de um universo preconceituoso deste tema universal sobre a condição humana feminina, embora em tempos de séculos passados, pela pujança estimulante de impor a vontade para uma liberdade inegociável. Napper não busca pieguismos baratos do qual se afasta com méritos. Os paradigmas humanos são resultantes de uma reflexão pontual, no qual faz com que as cenas tenham o caráter da luta feroz pela igualdade de gêneros como símbolo da resistência feminina.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O Último Pub

  

Solidariedade e Xenofobia

Defensor ferrenho e inarredável das causas sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas e pisoteadas pelo sistema, o diretor inglês Ken Loach é um humanista por natureza, e ganhou pela segunda vez a Palma de Ouro com, Eu, Daniel Blake (2016). Fez um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema previdenciário da Grã-Bretanha estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático naquele fabuloso drama social sobre a perversa reforma com mudanças radicais na Previdência Social. O título foi mais uma parceria com o roteirista indiano Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), com o qual arrebatou a primeira Palma de Ouro, À Procura de Eric (2009), entre tantas realizações da bem-sucedida e inseparável dupla. No seu penúltimo filme, uma espécie de continuidade da obra anterior, realizou o magnífico Você Não Estava Aqui (2019), abordou o tema da moda: o empreendedorismo. Mostrou que nem tudo soa como algo positivo ao se escancarar a falácia da servidão pelo falso milagre do negócio próprio como solução para o desemprego no mundo capitalista. Revela situações pouco divulgadas como a capacidade de idealizar, coordenar e realizar projetos e serviços. A iniciativa de implementar novos negócios ou mudanças com alterações na rotina do empregado envolve o risco. Os conflitos históricos entre direita e esquerda como os princípios inerentes de divergências vão ao encontro do serviço e sua importância como meio de sustento e pilar basilar de esteio do ser humano.

Anunciado pelo cineasta como seu último filme, O Último Pub, denominação do estabelecimento pelo proprietário de O Velho Carvalho (The Old Oak), que empresta o nome ao título original. Conta a história de TJ Ballantyne (Dave Turner), filho de mineiros ingleses que luta para manter seu negócio vivo no decadente vilarejo no condado de Durham, no nordeste da Inglaterra, onde as pessoas estão deixando aquelas terras após o fechamento das minas. O lugar começa a perder o encanto pela falta de oportunidades no trabalho. O protagonista é um homem simples, mas que preserva valores éticos e dignos com sua forma peculiar de ajudar ao próximo, após a chegada de refugiados sírios, se recusa a fazer denúncias, mesmo que coagido. Seu negócio fica ameaçado de fechar, recinto para quem trabalha afogar as mágoas para afastar a opressão. Também é uma tentativa de ressuscitar o espaço para o convívio com a arte. Conhece uma jovem síria, a fotógrafa Yara (Ebla Mari), que mora com a mãe, pois o pai está preso pelo regime do ditador Bashar al-Assad, presidente da Síria, por motivos políticos. Uma amizade fraternal inesperada nasce entre os dois, apesar das tensões e preconceitos que pesam na vila, como na cena comovente do cãozinho que faz companhia na solidão ao personagem central, que acaba se envolvendo num ataque brutal dos pitbulls de uma milícia de jovens fascistas.

Os diálogos são bem construídos nesta narrativa de puro realismo dramático, através da estupenda fotografia estática de Robbie Ryan. Eis um retrato da dignidade humana com atos e gestos do dia a dia de solidariedade em contraste com situações extremas de xenofobia abjeta, principalmente dos homens em sua maioria com atitudes recorrentes perversas e racistas. Ao mesmo tempo, as mulheres se posicionam mais solidárias e compreensivas, num olhar feminista de grandeza e compreensão, no enxuto roteiro de Paul Laverty, novamente presente na velha parceria com o diretor. A valoração moral e ética é colocada em xeque sobre o trabalho para dignificar o homem e não humilhá-lo como forma de destruição dos alicerces do microcosmo familiar em consonância com a imigração forçada. É simbólica a cena em que os personagens visitam a catedral, construída pelos trabalhadores no século XIX, como um passeio cultural de volta ao passado. Porém, causa constrangimento e empatia no espectador atento às coisas do cotidiano a triste saga dos refugiados pela sobrevivência e luta pelo sustento dos filhos, como honra inarredável. Há algumas semelhanças com o drama Bagdá Está em Mim (2021), do diretor iraquiano Samir, que aborda com profundidade temas como os tabus da sociedade árabe, a religião, o machismo de seu povo, a homofobia explícita, os aspectos culturais e principalmente a política do passado ainda reinante no Iraque. Fez um retrato alegórico fiel e com tintas fortes do regime arbitrário, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente por um grupo de imigrantes que transformam o café londrino Abu Nawas num refúgio de iraquianos que já não têm mais espaço em seu país. Buscam preservar com galhardia sua cultura em meio a discutíveis valores ocidentais.

O veterano Loach, de 88 anos, demonstra vigor na condução da sua realização, embora sombria e sem grandes perspectivas para um olhar mais promissor nas relações entre imigrantes e nativos, como vemos na cena em que Yara tem sua máquina fotográfica partida depois de ser arrancada à força por um jovem bêbado, que representa o desemprego, grita diversos impropérios contra os refugiados sírios naquela comunidade de ex-mineiros. Ali se estabelece o conflito entre classes, as vítimas da barbárie da civil na Síria com a guerra social dos proprietários, trabalhadores e desempregados ingleses, nesta temática universal abordada com sensibilidade sobre a intensidade da correria diária para o sustento. O desespero toma conta do dono do pub, quando fica num beco sem saída, vem a notícia da morte libertadora no exterior. No funeral, toda a comunidade vem prestar condolências de todas as matizes e nacionalidades. Enfatiza que não se pode desistir nunca de mudar o comportamento hostil das pessoas, quando parte dos agressores ao pub reconsideram suas condutas. O ato final como elemento pacificador simboliza e faz refletir sobre a nossa existência e o amor ao próximo como humanismo incomum como uma luz no futuro. As imagens do epílogo inusitado são apropriadas e desmistificadoras na tela como redenção catártica.

Cria-se com extrema magia cinematográfica um doloroso painel de improbabilidades, com contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas da causa pela sobrevivência. Há uma construção rica de elementos sem retóricas, afastando as grandes armadilhas que poderiam levar para uma história apelativa. Um drama intenso sobre a perversidade xenofóbica imperialista que enobrece o cinema. Um enredo emocionante sobre os dissabores dos agentes honestos e com fibra de resistência, que leva para o desequilíbrio dos que têm menos poder de reivindicação na sociedade. O conflito é fruto de um sistema instável e selvagem que vira as costas para os menos favorecidos refugiados quando estes precisam, para lançar um olhar reflexivo, através de tintas bem marcantes sobre os poucos menos favorecidos pelas circunstâncias. Um filme eloquente sobre a dignidade e a ética de uns, na qual as guerras, a desesperança pelas relações sociais, o ódio, o identitarismo com seu conjunto de características próprias. A solidariedade na luta de classes, embora o desfecho seja de libertação diante das nefastas manchas por condutas reprováveis e desumanas dos racistas, com um viés arrasador, melancólico e auspicioso. É significativa a importância dada às palavras nos diálogos e as imagens reveladoras, sem maniqueísmo, nesta obra admirável no conteúdo e fabulosa no contexto. Ken Loach encerra sua carreira com chave de ouro, embora haja a esperança de que a promessa não se cumpra.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Motel Destino

 

Triângulo Amoroso

Karim Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as perdas, a opressão feminina, o abandono e os encontros inusitados. Estas temáticas são encontradas no bom e instigante Madame Satã (2001); no excelente O Céu de Suely (2006), no qual brilha com o drama sobre a classe pobre brasileira, quando a protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro para comprar passagens de ônibus, ir para bem longe e iniciar uma nova vida com seu filho; em codireção com Marcelo Gomes realizou o controvertido Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), em que o foco está na saudade da esposa e da família deixada para trás; em O Abismo Prateado (2011), retrata o abandono e a epopeia para encontrar o caminho de volta para a lucidez, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo inexplicável com o rompimento do vínculo do amor; já no magnífico Praia do Futuro (2014), tem um olhar com maturidade sobre a relação homoafetiva pelo vínculo amoroso estabelecido entre um salva-vidas com um turista alemão, em uma estrutura impecável e sem superficialidades, diante de lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um admirável resultado inspirado no cinema de Rainer Werner Fassbinder.

Vencedor na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, e indicado para representar o Brasil no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2020, A Vida Invisível (2019), seu filme mais profundo, equilibrado e abrangente, por ser complexo e eloquente na meditação sobre o conservadorismo familiar, o castramento da liberdade individual pela opressão, o estupro conjugal como forma de propriedade do corpo da mulher pelo marido e a procriação como o fim, sufocante e angustiante em sua plenitude, torna-se a obra-prima do diretor. Depois do documentário Marinheiros das Montanhas (2021) e o primeiro filme de ficção filmado em inglês Firebrand (2023), retorna com Motel Destino, com o roteiro assinado por Wislan Esmeraldo e Maurício Zacharias, ambientado em um estabelecimento de beira de estrada no fascinante litoral cearense, através da bela fotografia da francesa Hélène Louvart. Representou o Brasil no Festival de Cannes, mas sem êxito na busca da Palma de Ouro, embora aplaudido pela plateia por 12 minutos. A trama gira em torno de um triângulo com muito erotismo, boas porções de amor e muito sexo apimentado. Heraldo (Iago Xavier) é um rapaz de origem humilde que chega ao motel de beira de estrada, que dá título ao longa-metragem, em fuga do crime organizado, no qual uma facção poderosa está em seu encalço. Busca novos ares e, antes de tudo, sua sobrevivência, ao arrumar emprego ali. Tudo vai mudar naquele local aparentemente tranquilo e de um cotidiano rotineiro de clientes em busca apenas do prazer e fantasias sexuais.

O destino transforma radicalmente a vida do casal dono do estabelecimento, que é administrado pelo temperamental Elias (Fábio Assunção), um homem bruto, contraditório, possessivo e dominador, que tem na sua fogosa esposa Dayana (Nataly Rocha), uma espécie de propriedade. Às vezes, submissa; em outras, parece uma mulher liberal pela rebeldia. O realizador conta a história com certa crueza para mostrar um realismo naquele palco onde as crônicas da realidade brasileira se cruzam e se entrelaçam. Com tintas fortes, retrata o jovem tentando fugir de um ambiente hostil daquela gangue que mata por muito pouco. Logo, a curiosidade de Dayana desperta, e um sentimento de liberdade toma conta de seus sentimentos e desejos frustrados que sempre foram abafados pelo marido. Uma perigosa dança de amor e sedução inicia com um jogo de poder e aspirações mais altos entre ela e o fugitivo se estabelecem. O diretor retoma a temática da opressão feminina, assim como abordou, principalmente, em O Céu de Suely e A Vida Invisível. Outros dois temas recorrentes como a solidão e as perdas, também abordadas em sua filmografia, estão presentes no meio desse cenário para um plano arrojado de independência que começa a ser perpetrado. Eis o intimismo de uma juventude nordestina que tiveram seus sonhos de voos mais altos reprimidos por uma elite conservadora que controla sistematicamente pela ausência de uma consciência equânime de classes. A insubordinação e o conflito soam como elementos para uma saída improvável, mas possível até certo ponto.

O diretor lança tintas fortes e dá uma virada no enxuto roteiro. A traição, a culpa e a fuga estão presentes neste enredo conduzido com astúcia ao ir direto na construção de uma trajetória entrecortada por uma festinha chamada de “baguncinha” na beira de uma piscina, regada por bebidas e churrasco. São os destinos inversos traçados pelo acaso, fruto da intolerância que se entrecruzam com resultados adversos por caprichos hostis arraigados nos ditames truculentos de uma época de costumes machistas, ainda remanescentes. Há uma exposição de fragilidades da mulher vitimada pelo absurdo advindo de hábitos impiedosos ainda incrustados no microcosmo familiar, como da personagem que tenta se reencontrar com um novo amor, embora clandestino. O desfecho trará novas luzes para um futuro dela e os objetivos do rapaz que quer ir embora para São Paulo, que não foram totalmente derrotados, mesmo que a distância possa ser um elemento de frustração. Ainda há uma luz no fim do túnel como um sopro de resgate pela dignidade quando revelada de maneira mesmo convencional pela morte abrupta, no epílogo redentor da liberdade revestido de algum humanismo como ingrediente essencial, após as dores, medos e ansiedades contumazes. A aniquiladora submissão mesclada com a busca da emancipação presente somando-se às dores pretéritas que ficarão para trás.

O cineasta flutua e dialoga com mais de um gênero, indo do noir até a pornochanchada, passando pelo suspense, ainda que seja menor pelo que já realizou. A reflexão é complexa ao passar pelo medo, a submissão, a liberdade, as fantasias, o erotismo, para chegar nas fragilidades dos amantes. O sonho do futuro soa como estímulo para a iniciativa da incômoda realidade autônoma, após os transtornos dos percalços oferecidos pelo destino. As perdas são reflexos de um contexto de diferenças sociais, mas que vão se encaixar e tornar uma relação pouco consistente, já com a presença de um dos personagens como símbolo do passado na ausência transformadora daquela rotina de animais espalhados pelas paredes de pintura surreal dando asas à imaginação naquele aparato pirotécnico. São causas e contrastes por extensão para subir o grau e intensificar o sensorial. O tempo salta para uma outra realidade, quando se afasta do ambiente diário dos sons de gritos, gemidos e sussurros, para ingressar na sugestão da emoção motivadora existencial, diante da sensação de vazio e isolamento. Uma abordagem intensa com uma atmosfera sombria sobre a natureza do universo feminino e sua luta diária no meio machista, faz com que o drama regido pela tensão entre a violência e o prazer tome contornos para um desfecho duro, mas promissor, após o confinamento dos personagens ecoa como uma alegoria de libertação do enclausuramento.