Solidariedade e Xenofobia
Defensor ferrenho e inarredável das causas sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas e pisoteadas pelo sistema, o diretor inglês Ken Loach é um humanista por natureza, e ganhou pela segunda vez a Palma de Ouro com, Eu, Daniel Blake (2016). Fez um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema previdenciário da Grã-Bretanha estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático naquele fabuloso drama social sobre a perversa reforma com mudanças radicais na Previdência Social. O título foi mais uma parceria com o roteirista indiano Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), com o qual arrebatou a primeira Palma de Ouro, À Procura de Eric (2009), entre tantas realizações da bem-sucedida e inseparável dupla. No seu penúltimo filme, uma espécie de continuidade da obra anterior, realizou o magnífico Você Não Estava Aqui (2019), abordou o tema da moda: o empreendedorismo. Mostrou que nem tudo soa como algo positivo ao se escancarar a falácia da servidão pelo falso milagre do negócio próprio como solução para o desemprego no mundo capitalista. Revela situações pouco divulgadas como a capacidade de idealizar, coordenar e realizar projetos e serviços. A iniciativa de implementar novos negócios ou mudanças com alterações na rotina do empregado envolve o risco. Os conflitos históricos entre direita e esquerda como os princípios inerentes de divergências vão ao encontro do serviço e sua importância como meio de sustento e pilar basilar de esteio do ser humano.
Anunciado pelo cineasta como seu último filme, O Último Pub, denominação do estabelecimento pelo proprietário de O Velho Carvalho (The Old Oak), que empresta o nome ao título original. Conta a história de TJ Ballantyne (Dave Turner), filho de mineiros ingleses que luta para manter seu negócio vivo no decadente vilarejo no condado de Durham, no nordeste da Inglaterra, onde as pessoas estão deixando aquelas terras após o fechamento das minas. O lugar começa a perder o encanto pela falta de oportunidades no trabalho. O protagonista é um homem simples, mas que preserva valores éticos e dignos com sua forma peculiar de ajudar ao próximo, após a chegada de refugiados sírios, se recusa a fazer denúncias, mesmo que coagido. Seu negócio fica ameaçado de fechar, recinto para quem trabalha afogar as mágoas para afastar a opressão. Também é uma tentativa de ressuscitar o espaço para o convívio com a arte. Conhece uma jovem síria, a fotógrafa Yara (Ebla Mari), que mora com a mãe, pois o pai está preso pelo regime do ditador Bashar al-Assad, presidente da Síria, por motivos políticos. Uma amizade fraternal inesperada nasce entre os dois, apesar das tensões e preconceitos que pesam na vila, como na cena comovente do cãozinho que faz companhia na solidão ao personagem central, que acaba se envolvendo num ataque brutal dos pitbulls de uma milícia de jovens fascistas.
Os diálogos são bem construídos nesta narrativa de puro realismo dramático, através da estupenda fotografia estática de Robbie Ryan. Eis um retrato da dignidade humana com atos e gestos do dia a dia de solidariedade em contraste com situações extremas de xenofobia abjeta, principalmente dos homens em sua maioria com atitudes recorrentes perversas e racistas. Ao mesmo tempo, as mulheres se posicionam mais solidárias e compreensivas, num olhar feminista de grandeza e compreensão, no enxuto roteiro de Paul Laverty, novamente presente na velha parceria com o diretor. A valoração moral e ética é colocada em xeque sobre o trabalho para dignificar o homem e não humilhá-lo como forma de destruição dos alicerces do microcosmo familiar em consonância com a imigração forçada. É simbólica a cena em que os personagens visitam a catedral, construída pelos trabalhadores no século XIX, como um passeio cultural de volta ao passado. Porém, causa constrangimento e empatia no espectador atento às coisas do cotidiano a triste saga dos refugiados pela sobrevivência e luta pelo sustento dos filhos, como honra inarredável. Há algumas semelhanças com o drama Bagdá Está em Mim (2021), do diretor iraquiano Samir, que aborda com profundidade temas como os tabus da sociedade árabe, a religião, o machismo de seu povo, a homofobia explícita, os aspectos culturais e principalmente a política do passado ainda reinante no Iraque. Fez um retrato alegórico fiel e com tintas fortes do regime arbitrário, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente por um grupo de imigrantes que transformam o café londrino Abu Nawas num refúgio de iraquianos que já não têm mais espaço em seu país. Buscam preservar com galhardia sua cultura em meio a discutíveis valores ocidentais.
O veterano Loach, de 88 anos, demonstra vigor na condução da sua realização, embora sombria e sem grandes perspectivas para um olhar mais promissor nas relações entre imigrantes e nativos, como vemos na cena em que Yara tem sua máquina fotográfica partida depois de ser arrancada à força por um jovem bêbado, que representa o desemprego, grita diversos impropérios contra os refugiados sírios naquela comunidade de ex-mineiros. Ali se estabelece o conflito entre classes, as vítimas da barbárie da civil na Síria com a guerra social dos proprietários, trabalhadores e desempregados ingleses, nesta temática universal abordada com sensibilidade sobre a intensidade da correria diária para o sustento. O desespero toma conta do dono do pub, quando fica num beco sem saída, vem a notícia da morte libertadora no exterior. No funeral, toda a comunidade vem prestar condolências de todas as matizes e nacionalidades. Enfatiza que não se pode desistir nunca de mudar o comportamento hostil das pessoas, quando parte dos agressores ao pub reconsideram suas condutas. O ato final como elemento pacificador simboliza e faz refletir sobre a nossa existência e o amor ao próximo como humanismo incomum como uma luz no futuro. As imagens do epílogo inusitado são apropriadas e desmistificadoras na tela como redenção catártica.
Cria-se com extrema magia cinematográfica um doloroso painel de improbabilidades, com contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas da causa pela sobrevivência. Há uma construção rica de elementos sem retóricas, afastando as grandes armadilhas que poderiam levar para uma história apelativa. Um drama intenso sobre a perversidade xenofóbica imperialista que enobrece o cinema. Um enredo emocionante sobre os dissabores dos agentes honestos e com fibra de resistência, que leva para o desequilíbrio dos que têm menos poder de reivindicação na sociedade. O conflito é fruto de um sistema instável e selvagem que vira as costas para os menos favorecidos refugiados quando estes precisam, para lançar um olhar reflexivo, através de tintas bem marcantes sobre os poucos menos favorecidos pelas circunstâncias. Um filme eloquente sobre a dignidade e a ética de uns, na qual as guerras, a desesperança pelas relações sociais, o ódio, o identitarismo com seu conjunto de características próprias. A solidariedade na luta de classes, embora o desfecho seja de libertação diante das nefastas manchas por condutas reprováveis e desumanas dos racistas, com um viés arrasador, melancólico e auspicioso. É significativa a importância dada às palavras nos diálogos e as imagens reveladoras, sem maniqueísmo, nesta obra admirável no conteúdo e fabulosa no contexto. Ken Loach encerra sua carreira com chave de ouro, embora haja a esperança de que a promessa não se cumpra.
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