Resistência à
Ditadura
Com um viés sombrio do destino pelas fragilidades
democráticas que cercam o Brasil, o filme Marighella
chegou aos cinemas 52 anos após o assassinato do revolucionário baiano, neto de
escravos, para abordar as violentas ações e reações durante a ditadura militar
imposta em 1964. A
estreia se dá dois anos após sua previsão inicial e quase quatro anos depois de
concluído, por entraves burocráticos de liberação de recursos junto à ANCINE para
distribuição, que soaram como boicote e censura prévia. Propõe um amplo debate
sobre as liberdades cerceadas durante o famigerado período dos anos de chumbo. Carlos
Marighella (Seu Jorge- de impecável atuação pelo domínio de postura e imposição
correta de sua voz potente) era poeta, escritor e deputado federal pelo Partido
Comunista Brasileiro, cofundador da Aliança Libertadora Nacional, em 1967, um
dos principais grupos de resistência que praticava oposição armada ao regime. Foi
considerado pelo governo autoritário da época como o inimigo número 1 do país.
Retrata entre tantas tropelias um grande assalto em um trem na cidade de São
Paulo, em 1968, para obter um forte carregamento de armas, além da prática de
assaltos a bancos para saldar os custos financeiros inerentes e viver na
clandestinidade.
O ator Wagner Moura, celebrizado no papel do Capitão
Nascimento, nos filmes Tropa de Elite
(2007) e Tropa de Elite 2 (2010), de
José Padilha, faz sua estreia como diretor e mostra alguns méritos por trás das
câmeras, como escalar um bom elenco, câmera na mão trêmula em momentos tensos com
aproximação em plano fechado dos personagens onde se percebe até a respiração,
ao melhor estilo de Padilha, planos-sequência de tirar o fôlego, silêncio e
olhares tensos em outras cenas bem conduzidas, além das imagens moderadas de
torturas nos calabouços. Comete alguns excessos, como a espetacularização de tiros
em demasia, como nos velhos faroestes onde as balas não acabam nunca, além de
uma tênue glamourização do biografado. Com um roteiro instigante assinado por
Moura e Felipe Braga, o filme foi baseado no livro Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, do jornalista
Mário Magalhães, concentrou o enredo entre os anos de 1964 a 1969, ao som da
canção de protesto Pequena Memória para
um Tempo Sem Memória, do inesquecível Gonzaguinha, mesclada em outras cenas
com versos da música Monólogo ao Pé do
Ouvido, de Chico Science e Nação Zumbi, na qual são lançadas odes a Zapata,
Zumbi, Antônio Conselheiro e Sandino, bem como outras canções nacionais, em
versões hip hop, para comentar a miséria.
As atrocidades da luta armada são marcantes na trama, de
ambas as partes, com o foco de alertar o espectador, principalmente os jovens
que não viveram aquele período de exceção, e o futuro incerto de todos carregados
pela intolerância política de tempos nebulosos, ao colocar em lados opostos
membros da família brasileira, contrapondo ativistas de esquerda e os relatos
sinceros e destemidos sobre os rachas existentes no âmbito da própria
organização, com a direita e seus defensores ferozes de um regime autocrático. Esta
cinebiografia que deriva para a ação e o suspense sobre a história de um
ativista que se intitula um herói, ou anti-herói, do patriota que diz amar sua
nação. “Um homem que não teve tempo para ter medo”, como ele mesmo assevera, ou
ao responder “eu sou brasileiro”, do questionamento de um jornalista francês
sobre seu perfil de inspiração, se ele era maoísta, trotskista ou leninista.
A truculência era uma marca recorrente dos que defendiam o
regime, como por exemplo, a inserção de um manifesto no rádio com a conivência
de seu responsável (Herson Capri) que irá causar repulsa nas forças
governistas, onde o delegado Luciano (Bruno Gagliasso- pífia atuação num papel
caricato e sem autenticidade, afundou no estereótipo), numa reedição baseada no
frio e temido delegado Fleury do Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS), que liderou a caçada aos opositores e irá partir para uma ofensiva sem
limites com imagens reveladoras para provocar a plateia sobre os acontecimentos
históricos que ficaram catalogados naquele ciclo discricionário. Seus alvos são,
além de Marighella, Branco que foi inspirado em Joaquim Câmara
Ferreira, conhecido como o Comandante Toledo (Luiz Carlos
Vasconcelos- excelente interpretação), também os jovens guerrilheiros Bella
(Bella Camero), Humberto (Humberto Carrão), Jorge (Jorge Paz), Frei Henrique (Henrique Vieira), além de investigar
o garoto Carlinhos, filho do protagonista que reside na Bahia.
Embora tenha uma linha própria em sua estética, há
similitude em conteúdo e proposta com as ousadas minisséries Anos Durados (1986) e Anos
Rebeldes (1992), ambas do novelista Gilberto Braga, e com o extraordinário
longa-metragem Pra Frente Brasil
(1982), de Roberto Farias. O sequestro do embaixador dos EUA também foi
enfatizado no filme O Que É Isso,
Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, baseado no livro homônimo do
jornalista Fernando Gabeira, que mostra a luta armada contra a ditadura militar
no final da década de 60, após a publicação do AI-5. O cenário criado é fiel à
época com os antigos carros Fuscas e Vemaguetes, para uma narrativa em tom
intenso, seco e direto com as artimanhas adequadas, retrata um painel do
flagelo humano decorrente das angústias políticas de dúvidas e aflições
constantes. Há tensão entre polícia e revolucionários, o amor fraternal entre o
protagonista e seu filho no mar em um dos raros momentos de sensibilidade que
intercalam a efervescente situação para atingir o clímax, com cenas de
construções de personagens fortes, mas psicologicamente abalados. Moura lança
um olhar de preocupação com as iminentes vulnerabilidades de nosso sistema
político corroído por um conservadorismo que pode desconstruir e levar ao
retrocesso institucional, sem cair no maniqueísmo contumaz de algumas
realizações pouco consistentes
Marighella é uma
realização que contém densidade sobre um ciclo manchado de sangue por um
sistema opressor, em que a reconstrução das vidas pela perda da própria identidade
decorre do devastador estigma do nefando golpe que deixaram registradas as
cicatrizes com suas profundas marcas duradouras, mencionadas no prólogo. Ainda
que haja algumas derrapadas que beiram a patriotadas, como nos pós-créditos em
que o Hino Nacional é cantado pelos personagens como uma desatinada louvação
religiosa. O filme não é conclusivo sobre o biografado e os rumos que a
política brasileira seguiu, mas há uma proposta ambiciosa sobre a engrenagem
que envolve os meandros intrínsecos e extrínsecos, como a participação dos EUA em
1964, e o destino do Brasil como um Estado democrático. A abordagem pontua as dúvidas
preocupantes que rondam este painel difuso na sua essência. Sem ser
folhetinesco como apregoa a parcela conservadora, embora haja a identificação
pelo engajamento do realizador, é um relato significativo e relevante por seu
aspecto histórico de um convalescente regime vergado da democracia para o
perigoso estado de exceção, sob o manto do autoritarismo do passado, para
reflexão do presente, de uma nação debilitada institucionalmente.