sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2021)

Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Já é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos nos cinemas e nas plataformas de streaming em 2021 devido à pandemia. Também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Meu Pai, de Florian Zeller (foto acima);

02. Druk- Mais uma Rodada, de Thomas Vinterberg;

03. Ataque dos Cães, de Jane Campion;

04. Bagdá Vive em Mim, de Samir;

05. Vera Sonha com o Mar, de Kaltrina Krasniqi;

06. Nomadland, de Chloé Zhao;

07. Pieces of a Woman, de Kornél Mundruczó;

08. Jogo do Poder, de Costa-Gavras;

09. Agente Duplo, de Maite Alberdi;

10. O Tigre Branco, de Ramin Bahrami.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

 - De Volta Para Casa, de Wayne Wang;

- Marighella, de Wagner Moura;

- A Mão de Deus, de Paulo Sorrentino;

- Minha Irmã, de VéroniqueRaymond e Stéphanie Chuat;

- Relatos do Mundo, de Paul Greengrass.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A Mão de Deus

 

Tributo Felliniano

Paulo Sorrentino obteve reconhecimento internacional com Le conseguenze dell'amore (2004), porém ao ganhar diversos prêmios e concorrer à Palma de Ouro ficou conhecido por Il Divo (2008), uma apreciável cinebiografia do ex-primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti (1919- 2013). No filme A Grande Beleza (2013), possivelmente sua obra-prima, realizou um drama de reverência à beleza estonteante e os encantos de amor para Roma, a cidade eterna que foi a protagonista em Roma de Fellini (1972) e A Doce Vida (1960), ambos de Federico Fellini. Tinha um cenário no terraço luxuoso com vista para o Coliseu, onde a elite estava reunida para falar de superficialidades: um empresário que vende brinquedos para a China, a rica escritora engajada, um colecionador de artes e uma editora anã. Falavam deles mesmos e as conquistas pessoais, os projetos e a situação do país, bem como a ironia aos turistas. Depois veio A Juventude (2016), que buscava a construção de seu personagem central resgatado no universo felliniano do clássico Oito e Meio (1963), na caracterização com o visual de Marcello Mastroianni. Já em Silvio e os Outros (2018), aborda o ex-primeiro- ministro italiano Silvio Berlusconi sentindo a ausência do poder ao ser derrotado na última eleição por 25 mil votos, veio integrar a oposição e está bastante incomodado com o ocaso momentâneo.

Agora chega pela Netflix o magnífico A Mão de Deus, indicado ao Oscar de 2022 pela Itália, venceu o Grande Prêmio do Júri no 78º. Festival de Veneza. É uma espécie de homenagem ao gênio Fellini que tanto é admirado e reverenciado pelo realizador em todos seus filmes. Conta a história do menino Fabietto (Filippo Scotti), na conturbada Nápoles dos anos 1980, foi inspirado nas experiências pessoais da adolescência de Sorrentino. Soa como traços marcantes de uma autobiografia repleta de alegrias inesperadas, como o anúncio e a tão aguardada chegada do ídolo do futebol argentino Diego Armando Maradona, que trará esperanças para o Napoli, clube de amor e paixão da família retratada no longa-metragem. O título do filme é uma alusão ao gol com a mão na final da Copa do Mundo de 1986, ocorrida no México, entre Argentina e Inglaterra, que seria o simbolismo da vingança dos argentinos aos britânicos pela fatídica Guerra das Malvinas. Há várias referências ao atleta entre 1984 e 1991, que ocupa considerável parcela do enredo para entrelaçar com a carreira do craque tachado de "o melhor jogador de futebol de todos os tempos” no prólogo, apresentando a fase da inocência que acaba desarmando uma situação desastrosa familiar. A narrativa poética mostra a veneração do protagonista pelo ídolo que irá impedir uma tragédia surpreendente ainda maior, diante do circunstancial envenenamento por monóxido de carbono da lareira, caso tivesse ficado em casa com os pais (Toni Servillo e Teresa Saponangelo).

A estrutura da realização mostra momentos da vida do adolescente que encontra um amigo contrabandista inesperado num dia de jogo; as reuniões de família com brigas, lágrimas, traições; perda da virgindade com a transição para a fase adulta; o desejo de ser cineasta por tomar suas próprias decisões, mesmo sendo influenciado por todos os acontecimentos inerentes de sua vida. O cineasta cria nesta comédia dramática seu painel com o jovem ingênuo, e observa várias personalidades excêntricas locais que se comportam de forma absurda, onde a bizarrice é uma constante. Inspiração esta buscada no inesquecível Amarcord (1973), do mestre Fellini. Começa com a tia Patrizia (Luisa Ranieri) visitando o misterioso pequeno monge, depois é bolinada e desperta a fúria do marido ciumento, toma banho de sol pelada em público, provoca o sobrinho que a vê como sua musa, mas pela ousadia e estar muito à frente do tempo acaba num hospício, possivelmente internada como louca pela sociedade machista. Tem também a matriarca desbocada, a vizinha baronesa e seus invasivos palpites, o pai comunista, a mãe que gosta de fazer suas peraltices com os parentes e telefonar para a vizinha se dizendo assistente do diretor Zefirelli, o irmão (Marlon Joubert) que troca de namorada como de camisa, o velho tio (Renato Carpentieri) que nutre uma paixão incondicional por Maradona, o modo desprezível e cruel dos familiares rindo do namorado da tia, um sujeito manco e que usa um microfone de laringe para falar.

Se em A Grande Beleza era uma gratidão à Itália com a Roma sagrada e profana mostrada, sob os auspícios da bela trilha sonora erudita, com temas baseados em músicas religiosas, passando pela contemporânea e desembocando num som eletrônico, tendo as assinaturas de Arvo Pärt, Vladimir Mastynov, Zbigniew Preisner, John Tavener e Henryk Górecki. Em A Mão de Deus foca no destino que desempenha um papel fundamental para o futuro do protagonista, de Nápoles para Roma, através de uma história intensa e muito pessoal do realizador, pelo personagem com seus próprios pensamentos à procura de um significado para seus desejos e motivações existenciais. Com uma estética primorosa que transita de uma alegoria extravagante para um poema lírico com mares, casas, cenografias maravilhosas e uma cuidadosa locação de objetos e figurinos em momentos fascinantes de uma fotografia ímpar. A descrição sem excessos está convincente na estruturação de seus personagens resgatados do universo felliniano. Reacende uma enlouquecedora paixão por um ídolo, diante das lembranças do presente remetendo para o passado, em que foi avivado depois da agonia da descoberta na razão do rompimento por novos horizontes.

Eis um passeio cultural e histórico nesta viagem de regresso a Nápoles por Sorrentino, vinte anos depois, com o glamour ao melhor estilo do mestre inspirador, como o fabuloso Oito e Meio (1963), bem caracterizado na obra. O passado de incertezas encontrará respaldo na morte trágica que chegará para separar uma trajetória. Há meditação sincera sobre o avanço da idade com leveza sutil, diante dos percalços. Uma redenção diante de uma situação de amor inocente que ficou para trás irremediavelmente neste retrato fiel do reencontro de um homem com seu passado e suas memórias com o sentido prazeroso de viver, diante de suas divagações reflexivas. A sensibilidade conduz para absorver os infortúnios e buscar a retomada dos encantos que a vida oferece, numa narrativa com tom de sátira sarcástica sobre o painel familiar excêntrico e tragicômico com situações surreais. É comovente e arrebatador no aspecto psicológico construído com primazia sobre o ser humano depurando as angústias num epílogo de amor em êxtase, apontando como referência ao título numa consequente suavidade. Provoca estímulos pela emoção e a crença de que o cinema está em flagrante resistência para manter a chama acesa pela efervescência cultural inesgotável da arte que permanecerá como legado.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Ataque dos Cães

Desconstrução dos Mitos

A cineasta Jane Campion, aos 67 anos, realiza com grandes méritos seu primeiro western esbanjando sobriedade, formalismo e firmeza neste admirável Ataque dos Cães. Concorrerá e é forte candidato em doze categorias ao Oscar de 2022, entre elas: melhor filme, direção (ganhou neste ano o Leão de Prata no Festival de Veneza), ator, ator coadjuvante, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, fotografia e trilha sonora, está disponível na Netflix. É o retorno da festejada diretora doze anos depois de seu último longa-metragem, Brilho de Uma Paixão (2009). Baseado no livro de Thomas Savage, publicado em 1967, no qual ela escreveu o roteiro que se passa no ano de 1925, ambientado em Montana, um Estado que fica ao oeste dos EUA, foi rodado nas lindas paisagens dos verdes prados da Nova Zelândia, país de origem da realizadora. Cria com sensibilidade e muita sutileza personagens fortes e marcantes numa história de faroeste crepuscular para desconstrução do mitológico caubói macho alfa invasivo e agressivo. Tem em sua filmografia vários sucessos como a série policial Top of the Lake (2013-2017), Cada Um Com Seu Cinema (2007), Retrato de Uma Mulher (1996), e sua obra mais aclamada ainda é O Piano (1993), quando ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e recebeu o Oscar de Melhor Roteiro Original.

A história é contada em atos com bons artifícios conhecidos no Velho Oeste, porém sem abusar de perseguições recorrentes em obras menores, opta pela ausência de tiroteios forçados ou balas perdidas por tudo quanto é canto e lugares inimagináveis. Há na trilha sonora cativante do guitarrista e compositor britânico da banda Radiohead, Jonny Greenwood, sendo executada com perfeição, como uma mola mestra condutora vai ditando o clímax de suspense das cenas. Os cenários são grandiosos e caracterizadores do gênero, onde os cavalos estão sincronizados pelas frondosas árvores, montanhas, rios, ranchos, neve e de um pôr do sol esplêndido e por vezes revelador de um novo dia, magistralmente captados nas lentes da fotógrafa australiana Ari Wegner. Cada detalhe, movimento da câmera, luz, fotografia e o figurino estão harmonicamente distribuídos com primazia e colocados em seus lugares exatos, pontuais e com fidelidade. Segue o melhor estilo estético dos grandes clássicos. Lembra o inesquecível Os Imperdoáveis (1992), de e com Clint Eastwood; remete para Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks e Arthur Rosson; como não poderia deixar de ter referências em Rastros de Ódio (1956) e No Tempo das Diligências (1939), ambos do genial John Ford, com construções fantásticas de personagens; mas como esquecer Meu Ódio Será Sua Herança (1969), de Sam Peckinpah; ou Os Brutos Também Amam (1953), de George Stevens; e mais recentemente Bravura Indômita (2010), dos irmãos Ethan e Joel Coen, e Relatos do Mundo (2020), de Paul Greengrass.

A narrativa é bem urdida sobre Phil (Benedict Cumberbatch- a melhor interpretação de sua carreira) e George (Jesse Plemons- discreto e eficiente no papel), dois irmãos ricos e proprietários da maior fazenda da região. Enquanto o primeiro é um homem duro, cruel, homofóbico e arrogante, ainda que seja formado em filosofia, leva a vida de vaqueiro por opção, inspirado no ídolo do passado Bronco Henry, que exerce uma figura quase que paterna, mas com ilações de uma relação secreta mais íntima. Já o segundo é uma pessoa gentil, quieta, educada, que não demonstra muito interesse nesta vida de cowboy, embora esteja mais preocupado com a família, preza a justiça. A relação dos dois azeda de vez quando George se casa com a viúva alcoólatra, Rose (Kirsten Dunst), por quem o irmão mais novo nutre um desprezo pelo filho dela, ao humilhar Peter (Kodi Smit-McPhee). Faz brincadeiras grosseiras àquele jovem que estuda medicina e tem gestos e maneiras delicadas de se comportar. A abordagem reflete o poder, a inveja, a solidão e os desejos reprimidos por força de um tóxico ambiente machista na sua essência, onde é preciso manter uma postura de masculinidade intensa como dita a sociedade conservadora, sem que as fragilidades apareçam, beira a ignorância e o recalque do protagonista em relação aos demais. A realizadora retrata com profundidade rara as sutilezas e simbologias por trás de personagens psicologicamente debilitados, em especial, Phil que vai sendo desmascarado aos poucos, e o dócil Peter de aparente ternura, mas com a vingança sendo arquitetada no contexto diário de aspereza.

Ataque dos Cães teve o título baseado num trecho bíblico extraído do Salmo 22, que profetiza o seguinte: "Livra-me da espada, livra a minha vida do poder do cão". Servirá como uma espécie de aviso de que o perigo está rondando, sendo iminente as trágicas consequências. As cenas que remetem para as montanhas com as supostas gravuras de ataques caninos, deixam o espectador vigilante e atento para a realidade ou as superstições que aflorarão. O silêncio recorrente que fascina, os gestos e os olhares que falam, e progressivamente revelam as carências decorrentes daquelas aparências contraditórias num ambiente fortemente contextualizado pela hostilidade. Campion traz à baila e coloca em xeque a masculinidade através de um pseudofóbico para mirar seu foco nas fraquezas retumbantes das relações e os seus vínculos afetivos sendo demolidos com refinada delicadeza, através de pequenos detalhes, diálogos e simbolismos, no qual os desejos são anestesiados ou a homoafetividade é sufocada. Tema este que foi bem retratado no western O Segredo de Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee, na qual a repressão aparece de forma contundente como uma luz lançada para a aceitação de como são os indivíduos pelas suas criações e educações familiares.

Eis uma alegoria do ranço homofóbico imperante numa comunidade conservadora com valores ultrapassados. Os resquícios de um sistema que ainda segue com os velhos tabus sem abrir mão da liberdade, especialmente das minorias, mesmo que seja um ente próximo, porém visto com desdém e com ausência de carinho e fraternidade. Os laços e vínculos irão ao encontro de pessoas desconhecidas como um ato de harmonia pela aproximação casual nos conflitos permanentes, embora haja um sopro de lucidez para o recomeço de novas vidas que estavam vendo um ciclo se fechar, que irá conduzir para a reflexão dos destinos marcados, como decorrência dolorida da solidão e da sombria rejeição pela escolha da sexualidade. A cineasta utiliza a morte sendo reverenciada no epílogo até com alguma suavidade, tendo na condição do ora suposto amigo, vendo o tempo se escoando, conduz para o tema da vingança no final por uma reviravolta surpreendente e sombria do instigante roteiro, com o exorcismo dos fantasmas do cotidiano. É a contingência do desaparecimento nos percalços da vida que passa rápido, fica um outro mundo de reminiscências e uma melancolia enternecedora, num grande final com emoção e digno de um fabuloso faroeste.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Deserto Particular

As Transformações

O cineasta brasileiro Aly Muritiba, nascido em Mairi, no interior da Bahia, radicado em Curitiba (PR), aos 42 anos, tem uma carreira de admiráveis filmes em sua filmografia, tais como: Para Minha Amada Morta (2015), vencedor em sete prêmios, incluindo Festival de Brasília, de Montreal (Canadá) e San Sebastián (Espanha); Nóis por Nóis (2017); Ferrugem (2018) levou o Kikito de melhor longa brasileiro em Gramado; Jesus Kid (2021) ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Gramado deste ano; e, recentemente, da festejada série documental sobre o Caso Evandro (2020), em exibição no Globoplay. Pretende filmar no próximo ano Barba Ensopada de Sangue, baseado no livro do escritor Daniel Galera. Em outubro, teve seu último filme, Deserto Particular, pré-selecionado para representar o Brasil na disputa por uma vaga entre os cinco indicados na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar 2022, ao contar uma história de amor em tempos de ódio com a recorrente intransigência brutal de nossos dias atuais, na qual a sensibilidade e a ternura deveriam falar mais alto.

O enredo tem no protagonista Daniel (Antonio Saboia) um policial cumpridor de seus deveres, até cometer um erro grave que o coloca numa situação constrangedora e de iminente risco na carreira, além do abalo de sua honra. Solitário, inseguro e introvertido, filho de um também policial aposentado que agoniza uma demência irreversível, divide os cuidados do pai com a irmã. Sua única diversão com alguns momentos de alegria é o romance virtual com Sara pelo WhatsApp, que mora em Sobradinho, interior da Bahia, até ela deixar de responder as mensagens e atender suas ligações. Há uma reviravolta no roteiro, quando abandona tudo em Curitiba, onde reside, para implementar uma viagem por uma busca frenética da amada. Sai do Sul do país e vai para o Nordeste de carro, num longo caminho inverso realizado pelo diretor em seus movimentos da sua própria vida. Mergulha em um intenso processo interno de descoberta de sua existência para tentar lidar com seus afetos marcados por uma educação rígida de outrora. São os mecanismos de manipulação e a culpabilização arraigados que passam despercebidos, no qual a confusão se estabelece marcada por uma educação típica de um microcosmo familiar que entra em choque diante de revelações e experiências jamais vividas em relacionamentos que cruzam do hétero para homossexual.

O drama social com pitadas políticas se faz necessário e é importante em um Brasil dividido momentaneamente, sobretudo pelo enredo construído para narrar um episódio do cotidiano, mas que pretende transformar a aspereza de duas pessoas em suas vidas como pano de fundo. O roteiro de Henrique Dos Santos e Muritiba tem o objetivo de desconstruir em doses homeopáticas a rudeza do protagonista e, ao mesmo tempo, mostrar as diferenças e contradições de uma sociedade machista e conservadora. Uma espécie de metáfora de nossos tempos difíceis do enraizado reacionarismo de um futuro cada vez mais sombrio, onde a harmonia está mais distante por conta de um permanente estereótipo advindo de um mundo tirano do patriarcalismo. Daniel é derivado de uma estrutura estabelecida na corporação policial, que moldou sua personalidade e as atitudes menos amistosas oriundas da violência, causa do afastamento das suas funções profissionais e elemento de construção psicológica do personagem e as relações supervenientes tratadas nas questões sociais e políticas.

As diferenças culturais entre dois polos distintos retratadas no painel da atmosfera criada entre as duas regiões brasileiras ficam visíveis nesta aventura road movie, que são bem captadas pela câmera da bonita fotografia de Luis Armando Arteaga. Também há registro do envolvimento na construção da história de amor através dos contrastes de cores e alguma melancolia na temática principal. No encontro dos personagens desencontrados pelas circunstâncias, surge a mulher trans Robson (Pedro Fasanaro), criada pela avó, diante do pedido do pai, para tentar uma cura gay numa igreja evangélica pentecostal. Trabalha durante o dia num centro de distribuição de alimentos, sonha em por o pé na estrada e se libertar das amarras pelos grilhões que o prendem àquele ambiente retrógrado; à noite se transmuta e vive um outro mundo da fantasia, o de Sara, a mulher que mora dentro dele. Tema polêmico no atual governo brasileiro, que divide as pessoas por sexo e não gêneros, numa míope percepção de uma prática anacrônica de ideias e imposições ultrapassadas. Muritiba coloca com sutileza a empatia e pede tolerância no improvável relacionamento amoroso de duas pessoas antagônicas, mas com capacidade de mudança pela transformação em suas vidas distintas.

O cineasta não é engajado na causa gay, também não faz apologia de relacionamentos típicos como centro de uma proposta "homo", "bi" e "hétero", embora pregue o amor, ainda que o desfecho seja previsível, deixa a desejar como uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser mais comprometida com uma análise mais aprofundada. Porém, Deserto Particular traz no seu propósito principal a transformação interior das pessoas diante dos medos e anseios na vida com as conexões e experiências acumuladas no tempo, onde o amor transgride e a mudança interior é o elemento buscado diariamente nos encontros inesperados que aproximam emoções. Aponta para um sistema atrasado fruto da violência pertinente com situações tóxicas contrastando com o afeto e o carinho dos excluídos nesta espiral de sofrimento de vidas infelizes. Dá asas a imaginação para as escolhas dos indivíduos que lutam para serem livres de suas prisões ao almejarem uma felicidade distante e quase que utópica neste contexto.

Eis um sensível drama universal das relações humanas de um mundo melhor nos paradoxos da existência com os conflitos interiores que passam a conviver com os fantasmas que dilaceram almas. Inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos protagonistas, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo improvável da união é mantido nesta metamorfose. Há uma realidade de idas e vindas, construção e rompimento dos personagens e suas peculiaridades que refletem um misto de inconsciência e dúvida aparentes surgidas na trama, mas a convicção pela transformação é inegável. Inexistem facilidades demagógicas para problemas complexos como a força do desejo sendo mais forte do que os laços de amor e de amizade. Uma luz lançada para a aceitação de como são os indivíduos pelas suas criações e educações familiares, tanto na esfera hétero como as advindas do universo LGBTQIA+, na qual o amor modifica vidas e liberta as pessoas. Uma interessante abordagem sobre as diversidades sociais e culturais na busca de um futuro mais tolerante e menos opressivo com as diferenças.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Marighella

Resistência à Ditadura

Com um viés sombrio do destino pelas fragilidades democráticas que cercam o Brasil, o filme Marighella chegou aos cinemas 52 anos após o assassinato do revolucionário baiano, neto de escravos, para abordar as violentas ações e reações durante a ditadura militar imposta em 1964. A estreia se dá dois anos após sua previsão inicial e quase quatro anos depois de concluído, por entraves burocráticos de liberação de recursos junto à ANCINE para distribuição, que soaram como boicote e censura prévia. Propõe um amplo debate sobre as liberdades cerceadas durante o famigerado período dos anos de chumbo. Carlos Marighella (Seu Jorge- de impecável atuação pelo domínio de postura e imposição correta de sua voz potente) era poeta, escritor e deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro, cofundador da Aliança Libertadora Nacional, em 1967, um dos principais grupos de resistência que praticava oposição armada ao regime. Foi considerado pelo governo autoritário da época como o inimigo número 1 do país. Retrata entre tantas tropelias um grande assalto em um trem na cidade de São Paulo, em 1968, para obter um forte carregamento de armas, além da prática de assaltos a bancos para saldar os custos financeiros inerentes e viver na clandestinidade.

O ator Wagner Moura, celebrizado no papel do Capitão Nascimento, nos filmes Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 (2010), de José Padilha, faz sua estreia como diretor e mostra alguns méritos por trás das câmeras, como escalar um bom elenco, câmera na mão trêmula em momentos tensos com aproximação em plano fechado dos personagens onde se percebe até a respiração, ao melhor estilo de Padilha, planos-sequência de tirar o fôlego, silêncio e olhares tensos em outras cenas bem conduzidas, além das imagens moderadas de torturas nos calabouços. Comete alguns excessos, como a espetacularização de tiros em demasia, como nos velhos faroestes onde as balas não acabam nunca, além de uma tênue glamourização do biografado. Com um roteiro instigante assinado por Moura e Felipe Braga, o filme foi baseado no livro Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, do jornalista Mário Magalhães, concentrou o enredo entre os anos de 1964 a 1969, ao som da canção de protesto Pequena Memória para um Tempo Sem Memória, do inesquecível Gonzaguinha, mesclada em outras cenas com versos da música Monólogo ao Pé do Ouvido, de Chico Science e Nação Zumbi, na qual são lançadas odes a Zapata, Zumbi, Antônio Conselheiro e Sandino, bem como outras canções nacionais, em versões hip hop, para comentar a miséria.

As atrocidades da luta armada são marcantes na trama, de ambas as partes, com o foco de alertar o espectador, principalmente os jovens que não viveram aquele período de exceção, e o futuro incerto de todos carregados pela intolerância política de tempos nebulosos, ao colocar em lados opostos membros da família brasileira, contrapondo ativistas de esquerda e os relatos sinceros e destemidos sobre os rachas existentes no âmbito da própria organização, com a direita e seus defensores ferozes de um regime autocrático. Esta cinebiografia que deriva para a ação e o suspense sobre a história de um ativista que se intitula um herói, ou anti-herói, do patriota que diz amar sua nação. “Um homem que não teve tempo para ter medo”, como ele mesmo assevera, ou ao responder “eu sou brasileiro”, do questionamento de um jornalista francês sobre seu perfil de inspiração, se ele era maoísta, trotskista ou leninista.

A truculência era uma marca recorrente dos que defendiam o regime, como por exemplo, a inserção de um manifesto no rádio com a conivência de seu responsável (Herson Capri) que irá causar repulsa nas forças governistas, onde o delegado Luciano (Bruno Gagliasso- pífia atuação num papel caricato e sem autenticidade, afundou no estereótipo), numa reedição baseada no frio e temido delegado Fleury do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), que liderou a caçada aos opositores e irá partir para uma ofensiva sem limites com imagens reveladoras para provocar a plateia sobre os acontecimentos históricos que ficaram catalogados naquele ciclo discricionário. Seus alvos são, além de Marighella, Branco que foi inspirado em Joaquim Câmara Ferreira, conhecido como o Comandante Toledo (Luiz Carlos Vasconcelos- excelente interpretação), também os jovens guerrilheiros Bella (Bella Camero), Humberto (Humberto Carrão), Jorge (Jorge Paz), Frei Henrique (Henrique Vieira), além de investigar o garoto Carlinhos, filho do protagonista que reside na Bahia.

Embora tenha uma linha própria em sua estética, há similitude em conteúdo e proposta com as ousadas  minisséries Anos Durados (1986) e Anos Rebeldes (1992), ambas do novelista Gilberto Braga, e com o extraordinário longa-metragem Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias. O sequestro do embaixador dos EUA também foi enfatizado no filme O Que É Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, baseado no livro homônimo do jornalista Fernando Gabeira, que mostra a luta armada contra a ditadura militar no final da década de 60, após a publicação do AI-5. O cenário criado é fiel à época com os antigos carros Fuscas e Vemaguetes, para uma narrativa em tom intenso, seco e direto com as artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das angústias políticas de dúvidas e aflições constantes. Há tensão entre polícia e revolucionários, o amor fraternal entre o protagonista e seu filho no mar em um dos raros momentos de sensibilidade que intercalam a efervescente situação para atingir o clímax, com cenas de construções de personagens fortes, mas psicologicamente abalados. Moura lança um olhar de preocupação com as iminentes vulnerabilidades de nosso sistema político corroído por um conservadorismo que pode desconstruir e levar ao retrocesso institucional, sem cair no maniqueísmo contumaz de algumas realizações pouco consistentes

Marighella é uma realização que contém densidade sobre um ciclo manchado de sangue por um sistema opressor, em que a reconstrução das vidas pela perda da própria identidade decorre do devastador estigma do nefando golpe que deixaram registradas as cicatrizes com suas profundas marcas duradouras, mencionadas no prólogo. Ainda que haja algumas derrapadas que beiram a patriotadas, como nos pós-créditos em que o Hino Nacional é cantado pelos personagens como uma desatinada louvação religiosa. O filme não é conclusivo sobre o biografado e os rumos que a política brasileira seguiu, mas há uma proposta ambiciosa sobre a engrenagem que envolve os meandros intrínsecos e extrínsecos, como a participação dos EUA em 1964, e o destino do Brasil como um Estado democrático. A abordagem pontua as dúvidas preocupantes que rondam este painel difuso na sua essência. Sem ser folhetinesco como apregoa a parcela conservadora, embora haja a identificação pelo engajamento do realizador, é um relato significativo e relevante por seu aspecto histórico de um convalescente regime vergado da democracia para o perigoso estado de exceção, sob o manto do autoritarismo do passado, para reflexão do presente, de uma nação debilitada institucionalmente.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Mostra de Cinema São Paulo (Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite)

Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite

Um filme que surpreendeu positivamente nesta on-line e presencial 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite, uma coprodução do Afeganistão com o Irã. A direção e o roteiro são de Ramin Rasouli, nascido em Herat, no Afeganistão, em 1978, fez carreira no Irã e hoje reside na Holanda. O cineasta tem em sua filmografia dez curtas-metragens e dois longas, tendo estreado com Lina, que entrou no circuito de festivais em 2017. Agora, em seu segundo longa-metragem, conta as histórias de uma jovem pastora, um menino caçador de pássaros que vive dentro de uma tanque de guerra sucateado e uma professora de luto pela perda do marido. O realizador cria um painel fascinante de três dramas pessoais decorrentes das atrocidades cometidas pelos talibãs ao assumir o governo após uma eleição suspeita.

A realização parece ter sido filmada em 2021, após a tomada do poder pelo Talibã depois da saída dos americanos, embora a produção seja do ano de 2020. O cenário é um deserto no interior do Afeganistão que apresenta carroças, fenos para os animais, burros, grutas e estradas poeirentas sob o comando do regime sanguinário ali instalado. O Talibã surgiu em setembro de 1994, no Candaar, como uma alternativa caracterizada pela predominância pachtun, grupo étnico majoritário no país e pelo rigor religioso extremo. Foi vendida à população uma falsa expectativa de que acabaria com o constante estado de guerra interno e com os abusos dos senhores belicistas pela ideologia fundamentalista. Na realidade, as mulheres perderam praticamente todos seus direitos, as crianças são impedidas de estudar e os direitos humanos ficaram cada vez mais minguados. Pela similitude, o notável filme A Caminho de Kandahar (2001), de Mohsen Makhmalbaf, já havia escancarado todas as mazelas implantadas pelo regime opressor do Talibã, assim como os rastros de destruição humanitária deixados por este governo corrupto, extremista, teocrático, islâmico e machista. Mostrava a violência deixada pelas cicatrizes em cenas marcantes na viagem de uma jornalista que precisava chegar à Kandahar para encontrar a irmã e impedir que ela se matasse. Cruel em todos os sentidos, mas com uma nesga de esperança na figura de um médico encontrado naquele trajeto coberto de oportunistas, com pessoas famintas, mutiladas física e emocionalmente, e mulheres infelizes sem identidade.

Os Cães Não Dormiram Ontem à Noite faz um impressionante registro através de narrativas que se entrelaçam depois que uma escola local foi incendiada com crianças sendo queimadas pelos fundamentalistas, escapando apenas duas que carregam as marcas do passado. Uma delas está no início deste filme instigante na personagem da pastora que arrisca a pele para tentar salvar uma soldado norte-americana após um acidente de helicóptero, que confessa um hediondo crime de guerra, ou seja, o ataque a uma casa abandonada que matou mulheres e crianças por engano, sendo confundidas com guerrilheiros armados. O outro sobrevivente é um jovem caçador de pássaros que se abriga em um tanque de guerra estragado no meio do deserto. Ele vive ali com suas músicas proibidas de que tanto gosta, mas tem um plano de fazer funcionar aquele armamento importante. Conta com a troca mercantilista de armas para consertar o motor através de um mecânico que faz qualquer negócio para sobreviver. Em outra ponta da trama está uma professora viúva sedenta de vingança pelos responsáveis do regime que causaram a morte de seu marido. A surpresa virá no epílogo, quando irá se defrontar com o novo governador da região e um segredo irá ser descoberto com astúcia e uma boa ironia do destino.

Rasouli conduz com senso crítico apurado e uma correta imparcialidade este seu segundo longa-metragem recheado de reviravoltas. O enredo vai se dissipando com o desenrolar das histórias, e o condutor da carroça, uma espécie de Uber no deserto, terá sua identidade aos poucos dissipada ao fazer jogo duplo, não por mera opção, mas por medo e pavor dos soldados do governo vigente comandados pelos temidos talibãs que matam, executam e tocam fogo nas escolas para espalhar o medo. Um regime autoritário que coage sem dó e nem piedade no Afeganistão de ontem e de hoje. Eis um filme atualíssimo pelo exercício no presente que faz parte de uma mentalidade e suas tendências que por ora está em vigor. Não há mocinhos contra bandidos diante da nefasta interferência direta dos Estados Unidos, bem simbolizado pelo horror da guerra através da personagem resgatada do helicóptero, em que foi a única sobrevivente, na figura de testemunha confessa das atrocidades e o descaso com vidas humanas inocentes sumariamente executadas por erro grosseiro.

O drama não se presta para contar uma história, mas para entrelaçar três episódios contundentes e informativos como se percebe do seu desfecho. Serve como uma delação potente à situação caótica dos habitantes no Afeganistão com a forte devastação da população de trabalhadores desprotegidos. Um admirável e impactante filme a ser visto por todos que desejam compreender a história recente do Oriente Médio, com cenas de uma fascinante fotografia contrapondo com um cenário de assombrosa crueldade, na qual a dignidade se esvai em seres humanos sem alma, sem brilho e muitas vezes de anônimos. É contagiante na essência cinematográfica pela intensidade dos fatos intercalados que se sucedem numa atmosfera criada em torno de uma mentalidade de ideias e pensamentos sobre costumes ultrapassados. O espectador não fica alheio e é convidado de maneira sutil a lançar um olhar de repulsa pela boa narrativa dos personagens envolvidos nesta singular obra de uma temática sensível e humanitária. Um contexto de intolerância sobre o que é capaz de se fazer com um povo com seus problemas conjunturais do passado que refletem no presente e apontam para um futuro de poucas perspectivas aos não alinhados do aterrador regime sanguinário dos talibãs nesta aprofundada denúncia pelo cinema.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mostra de Cinema São Paulo (Ausência)

Ausência

Um dos filmes mais aguardados, mas que pouco correspondeu à grande expectativa depositada, é o discutível Ausência pelas suas incongruências, em exibição on-line e presencial na 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo, com direção e roteiro de Ali Mosaffa. O cineasta tem em sua filmografia três curtas e dois longas: Portrait of a Lady Faraway (2005) e O Último Passo (2012), que foi exibido na 36ª. Mostra de SP. Começou a carreira no cinema como ator, onde é bem melhor que dirigindo, no início dos anos 1990, destacando-se em filmes como Leila (1997), de Dariush Mehrjui, O Passado (2013), de Asghar Farhadi, Que Horas São no Seu Mundo? (2014), de Safi Yazdanian, e A Plantação de Laranjas (2018), de Arash Lahooti. A fotografia de Massoud Salami foi o ponto alto da obra, aos captar belas imagens em Praga com seus monumentos, estátuas, e um pitoresco cotidiano de seus habitantes, usos e costumes, remetendo para seu filho maior, o cultuado escritor Franz Kafka (03.07.1883/03.06.1924), que ali viveu e escreveu obras memoráveis.

Diante de todas as dificuldades de filmar no Irã, Mosaffa realizou este drama sociopolítico em coprodução com a República Tcheca e a Eslováquia, para abordar uma história aparentemente simples no seu desenrolar. Transita para o romance, especula no thriller policial e cutuca na política, mas fica distante da genuína essência cinematográfica do gênero enfocado. Rouzbeh (Ali Mosaffa- desta vez teve uma pálida interpretação) é um jornalista iraniano separado, que tem um filho pré-adolescente, viaja de Teerã até Praga, para desvendar o passado do pai em uma biografia que pretende escrever num livro. Sabe apenas que ele é um expatriado comunista que viveu na extinta Tchecoslováquia, logo após o Golpe de Estado no Irã, em 1953. A cena inicial mostra uma pessoa dando comida para os pombos numa janela que apresenta um perigo iminente de queda. O corte da cena é retomado com o protagonista no interior do apartamento onde o pai morou há 50 anos. O surgimento de uma investigadora da polícia destacada para acompanhar o caso do acidente, ou tentativa de suicídio, envolvendo um homem que vivia no mesmo local, que se chamava Vladimir, e teria desabado da mesma fatídica janela. No diálogo entre os dois, descobre que o pai da vítima também tinha origem iraniana e o mesmo nome do seu próprio genitor.

O longa-metragem retrata uma sequência de contradições e escolhas convencionais na trajetória amorosa e um vínculo estranho com uma outra personagem do suposto meio-irmão, fruto de uma relação extraconjugal do pai, que agora vive no seu país de origem com dificuldades de cognição. Não importa os rumos tomados da trama sugerida, ela irá transformar os aspectos psicológicos do protagonista e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles, direta ou indiretamente. Rouzbeh começa a ter sobressaltos e associa o imbróglio à história familiar que ele desconhecia completamente, tomando rumo diferente da sua pesquisa com o intuito de obter subsídios em bibliotecas, para uma investigação em sintonia com a policial. Surgem questões morais e éticas no caminho, como desligar os aparelhos no hospital do meio-irmão com morte cerebral para consumar a eutanásia. Assina, depois rasga o termo de autorização, por princípios e valores que lhe corroem a consciência. A liberdade individual teria pouco valor e não poderia ser executada como uma livre expressão de vontade de uma pessoa que recém conheceu. Poderiam ficar como ameaças de verdades absolutas, o que lhe causaria supostos traumas indeléveis pela sua atitude, talvez impensada e afoita.

O filme tem excessos de flashbacks, o que atrapalha mais do que soluciona com imagens pretéritas, uma mescla de realidade com a infância do jornalista em família num passado distante. O roteiro é confuso e com vários enigmas que irão se solucionar abruptamente com o desfecho no surgimento de uma meia-irmã da vítima no sorumbático apartamento, que assume o papel de também personagem da realização. O cineasta, possível e bem provavelmente, se inspirou às avessas para escrever o desalinhado roteiro pela burocracia e os enigmas encontrados no best-seller O Processo, de Kafka, diante do enigmatismo e o entulho da ineficácia rígida desenvolvido para resolver dificuldades com soluções nada pragmáticas e muito prolixas, optando pela inverossimilhança atroz.

O protagonista ao assumir a personalidade do meio-irmão, corta a barba, vai à janela como buscar alguma resposta escondida no passado. Há uma flagrante transformação forçada e desnecessária para a fluidez da trama. Embora os equívocos apontados, a obra não chega a ser invalidada totalmente. Salvam-se a fotografia, partes do roteiro como a responsabilidade ética e o arrependimento, bem como a boa intenção em deixar a herança para quem realmente de direito, mas esbarra e se escancara na distância entre eles naquele espaço a ser preenchido pelo imenso vazio de encontros fortuitos afetivos, deixando um legado para se entender a complexidade humana. O foco do enredo de Ausência não é a vítima e nem a dolorosa perda da vida, porém os dramas pessoais irreparáveis pelo olhar sombrio e a despedida melancólica com suas consequências e cicatrizes que permanecerão abertas pelos fatos fragmentados ocorridos por circunstâncias involuntárias pouco esclarecidas.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Mostra de Cinema São Paulo (Vera Sonha com o Mar)

 










Vera Sonha com o Mar

Vem do Kosovo coproduzido com a Macedônia do Norte e a Albânia o excelente drama familiar com fortes conotações sociais e algumas pitadas de suspense Vera Sonha com o Mar, em exibição on-line e presencial na 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo. A direção é da promissora Kaltrina Krasniqi, em seu longa-metragem de estreia. Ela mora no Kosovo, sendo considerada especialista em mídia e trabalha com cinema, televisão e publicações on-line desde 2001. Formada em direção cinematográfica pela Universidade de Prishtina, também possui um mestrado pelo Instituto de Jornalismo e Comunicação em seu país. Tem em sua filmografia três curtas: Kanarinët e Dinë (2014) e Sarabande (2018). A bela trilha sonora foi composta pela dupla Petrit Çeku e Genc Salihu e o instigante roteiro teve a assinatura de Doruntina Basha.

A trama é um fascinante painel sobre a interação do núcleo familiar desconstruído para a contextualização com a comunidade e seu cotidiano inerente com reflexos dos aspectos de uma sociedade visceralmente machista. O enredo retrata de maneira profunda a trajetória de Vera (Teuta Ajdini – ótima atuação), viúva de um juiz renomado, logo após seu estranho suicídio que deverá ser guardado em segredo por sugestão de um colega magistrado ainda na ativa. Ela trabalha como intérprete de linguagem de sinais de meia-idade, e tem uma vida aparentemente bem resolvida, avó zelosa, além de ser uma mãe solidária com a filha que tenta a profissão de atriz no teatro. O desenrolar da narrativa aponta que sua tranquilidade trará transtornos e dissabores diante da perda trágica do marido. Começa a sofrer ameaças violentas de parentes distantes, como um primo que quer ficar com um imóvel no interior e tenta obrigá-la a assinar um termo, alegando que recebera como doação e, por consequência, direito à casa de sua família.

A cineasta tem méritos ao conduzir com equilíbrio e mãos fortes o drama, demonstrando talento pouco comum para uma neófita que esbanja inegáveis qualidades no enquadramento das cenas com um clímax bem dosado e no ponto certo. Aos poucos o filme vai mergulhando em caminhos sombrios de um esquema escuso que começa vir à tona. São segredos pretéritos do envolvimento do esposo em jogos ilegais e a relação próxima com agiotas e o submundo do crime com dívidas impagáveis em dinheiro, na qual aparece a referida casa como o grande estopim da discórdia por ser ofertada nas jogatinas como moeda de troca para pagamento. O cenário fica cada vez mais perigoso e o mundo da protagonista está prestes a desmoronar, diante da pressão psicológica, agressão física num supermercado, chantagem emocional sobre a honra manchada do suicida que será jogada na internet diante das ameaças por telefone e mensagens no celular, caso resista. O medo aumenta e o dilema do destino de seus familiares afloram ainda mais com um atentado criminoso à filha e um equivocado suposto sequestro da neta.

O drama retrata como subtema os reflexos de uma guerra civil no Kosovo que ainda se ressente de um passado que ceifou muitas vidas inocentes. Houve o conflito por questões étnicas e religiosas, tendo como principal motivo o pedido de independência dos kosovares, que começou em 5 de março de 1998, quando esta província situada na Iugoslávia, decidiu lutar pela sua independência ocorrida em 11 de junho de 1999. O resultado da guerra deixou cerca de 10 mil mortos e 740 mil albano-kosovares sem moradia. O ditador Milosevic só deixou o poder na Iugoslávia em outubro de 2000. A realizadora coloca tintas fortes no machismo imperante, no qual os homens dão pouca importância para os desejos e direitos das mulheres. São situações colocadas em xeque para um olhar atento sobre o preconceito através da crise de valores dos respectivos papéis ora contaminados pelos descaminhos do destino e suas frustrações. Os sonhos da protagonista em conhecer o mar servirão como metáfora de uma crise institucional que se torna um imenso pesadelo durante o desenrolar da precisa narrativa. Outra metáfora importante é a personagem representada pela filha que consegue finalmente um papel de destaque no teatro. Porém, seu destino na peça é ser enterrada viva, tal qual a realidade apresenta para ela e sua mãe naquela sociedade com seus tabus de uma reinante opressão para manter a subserviência da figura feminina.

Vera Sonha com o Mar é uma obra que aborda de forma clara e inequívoca os grandes preconceitos nesta luta da mulher por um espaço mais abrangente. A bofetada no rosto da filha pela mãe conjugada com a expulsão de casa pelo pai são revelações que comovem e dão brilho na história para constatar uma moral mesquinha. A luta de Vera para manter o patrimônio, mas que causará uma irresistível coação para entregar o imóvel é outro fato da prevalência tirânica. Um filme de reflexão na abordagem de uma sociedade autoritária dominada pelo vulnerável e contraditório macho alfa, que conduziram para situações e atitudes apresentadas por uma mostra de um passado contaminado por comportamentos deploráveis de alguns falsos moralistas de toga. O epílogo, todavia, dará um facho de luz de esperança para restabelecer a dignidade e um certo otimismo através do vídeo da filha que prestará um tributo à mãe numa alegoria redentora, quiçá, de novos tempos do empoderamento feminino. A perseverança maternal fica estampada neste filme seco, direto, e sem grandes exercícios pirotécnicos. Contagia na essência cinematográfica pelo simbolismo da arrogância moral diante da ausência de um vínculo mais afetivo paternal na relação familiar pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno de uma sociedade cínica com seus costumes ultrapassados. Comove o espectador, perturba pela boa narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e suas contradições que levam para uma fabulosa realização pouco comum nesta temática.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

De Volta Para Casa

 

Agonia da Finitude

Wayne Wang é um veterano diretor nascido em Hong Kong, mas formado nos EUA, tendo sido o primeiro cineasta asiático-americano a conseguir projeção na cinematografia norte-americana, com sua estreia na direção em O Clube da Felicidade e da Sorte (1993). Depois vieram Sem Fôlego e Cortina de Fumaça, ambos de 1995, realizações que o projetaram como um pioneiro importante no cenário independente dos anos 1980. Seu interesse permanente sempre foi por ideias sobre os deslocamentos e a assimilação do imigrante em novos horizontes com temas mais recorrentes nas ficções americanas, servindo de subtema em faroestes a dramas familiares, que irão lhe dar subsídios para sua criação. Faz filmes baseados na observação, mas é a vida, com sua simplicidade e complexidade, que está sendo colocada na tela e se diz um admirador do mestre japonês Yasujiro Ozu. Chega agora ao seu décimo quarto longa-metragem, no admirável De Volta Para Casa, através de um roteiro adaptado do ensaio pessoal do escritor coreano-americano Lee Chang-Rae para a revista The New Yorker, que depois foi coescrito em parceria pela dupla.

A trama gira em torno da saga de uma mãe (Jackie Chung), famosa atriz de teatro que está nos últimos estágios de um agressivo câncer de estômago com metástase, e seu filho, Chang-Rae (Justin Chon), um escritor de algum sucesso, que deixa emprego e namorada para trás, retornando dos EUA para casa com o intuito de cuidar da genitora. O filme tem um aceitável ponto de partida para tratar do tema da morte iminente e da experiência de assimilação que retrata esse desencontro na vida entre o filho americano e a mãe coreana. Eles dividirão o mesmo espaço, falam o mínimo para valorizar o indispensável silêncio, enquanto que a finitude pela perda não bate à porta. O rapaz tem como rotina começar o dia cuidando sozinho da enferma, pois o pai está sempre ausente em suas atividades profissionais e fica implícita sua traição com outra mulher; já a irmã retorna depois de algum tempo em que permaneceu fora para tentar convencer os familiares sobre o uso de um tratamento alternativo de imunoterapia, logo após a mãe ter comunicado que desistiu da medicação tradicional para morrer sem sofrimento.

As habilidades culinárias são desenvolvidas durante o desenrolar do enredo, sendo confundido como uma realização gastronômica que integra à dramaturgia em algumas passagens, como o filho preparando para a família um jantar tradicional. Dividido entre a realidade americana e a herança coreana do Ano Novo, ele articula um prato típico, o kalbi, seguindo a receita da mãe para pinçar sua ligação forte de vínculo afetivo inquestionável. Menciona a costela marinada com gengibre, na qual a carne tem de permanecer ligada ao osso para realçar o gosto naquele banquete crepuscular. Na hora de servir, veste um traje de gala, prevendo ser a última refeição com a mãe, que tosse compulsivamente, dando mostras da saúde precária. Todos tentam uma felicidade distante e forjada de reconhecimento. São cenas que emocionam pelas memórias buscadas no passado que virão à tona para uma apreciação sobre alguns momentos decisivos enfrentados com as expectativas e planos projetados pelos pais.

Temas como a morte, solidão e doença foram exploradas com méritos inegáveis pelo genial Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957) e na incomparável e inigualável obra-prima Gritos e Sussurros (1972); em Viver (1952), de Akira Kurosawa, ou ainda em Amor (2012), de Michael Haneke, que explora um naturalismo exposto como vísceras e a dacadência humana intensa, embora bergmaniano na abordagem proposta, teve na forma a crueza direta e em nada comparável com a estética criativa e metafórica dos mestres inspiradores. Wang faz um painel misto de intimidade de microcosmo familiar pontuando a distância entre o filho educado nas melhores escolas da sociedade americana e a mãe tradicional da sociedade coreana. Aborda as tensões familiares contrapondo a dificuldade da convalescença materna como sendo figura central para ele, através de flashbacks recentes e outros da juventude do jovem. Rodado naquele cenário de um pequeno apartamento com bonita vista em que a câmera fica estática, na maioria das vezes, na sala e no quarto ao lado, onde está uma mulher agonizando na cama. Os membros da casa estão, aparentemente, unidos pela dor na experiência melancólica da angústia de um ente querido em estado de decrepitude com o passar do tempo. Méritos para o realizador que não descamba para o melodrama sentimental apelativo barato, ao construir um cenário com personagens fortes, às vezes revoltados com o destino, mas compreensível no contexto, com contidas emoções existenciais sobre o progressivo fim do ser humano.

O drama mergulha em alguns pequenos rancores e o reconhecimento mútuo de duas pessoas que partilharam uma vida com algum distanciamento fruto da sobrevivência. Um filme com força dramática, sombrio e reflexivo sobre a doença e a morte, onde o silêncio prevalece sobre os poucos diálogos e expressões corporais, mas que são reveladores quando há, com muitas imagens em que os olhares dos personagens falam por si só. Ou ainda, quando a mãe cantarola a famosa canção Let It Be, dos The Beatles, mas desabafa dizendo como pode uma música tão linda se tornar feia. De Volta Para Casa é instigante sobre o distanciamento e a aproximação nas relações humanas do grande amor maternal. A dor dilacerante corta e mexe com o espectador e suas emoções, mesmo sem ser um filme de grandiloquência, mas que se estende pelas dependências do lar. O cineasta conduz a história sem arroubos ou manifestações esperançosas já antecipadas no prólogo e depois na aproximação do ocaso da vida, com uma única metáfora que é buscada na relação carne e osso entre mãe filho na aula de culinária. Elogiável a magnífica cena final do retorno do casal do aeroporto, sem as amarras do sofrimento angustiante da moléstia devastadora e implacável, numa poética licença lírica de dignidade com propriedade, mas com um olhar implacável.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Bagdá Vive em Mim

Fantasmas do Passado

O partido de Saddam Hussein passou a governar o Iraque, em 1968, logo após ter dado um golpe de Estado, tendo o ditador assumido o poder, em 1979. Envolveu-se em conflitos armados com o Irã e o Kuwait, tornando-se alvo da Guerra ao Terror patrocinada pelos Estados Unidos após o atentado às Torres Gêmeas, em setembro de 2001. As forças de coalizão ligadas aos norte-americanos invadiram o Iraque, em 2003, derrubaram Saddam, e em 2006, foi executado. O instigante filme Bagdá Vive em Mim é uma coprodução da Suíça, Alemanha e o Reino Unido, embora haja simplicidade no seu desenrolar, é um drama mesclado com romance e política na sua genuína essência cinematográfica. O diretor e roteirista iraquiano Samir está exilado na Suíça e, em entrevista ao jornal Estado de Minas, conta que depois da revolução de 1958, os comunistas foram perseguidos por forças apoiadas pelos EUA e a CIA. “Eu era criança e me disseram: 'Vamos passar férias na Suíça’. Ninguém me disse que seríamos refugiados. Não ficamos um mês, quatro meses ou quatro anos. Passaram-se 40 anos da minha vida”. De acordo com o realizador, Brasil e Iraque têm muitas semelhanças, que vão além da influência da religião ou do passado marcado pela ditadura, e revela ter se inspirado no cineasta Glauber Rocha (1939-1981): “Me inspirei muito no cinema brasileiro dos anos 1970, vi muitos filmes políticos e experimentais do Brasil naquele tempo”.

Samir aborda com certa profundidade temas para uma boa reflexão, tais como os tabus da sociedade árabe, a religião, o machismo de seu povo, a homofobia explícita, os aspectos culturais e principalmente a política do passado ainda reinante no Iraque. Faz um retrato alegórico fiel e com tintas fortes do regime arbitrário, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente por um grupo de imigrantes que transformam o café londrino Abu Nawas num refúgio de iraquianos que já não têm mais espaço em seu país. Buscam preservar com galhardia sua cultura em meio a discutíveis valores ocidentais. Cada personagem, que teve o seu motivo para abandonar a pátria, precisa lidar com fantasmas do passado para seguir em frente. Há sucessivos desafios a serem enfrentados diariamente naquele recinto que deveria ser de puro entretenimento, mas que sofre atentados e dissabores já recorrentes para um sofrido povo que não se senta nas mesas para rir, mas se apoiam nas xícaras para lutar pela sobrevivência. Além de carregarem os traumas e as chagas fétidas de um tempo nem tão distante, que permanecem pelas circunstâncias que são apresentadas em um roteiro dinâmico. O olhar é de desencanto, sem reminiscências pueris lacrimejantes, pelas lentes deste promissor cineasta atento aos acontecimentos de sua aldeia que nunca esqueceu.

A trama é conduzida pelo poeta Taufiq (Haitham Abdel-Razzaq), que faz uma narrativa imparcial e dolorida através do personagem atual na pele do guarda-noturno. Aos poucos, descobre-se os horrores que passou em Bagdá ao ser torturado numa tragédia pessoal traumatizante pelas marcas físicas no corpo que ainda carrega e o levou à Europa. Por ser comunista e contrário ao fundamentalismo islâmico, foi perseguido pelo regime de Saddam nos anos de 1990. Embora tenha fugido para Londres, traz a dor da morte do irmão e sua noiva que foram assassinados pelo inescrupuloso e violento regime ditatorial. Em comum, os personagens têm a mesma origem, como a arquiteta Amal (Zahraa Ghandour), que não consegue validar o diploma e virou garçonete. Ela representa a libertação feminina no contexto árabe para fugir do ex-marido Ahmed (Ali Daim Mailiki), um temido espião de Saddam, que surge na capital inglesa como o endemoniado adido cultural do Iraque. Porém, vive uma tensão permanente entre seu desejo por liberdade contrapondo com a pressão da sua comunidade que não aceita que se case com um homem não iraquiano, embora tenha se apaixonado por um britânico. Samir revela que parte da juventude do país não se alinha a valores extremistas e seus ideais são confrontados pelo fundamentalismo religioso. Há o técnico de informática homossexual que esconde o namorado com medo de represálias, tendo de lidar com as risadas e provocações dos conterrâneos, além do jovem problemático que vai a uma mesquita radical ouvir sermões e acaba se convertendo no islamismo radical.

O filme mostra como as diásporas são variadas, embora o realizador esteja voltado essencialmente para as coisas do cotidiano de seu país, ainda que tenha filmado em Londres, bem distante de seu povo, não se afasta das relações intrincadas e apresentadas com naturalidade a dramaticidade decorrente de uma situação provocada por um governo autocrático com suas crises políticas e perseguições aos opositores, ao ser explorado com talento e sensibilidade. A tensão estabelecida nos personagens bem construídos, como se fossem de carne e osso, retrata a garçonete, o gay e o rapaz convertido, nada mais é do que o conflito instalado que trará muitas revelações pretéritas com feridas abertas sem cicatrização que tentam ser removidas, apesar da crueza e de uma sucessão de fatos e circunstâncias de personagens que conviveram e discutiram as nuances marcadas pelo tempo. Há um imbróglio com trocas de acusações, principalmente pelos costumes rígidos de uma sociedade moralista com seus sentimentos e escrúpulos conservadores dentro de um vazio existencial latente. As mulheres e os homossexuais não passam de meros coadjuvantes e de restritos direitos. O foco tem o viés da visão das minorias, pois há entre os homens o sentimento arraigado preconceituoso pela manutenção dos tabus.

Bagdá Vive em Mim retrata um presente muito atual com verdades do passado irrecuperáveis para uma reflexão sobre os temas abordados que estão marcados em cada personagem. Está bem demonstrada nesta realização com dignidade, diante da interação estabelecida com o espectador. O diretor lança as dúvidas e não radicaliza com os elementos representados da força e da opressão. A emoção é contida com um tom que deriva de uma situação peculiar para a complexidade do enredo e do rol de refugiados que se alinham em conflitos quase que insolúveis, aparentemente. Todavia, nem mesmo o que há como subsídios fortes de ligação justificam as atitudes que ficam à deriva como consequência de um regime totalitário implantado como forma de subtrair ideias e manifestações livres das angústias que os acompanham. As temáticas são consistentes e intimistas do realizador que se detém na abordagem política, cultural, familiar, tabus da sociedade, religião, machismo e homofobia como forma de interagir com seus compatriotas. É significativa a importância dada às palavras nos diálogos numa forma bem estruturada do enredo. Ficou distante do maniqueísmo, através de uma segura direção com um elenco impecável que dá brilho nesta obra admirável no conteúdo e magnífica no contexto.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Jogo do Poder

 

Armações Inescrupulosas

O cineasta grego naturalizado francês Constantin Costa-Gavras está de volta ao cinema com Jogo do Poder, demonstrando grande e calibrado poder de fogo, afiado e em boa forma no alto de seus 88 anos de idade. Mestre do cinema de denúncia política, entre os quais estão os extraordinários Z (1968), A Confissão (1970), Estado de Sítio (1972), O Quarto Poder (1997), Desaparecido- Um Grande Mistério (1982), e dos ótimos Amém (2002), O Corte (2005) e O Capital (2012). A estreia de seu último longa foi no Festival de Veneza de 2019, com inspiração no livro Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment, escrito pelo ex-ministro grego de finanças Yanis Varoufakisb, numa abordagem contundente, nua e crua, dos bastidores da terrível crise econômica da Grécia em 2015. O diretor escreveu o enxuto roteiro em parceria com o próprio Varoufakis e revelou ao site francês L’Artvues: "O filme é uma espécie de tragicomédia que os gregos viveram e ainda vivem por dez anos e na qual a Europa parece não estar muito interessada.”

O realizador faz uma abordagem transparente sobre a perversa agenda oculta da Europa que expõe o que realmente aconteceu em seus corredores dominados pelos poderosos ao apontar as razões que assolou impiedosamente a derrocada na Grécia. O drama político com viés sócio-econômico faz um relato sincero e imparcial travado em uma das mais espetaculares e controversas batalhas na história política internacional. Uma exposição com tintas fortes da insanidade e do cinismo sobre a realidade totalmente desconhecida do grande público, tendo em vista que as peculiaridades retratadas são protagonizadas principalmente porque grande parte dos negócios da União Europeia (UE) são desdobradas num submundo de portas fechadas. As razões verdadeiras que levam à crise um país poderoso como a Grécia são enfaticamente jogadas na cara da plateia para uma compreensão das artimanhas inescrupulosas de um jogo nefasto de poder com roupagem de desumanidade, tais como uma espécie de guerra fria comandada principalmente pela Alemanha, além da França, Inglaterra e outros países europeus mencionados no longa-metragem.

Através de uma fascinante trilha sonora assinada por Alexandre Desplat, no tom certo das cenas para dar fluidez à narrativa e um elenco coeso sem derrapadas, com sequências de grandes salões, jantares e reuniões, em uma estética magnífica, a trama centraliza seu foco no ex-ministro de finanças Yanis (Christos Loulis- impecável atuação). Ele narra com eficiência na primeira pessoa, ao fazer os relatos instigantes sobre os movimentos políticos na União Europeia com a participação da representante do FMI e os jogos de poder que beiram a inverossimilhança, mas que são reais e cruéis para o povo grego que votou contra no plebiscito para adesão ao contrato devastador imposto por estes órgãos. São armações políticas abjetas e nefastas. O ex-ministro é um homem talentoso e braço forte do demagogo e indeciso primeiro-ministro eleito com promessas de reformas profundas. O método de trabalho de Yanis é pela conciliação e recusa das propostas inviáveis apresentadas. Demonstra fibra e ardor na defesa de seu país que vivia um ciclo de destruição, no qual geraria apenas mais arrocho e uma queda insustentável do PIB. Não se conforma e mostra insatisfação com os métodos impostos pelas grandes nações europeias. Chega a ser constrangedor o modo como é afastado das negociações, tendo que ir embora daquelas reuniões que humilham e debocham de seus compatriotas.

O filme é um mergulho no mundo voraz de um capitalismo selvagem e desenfreado, quando bate à porta da União Europeia e do FMI para tentar solucionar a saúde financeira debilitada de uma nação, diante da grave enfermidade que assola a economia em crise ocorrida em 2015, decorrente da ciranda de negócios mal realizados num cenário nebuloso de um débito impagável, sendo que a única solução proposta por governos anteriores era fazer novos empréstimos. Costa-Gavras enfatiza o protagonista como um político malvisto por ser de esquerda e sofrer ofensas em seus valores éticos e morais, ao entrar em choque direto numa rota de colisão com a cúpula dominante. Há retaliações e ameaças no corte iminente de recursos aos bancos gregos que levariam à falência inevitável com consequências inimagináveis, causam visões alucinantes no próprio primeiro-ministro e sua indecisão diante das graves dificuldades de sobrevivência que se confundem com uma realidade quase sem saída, onde já foram cortadas na carne parte das pensões dos aposentados. É um panorama do que acontece não só num país endividado, mas que também pode ser estendido a outras nações na mesma situação de miséria em outros continentes, bem como uma abordagem sobre a concorrência desleal, onde executivos e políticos são treinados para dirigir de maneira fria, impessoal e insensível num mundo que se esboroa, com embates árduos entre os poderosos e os desmilinguidos sem a força da barganha.

Jogo do Poder é um filme conduzido com sarcasmo arrebatador, com tintas de lesão grave ao humanismo e suas perdas, sem deixar de abordar e enfocar com energia o comportamento dúbio de quem tem o poder na mão na escala de países ricos do primeiro mundo numa época em que a UE não queria mais aceitar o rolamento de dívidas com os bancos do continente. Também dá um bom enfoque nas promessas populistas de campanha de políticos aventureiros e antiéticos. Há impagáveis cenas com requintes perversos dentro de uma denúncia devastadora, como do ministro francês que joga a situação para o representante da Alemanha deslindar. Mas é fulminante e vai ao cerne da questão, no desfecho providencial na elipse da cena, em que a dança é repetida várias vezes até deixar tonto e sem lucidez o fragilizado personagem demagogo no fatídico dia da adesão ao leonino contrato unilateral. Ali se desenha um futuro como resultado de uma catástrofe na metafórica teatralização do circo político. De forma magistral, o genial Costa-Gavras marca seu retorno retumbante pelo consagrado formalismo típico com domínio narrativo ao ensinar todos a dançarem o jogo político como poucos conseguiriam esta façanha, em um epílogo inesquecível nesta obra singular.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Piedade

A Resistência

Cláudio Assis é um cineasta pernambucano que não se submete a dogmas e paradigmas daqueles filmes bem feitinhos e ajustadinhos que indiquem alguma propaganda ou louvação de um gênero. Sua cinematografia é contundente e provocativa, com reflexos marcantes sobre o comportamento humano na abordagem de temas sociais, com passagens pela violência física e psicológica. Mesmo que sua obra seja regional através da típica linguagem nordestina, a universalidade do cinema está acima e se sobrepõe peremptoriamente. Não pertence a uma casta de diretores politicamente corretos, como bem enfatiza tanto em seu discurso no cinema pelos atos do poeta anarquista no perturbador longa Febre do Rato (2011), bem como em entrevistas à imprensa. Segue uma linha dos realizadores malditos ou marginais, tais como: Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Ozualdo Candeias. Lançou-se ao cinema com dois bons filmes Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006), posteriormente realizou Big Jato (2016). Mostra novamente sua versatilidade e competência com esta nova provocação instigante, no seu quinto longa-metragem, Piedade.

Eis um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a temática do cotidiano invadido e da especulação desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e os desejos de escolha e opção do cidadão. A narrativa traz no bojo um realismo da exacerbação pela intransigência através de métodos absurdos de coação de uma empresa que visa somente seus lucros e está de olho no espaço para ter melhor acesso aos recursos naturais que irá transformar aquela comunidade de uma praia fictícia da Grande Recife num verdadeiro caos aos nativos. Segue a linha do conterrâneo Kleber Mendonça Filho que lançou luzes para bons debates sobre a desenfreada especulação imobiliária no badalado O Som ao Redor (2013), e no polêmico Aquarius (2016), sobre uma empreiteira que amedronta uma jornalista aposentada, escritora, viúva e mãe de três filhos adultos, que recém saiu de um câncer de mama, o qual venceu com galhardia e determinação a moléstia, para lutar agora contra outro obstáculo da vida, sua permanência ameaçada no último edifício antigo da Av. Beira-Mar, da bela praia da cidade de Recife.

Piedade foi filmado no Porto Suape e na Reserva do Paiva, em Pernambuco, alterna alguma leveza ao mostrar um povoado com uma praia paradisíaca, cujo nome dá título do filme, com uma imensurável pressão de grupos econômicos poderosos que lançam cizânia nos nativos para uma disputa ferrenha por terras. Naquele lugar aconchegante, a trama retrata uma matriarca viúva (Fernanda Montenegro), que mora com o indignado filho, Omar (Irandhir Santos), uma espécie de resistência aos desmandos especulativos, mas percebe a dificuldade quando o dinheiro entra no jogo, e seu neto Ramsés (Francisco Assis), filho da caçula Fátima (Mariana Ruggiero), que trabalha nas cercanias de Recife. O bar mantido pela família é vítima das distorções ambientais diante da construção de um porto nas proximidades, berçário de tubarões que interferiu no habitat, e por consequência passam a atacar, acabando por afugentar os turistas que migram para outras praias menos perigosas, escasseando a clientela. Uma significativa metáfora para o duplo sentido da agressão dos tubarões, tanto o peixe como o do poder econômico.

O enxuto roteiro assinado por Hilton Lacerda e Anna Carolinna Francisco, conta uma história aparentemente simples, porém surgem na trajetória da trama situações complexas encontradas no dia a dia de qualquer mortal. Assis faz interessantes comentários sociais pelos quais é recorrente, mas sua obra traz para a telona uma reflexão mais madura e menos panfletária, embora ainda haja alguns excessos sexuais descartáveis no contexto, para melhor ser absorvida sobre a rotina dos moradores abalada pela chegada da potente empresa petrolífera Petrogreen, que decide expulsar todos de suas casas para instalar ali empreendimentos para ter melhor acesso ao local escolhido. O realizador faz referências pontuais aos problemas, como o paradoxo da corporação interessada em destruir as reservas naturais, com o pomposo nome que resume em petróleo e o verde (green), numa clara e manifesta distopia com o meio ambiente. A inverossimilhança está centrada na extração de óleos e similares se contrapondo com a preservação responsável da ecologia ao prejudicar a biodiversidade.

O diretor registra com tintas fortes o inescrupuloso representante da petrolífera, Aurélio (Mateus Nachtergaele), que negocia a compra de terrenos do vilarejo para um futuro empreendimento. Ele investiga o núcleo da família, e alguns segredos, entre eles um filho perdido, Sandro (Cauã Reymond), dono de um cinema pornô, que virão à tona, com chantagens que minam a harmonia de todos, principalmente da conciliadora mãe e sua energia diante das revelações e o constrangimento do adultério. Outra importante construção no enredo é o personagem infantil que sonha em entrar no mar, mas contenta-se com um óculos, presente do famigerado executivo, para dar vazão às suas fantasias por uma realidade virtual, o que, segundo o presenteador: “é melhor que mar de verdade”. O filme retrata com sensibilidade as hipocrisias e os cinismos do preposto do empreendimento. Assis retrata com delicadeza o lado familiar e carinhoso dos personagens na defesa de seus direitos sendo descartados por dinheiro em nome do progresso e do futuro incerto nos planos de compra. A modernização ditada como regra de soluções pragmáticas fica evidente no desfecho sombrio estampado na visão do jovem realocado, embora toda a luta da preservação como forma de manter viva a alma como essência contrária à ganância especulativa invasiva. A imposição da força dominadora do progresso no contexto é apontada no poder de fogo pela pressão psicológica. Um painel dos contrastes de uma realidade brasileira de anomalias e distanciamentos dos sonhos, sem cair na obviedade, através de elementos caracterizadores e envolventes que marcam com qualidade esta admirável obra sobre a injustiça social no cenário nacional.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Nomadland

Viagem Existencial

Nomadland é o longa-metragem que vem consagrar definitivamente Chloé Zhao ao ser premiada com o Oscar e o Globo de Ouro na categoria de Melhor Filme, que a fez se tornar também a segunda mulher oscarizada com a estatueta de Melhor Direção. Além de diretora, roteirista, produtora e editora, esta jovem chinesa de 39 anos, radicada nos EUA, ganhou ainda o Leão de Ouro no Festival de Veneza e o People's Choice Award no Festival Internacional de Cinema de Toronto. Conhecida por seus trabalhos independentes: Songs My Brothers Taught Me (2015), Domando o Destino (2017), e o inédito Os Eternos (2021). Desta vez, a dobradinha foi feita com a atriz americana Frances McDormand, de 63 anos, casada com o cineasta Joel Coen, desde 1984, que atingiu a marca de três estatuetas do Oscar, tendo antes sido laureada em Fargo (1996) e Três Anúncios Para um Crime (2017). Então, a equipe fez as malas e colocou o pé na estrada para viajar por cinco estados, durante várias semanas, com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, como dizia o saudoso cineasta mais influente do efervescente Cinema Novo brasileiro, Glauber Rocha.

A trama gira em torno de Fern (McDormand- excelente atuação ao carregar o filme nas costas), uma mulher de 60 anos, que entra numa velha van, mas bem equipada, com tudo dentro para atender o básico da dignidade humana. Parte para uma longa trajetória na esperança de viver fora da sociedade convencional, como uma moderna nômade, após o colapso econômico que abalou a cidade industrial de Empire, na zona rural de Nevada, nos Estados Unidos, diante da desativação de uma grande fábrica que a fez perder o emprego. Além de McDormand e David Strathairn, que interpreta um idoso interessado em Fern, todos os demais personagens são atores amadores selecionados entre os nômades reais. A protagonista é vítima da Grande Recessão de 2008 que impactou as vidas de milhares de pessoas por uma recessão poucas vezes vista. Ela carrega também o luto do marido falecido, mas tenta superar esta que foi a maior perda de sua vida. Na sua obstinada jornada, consegue empregos temporários, tem contratempos com o veículo, mas constrói algumas amizades e descobertas, como revelações de criaturas amarguradas e solitárias na saga pelos caminhos que irá desbravar. Entre tantas personagens reais, está Linda May, assim como outros nômades da terceira idade que trabalharam durante décadas para ter um padrão de vida confortável da classe média, porém com um câncer invasivo e dúvidas de que teria alguns anos para descansar, conta suas angústias. Já o mentor Bob Wells, outro personagem que interpreta sua vida, embora ainda abalado pelo suicídio do filho, fala do sistema de Seguridade Social de seu país, que dá uma aposentadoria mensal modesta de US$ 500 e da opção de escolher entre comer, ir ao médico ou ter uma casa.

A realização é uma mescla de ficção e realidade, rotulada por alguns críticos como um filme híbrido, que por vezes torna-se um documentário, diante dos relatos tristes de demissão, divórcio, dívidas e perdas por hipotecas. Baseado no livro-reportagem da jornalista Jessica Bruder, publicado em 2017 nos EUA, que conta histórias verdadeiras e amargas, porém a protagonista é ficcional que está cercada por autênticos nômades encontrados no mundo real, e em fuga distópica com um olhar distante, sem as benesses do lazer. São indicativos de um futuro sombrio com a precarização do trabalho e uma aposentadoria cada vez mais improvável. Inquietações e atrocidades são reveladas oriundas de uma crise econômica devastadora, porém que solidificará uma rede de solidariedade entre aquelas criaturas em fuga da realidade.

A diretora demonstra que ao abandonar o ideal da classe média, os personagens solitários também recuperam a reminiscência da juventude que mitificou os hippies. Ajudam-se na montagem dos veículos, na busca de empregos de freelancer e lidar com os abusos dos empregadores. A comunidade on-line cria blogs para trocar experiências das viagens sem destino e suas andanças pelas estradas. Não perdem o prazer de dançar e propiciar encontros como um poema de amor à vida e exaltação à natureza, embora a decrepitude esteja estampada na fisionomia de muitos e a proximidade da morte esteja espreitando algumas vidas já condenadas. Uma boa reflexão sobre as amizades sendo fortalecidas neste epílogo de suspiro existencial de interessantes diálogos através de uma peregrinação na qual todos seguem, tendo de lidar com as fragilidades da vida para valorizar cada momento pelas lentes de uma fotografia majestosa de belas imagens. Uma abordagem de cunho sensorial, com uma trilha sonora não invasiva que dá o tom certeiro na melodia, para adequar simbolicamente uma volta ao passado pelo itinerário do presente, sem um futuro definido pelas poucas luzes no horizonte.

Nomadland é um admirável filme sombrio, mas no qual a esperança se confunde com a melancolia, por alguns instantes, dando sinais de aflição e consolos nos sentimentos da convivência dos personagens mergulhados na solidão. Em outros momentos, cede lugar para edificar, tanto pela adversidade, como pela dor da perda, como por escassos instantes de prazer daqueles seres buscando o reconhecimento da dignidade para serem valorizados. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da jornada espiritual de aventuras nos questionamentos da vida neste retrato honesto sobre uma parcela da população norte-americana no enfrentamento dos perigos diários decorrentes do frio congelante e a pobreza iminente. Uma imersão de magia na naturalidade proporcionada pela cineasta neste legítimo drama road movie, que mostra com tintas consistentes o pós- crise de 2008 e o número expressivo de pessoas que irão se abrigar em automóveis como suas casas, sintetizado no desabafo da personagem central. Estão lá mais por falta de opção do que por uma prazerosa escolha. Eis um retrato sensível, maduro e quase que poético advindo dos núcleos familiares decorrentes das fragilidades do isolamento social que dá lugar para o convívio e a fraternidade naquele espaço desalentador de ilusória harmonia coletiva.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Meu Pai

Demência Devastadora

Indicado ao Oscar deste ano em seis categorias (melhor filme, ator, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, design e edição), disponível nas plataformas Net/Claro Now, Apple TV e Google Play, o longa-metragem Meu Pai, do romancista e teatrólogo francês Florian Zeller, que tem uma estreia promissora na direção com sobriedade e sensibilidade sobre a perda da lucidez e o mergulho no mundo dos devaneios da fantasia e do imaginário de um idoso octogenário que começa perder a memória. Distancia-se do cotidiano para oscilar entre uma triste realidade de outrora e de reminiscências de um passado longínquo. São situações delicadas que irão causar desconforto e perplexidade entre os mais próximos, como a recusa da ajuda da filha que pretende se mudar para Paris e precisa garantir os cuidados dele enquanto estiver fora. Na ânsia de buscar alguém como cuidadora, surgem as mudanças pertinentes da grave moléstia do Alzheimer (a Organização Mundial da Saúde estima que haja atualmente 35 milhões no mundo) que irão atordoar e lançar desconfianças e dúvidas entre o enfermo e seus familiares, como a confusão mental estabelecida até uma ruptura da estrutura do mundo real. Ingredientes estes que devem ser creditados ao fértil roteiro adaptado magistralmente da peça teatral Le Père (2012) por Christopher Hampton, oscarizado por Ligações Perigosas (1988), em parceria com o diretor.

A história é aparentemente simples, mas a complexidade do enredo está mais para uma reflexão dolorida do que para as inquietudes e desconfianças de Anthony (Anthony Hopkins- em mais uma atuação soberba e irreparável) que ainda conserva sua imponência de um lorde, apesar dos constantes ataques de confusão e esquecimento. Recusa-se terminantemente a admitir, embora por força da saúde já dando mostras de um estágio debilitado como as sucessivas acusações do furto de seu relógio. Como um artefato explosivo que cai no colo, a filha Anne (Olivia Colman- impecável na interpretação com doação) travará uma batalha diária inglória e desgastante para cuidar do pai e evitar maiores dissabores com o cotidiano. Ela terá ainda que lidar com as cobranças do intransigente marido Paul (Rufus Sewell), que insiste em internar o sogro num asilo. A preocupação da filha e o seu dilema diário estão associados a possíveis acidentes domésticos, pois ele não consegue viver sem a ajuda de terceiros, mas mesmo assim insiste em morar com a filha em seu apartamento confortável. Com suas obsessões e manias adquiridas, bota a correr todas as zelosas cuidadoras, exceto Laura (Imogen Poots) com quem associa a semelhança física com a outra filha Lucy, morta tragicamente há muitos anos.

Como um novelo que se desenrola nesta experiência sensorial, o realizador vai lançando as situações diárias típicas de conflitos com as empregadas, bem como o choque de frente do pai com a filha e o marido. O filme propõe a meditação sobre a chegada da devastadora demência na terceira idade tendo como consequência as peraltices causadas pela vítima da doença que aflora sem piedade e não como um elemento agressivo de quem tem as faculdades mentais sadias. Como referências de subsídios já foram realizados outros excelentes filmes com a mesma temática: Nebraska (2013), de Alexander Payne, O Filho da Noiva (2001), de Juan José Campanella, Sr. Kaplan (2012), de Álvaro Brechner, Para Sempre Alice (2014), de Lisa Genova e A Viagem de Meu Pai (2015), de Philippe Le Guay. Na mesma esteira, porém com um viés um pouco diferente pelo contexto da eutanásia em foco, há a obra-prima Amor (2012), de Michael Haneke, no qual o companheiro trocava fraldas geriátricas, alimentava com papinhas na boca, medicação, água e dava banho, embora a contundência psicológica do personagem fosse mais intensa e agressiva, diante da aproximação iminente do ocaso implacável da vida. Zeller constrói um universo perverso advindo do tempo passando, mas não deixa cair no melodrama, mesclando o bom humor e a sensibilidade das situações cômicas ingressarem como um doce amargor decorrente de uma acidez involuntária de uma vida que se esvai lentamente. Assim é o avanço da idade e os cuidados especiais que requerem, através da sugestão implícita do acometimento nefasto da memória corroída através dos recorrentes lapsos incuráveis que se agravam ao longo da existência.

O desenrolar do drama vivenciado pelo protagonista através de sua visão, dará um ângulo correto pela distorção da enfermidade, criando fantasias com confusão mental ao dizer à nova cuidadora ser um dançarino, embora fosse um engenheiro aposentado; os delírios e as hostilidades com o genro são situações que se agravam, embora o cineasta deixe em aberto a possível agressão sofrida pelo idoso. As alucinações crescem e os conflitos aumentam com as adversidades cada vez mais presentes. Cria-se um clímax de suspense psicológico com o passado da filha falecida, num emaranhado de novas situações que povoam a mente do pai no antagonismo com Anne e seu drama em deixá-lo numa casa de repouso e ir para o exterior. A internação abrupta será certamente traumática para ambos. Os enfermeiros Bill (Mark Gattis) e Catherine (Olivia Williams) entram na ciranda confusa das digressões e pensamentos do passado pela visão de Anthony, que pedirá a presença da mãe para levá-lo para casa numa súplica angustiante e, aos prantos, chora como criança desamparada e assustada pelo terror do momento nos braços da meiga enfermeira. Pergunta: “quem sou eu?”, em comoventes e doloridas cenas, em que a agonia do protagonista com alguns lampejos de lucidez dói no espectador e na profissional da saúde.

Meu Pai não é mais um filme sobre demência e a relação familiar, devendo estar na lista dos dez melhores do ano. A singularidade está no instigante roteiro ao apresentar a situação pelos dois pontos de vista. Tanto do idoso e sua solidão, bem como a vida da filha e as circunstâncias que se apresentam no dia a dia. O desfecho é arrepiante ao elucidar a temporalidade e o real espaço físico das imagens que até então eram mostradas como num jogo de xadrez. É a realidade de uma situação sinistra e definitiva da deterioração mental para sempre como somente o cartão postal no epílogo irá revelar a versão correta de tempo e a sincronia do enredo no flashback ocultado pelo diretor. Uma inesquecível obra no formato de gestos teatrais na mais pura essência cinematográfica sem rótulos sobre o início e a melancólica finitude diante dos sentidos cognitivos que levam para a perda dos sentidos. Uma impactante proposta direta e sem pasteurização da evolução (início da destruição do cérebro, por consequência a razão, e finalmente minando a consciência) até atingir o ápice deste extraordinário drama familiar existencial com imagens finais de árvores e seu verde de esperança de um novo dia contrastando com o olhar desorientado. Fica acentuado o estrago pelo avanço da moléstia arrebatadora dentro de um contexto chocante e seus prejuízos que fluirão paradoxalmente na reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes. Eis uma pungente abordagem que ganha tons de uma imersão paranoica obsessiva pela desorientação da impotente vítima na passagem das luzes se apagando na contemplação da ruptura com o presente e o futuro, restando alguns resquícios do passado.