terça-feira, 14 de setembro de 2021

Bagdá Vive em Mim

Fantasmas do Passado

O partido de Saddam Hussein passou a governar o Iraque, em 1968, logo após ter dado um golpe de Estado, tendo o ditador assumido o poder, em 1979. Envolveu-se em conflitos armados com o Irã e o Kuwait, tornando-se alvo da Guerra ao Terror patrocinada pelos Estados Unidos após o atentado às Torres Gêmeas, em setembro de 2001. As forças de coalizão ligadas aos norte-americanos invadiram o Iraque, em 2003, derrubaram Saddam, e em 2006, foi executado. O instigante filme Bagdá Vive em Mim é uma coprodução da Suíça, Alemanha e o Reino Unido, embora haja simplicidade no seu desenrolar, é um drama mesclado com romance e política na sua genuína essência cinematográfica. O diretor e roteirista iraquiano Samir está exilado na Suíça e, em entrevista ao jornal Estado de Minas, conta que depois da revolução de 1958, os comunistas foram perseguidos por forças apoiadas pelos EUA e a CIA. “Eu era criança e me disseram: 'Vamos passar férias na Suíça’. Ninguém me disse que seríamos refugiados. Não ficamos um mês, quatro meses ou quatro anos. Passaram-se 40 anos da minha vida”. De acordo com o realizador, Brasil e Iraque têm muitas semelhanças, que vão além da influência da religião ou do passado marcado pela ditadura, e revela ter se inspirado no cineasta Glauber Rocha (1939-1981): “Me inspirei muito no cinema brasileiro dos anos 1970, vi muitos filmes políticos e experimentais do Brasil naquele tempo”.

Samir aborda com certa profundidade temas para uma boa reflexão, tais como os tabus da sociedade árabe, a religião, o machismo de seu povo, a homofobia explícita, os aspectos culturais e principalmente a política do passado ainda reinante no Iraque. Faz um retrato alegórico fiel e com tintas fortes do regime arbitrário, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente por um grupo de imigrantes que transformam o café londrino Abu Nawas num refúgio de iraquianos que já não têm mais espaço em seu país. Buscam preservar com galhardia sua cultura em meio a discutíveis valores ocidentais. Cada personagem, que teve o seu motivo para abandonar a pátria, precisa lidar com fantasmas do passado para seguir em frente. Há sucessivos desafios a serem enfrentados diariamente naquele recinto que deveria ser de puro entretenimento, mas que sofre atentados e dissabores já recorrentes para um sofrido povo que não se senta nas mesas para rir, mas se apoiam nas xícaras para lutar pela sobrevivência. Além de carregarem os traumas e as chagas fétidas de um tempo nem tão distante, que permanecem pelas circunstâncias que são apresentadas em um roteiro dinâmico. O olhar é de desencanto, sem reminiscências pueris lacrimejantes, pelas lentes deste promissor cineasta atento aos acontecimentos de sua aldeia que nunca esqueceu.

A trama é conduzida pelo poeta Taufiq (Haitham Abdel-Razzaq), que faz uma narrativa imparcial e dolorida através do personagem atual na pele do guarda-noturno. Aos poucos, descobre-se os horrores que passou em Bagdá ao ser torturado numa tragédia pessoal traumatizante pelas marcas físicas no corpo que ainda carrega e o levou à Europa. Por ser comunista e contrário ao fundamentalismo islâmico, foi perseguido pelo regime de Saddam nos anos de 1990. Embora tenha fugido para Londres, traz a dor da morte do irmão e sua noiva que foram assassinados pelo inescrupuloso e violento regime ditatorial. Em comum, os personagens têm a mesma origem, como a arquiteta Amal (Zahraa Ghandour), que não consegue validar o diploma e virou garçonete. Ela representa a libertação feminina no contexto árabe para fugir do ex-marido Ahmed (Ali Daim Mailiki), um temido espião de Saddam, que surge na capital inglesa como o endemoniado adido cultural do Iraque. Porém, vive uma tensão permanente entre seu desejo por liberdade contrapondo com a pressão da sua comunidade que não aceita que se case com um homem não iraquiano, embora tenha se apaixonado por um britânico. Samir revela que parte da juventude do país não se alinha a valores extremistas e seus ideais são confrontados pelo fundamentalismo religioso. Há o técnico de informática homossexual que esconde o namorado com medo de represálias, tendo de lidar com as risadas e provocações dos conterrâneos, além do jovem problemático que vai a uma mesquita radical ouvir sermões e acaba se convertendo no islamismo radical.

O filme mostra como as diásporas são variadas, embora o realizador esteja voltado essencialmente para as coisas do cotidiano de seu país, ainda que tenha filmado em Londres, bem distante de seu povo, não se afasta das relações intrincadas e apresentadas com naturalidade a dramaticidade decorrente de uma situação provocada por um governo autocrático com suas crises políticas e perseguições aos opositores, ao ser explorado com talento e sensibilidade. A tensão estabelecida nos personagens bem construídos, como se fossem de carne e osso, retrata a garçonete, o gay e o rapaz convertido, nada mais é do que o conflito instalado que trará muitas revelações pretéritas com feridas abertas sem cicatrização que tentam ser removidas, apesar da crueza e de uma sucessão de fatos e circunstâncias de personagens que conviveram e discutiram as nuances marcadas pelo tempo. Há um imbróglio com trocas de acusações, principalmente pelos costumes rígidos de uma sociedade moralista com seus sentimentos e escrúpulos conservadores dentro de um vazio existencial latente. As mulheres e os homossexuais não passam de meros coadjuvantes e de restritos direitos. O foco tem o viés da visão das minorias, pois há entre os homens o sentimento arraigado preconceituoso pela manutenção dos tabus.

Bagdá Vive em Mim retrata um presente muito atual com verdades do passado irrecuperáveis para uma reflexão sobre os temas abordados que estão marcados em cada personagem. Está bem demonstrada nesta realização com dignidade, diante da interação estabelecida com o espectador. O diretor lança as dúvidas e não radicaliza com os elementos representados da força e da opressão. A emoção é contida com um tom que deriva de uma situação peculiar para a complexidade do enredo e do rol de refugiados que se alinham em conflitos quase que insolúveis, aparentemente. Todavia, nem mesmo o que há como subsídios fortes de ligação justificam as atitudes que ficam à deriva como consequência de um regime totalitário implantado como forma de subtrair ideias e manifestações livres das angústias que os acompanham. As temáticas são consistentes e intimistas do realizador que se detém na abordagem política, cultural, familiar, tabus da sociedade, religião, machismo e homofobia como forma de interagir com seus compatriotas. É significativa a importância dada às palavras nos diálogos numa forma bem estruturada do enredo. Ficou distante do maniqueísmo, através de uma segura direção com um elenco impecável que dá brilho nesta obra admirável no conteúdo e magnífica no contexto.

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