terça-feira, 30 de julho de 2013

O Que se Move



As Mães

Precedido do prêmio de melhor atriz para Fernanda Vianna no Festival de Gramado do ano passado, embora tenha recebido uma calorosa ovação na apresentação, o primeiro longa-metragem de diretor paulista Caetano Gotardo O Que se Move merecia melhor sorte. É bem superior ao vencedor do kikito de melhor filme Colegas (2012), de Marcelo Galvão. Aliás, o magnífico O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, foi outro injustiçado na competição, ao levar apenas a melhor direção, em detrimento da simpática comédia escrachada premiada injustamente.

Gotardo é também o responsável pelo roteiro, buscando inspiração em notícias da crônica policial de jornais, sem ser documental, encontra no cotidiano seus subsídios para elaborar e brindar os aficionados da sétima arte, com este fabuloso drama familiar. Tem como apoio a experiente produção de Filmes do Caixote, onde Juliana Rojas e Marco Dutra, diretores de Trabalhar Cansa (2011), assinam respectivamente a correta montagem e a fascinante música da película, retratando com seriedade um olhar feminino sobre os filhos perdidos por tragédias do dia a dia, através da visão perspicaz de três mães sofridas em que o destino lhe aplicam surpresas desagradáveis. Elas emocionam com o amor materno dedicado aos seus filhos, sob uma narrativa brilhante. Não há lugar para pieguismo ou apelações emocionais desproporcionais, porém faz com que o espectador se identifique com uma das histórias, ou ao menos saiba de um acontecimento próximo.

A trama das três famílias tem como fio condutor a figura materna e sua dor, ao retratar histórias de núcleos familiares. São contadas num formato de três episódios distintos e sem conexão, dramas pessoais com choros e alguns risos sombrios, distantes de uma alegria avassaladora, onde o amor é o tema principal. A abordagem é realizada com simplicidade, muita sensibilidade e esmerada sutileza de um cineasta promissor e voltado para o que acontece na imprensa sem grande repercussão. A humanidade é enfocada com uma discreta melancolia em cenas marcantes que levam para uma reflexão mais profunda sobre o que acontece diariamente com pessoas comuns e quase sem voz de reivindicação.

As imagens se fundem com as palavras mencionadas em formato poético sobre a desgraça e o luto da professora (Cida Moreira) prestes a se aposentar, dedicada ao filho e preocupada com suas viagens pela internet até altas horas da madrugada e que se vê surpreendida por policiais em busca de computadores na sua residência, diante de denúncias de incursões a sites de pedofilia. A reação surpreendente do filho e o canto de dor e amargura tocam fundo a alma, coração e mentes dos espectadores. Noutro episódio, o pai que esquece a criança no banco de trás do carro, por ter alterado a rotina de seu trabalho e seu encontro com a mãe (Andréa Marquee) é uma ode à culpa e a sensação de perda do sentido da vida. Já o terceiro caso é baseado num fato real acontecido em 2002, mais conhecido como Pedrinho de Goiânia, diante do fato do roubo de um bebê da maternidade e somente aos 16 anos encontra seus pais biológicos. Nesta altura da vida, já havia constituído e se estruturado numa nova família, recebendo afeto, carinho e dedicação daqueles que o criaram. O reencontro de mãe (Fernanda Vianna), pai e filho mostram o vazio que jamais será preenchido ou suprido de alguma forma.

Um cinema de autor que centraliza na figura materna a essência da trama, num relato epidérmico e comovente dos danos nas mães. Elas cantam e veem no movimento das pessoas alguma saída para suas fatalidades, que talvez pudessem ser evitadas pelas circunstâncias. Três contos tristes, mas de certa maneira está contido de uma beleza e de uma força feminina arrebatadora, através da alta densidade dramática pela autenticidade que emprestam para o desenrolar do enredo. Os sentimentos são mostrados também pelo olhar e com imagens sensoriais reveladoras e que calam fundo no imaginário humano.

O Que se Move é um drama equilibrado, com a tensão e o suspense em planos longos e logo cortados por contraplanos suaves, dando leveza na proposta, sem se importar com diálogos prolixos ou estéreis. Os sentimentos são captados e a proposta vai ao encontro da plateia com harmonia e deixa marcas perturbadoras com lucidez. Há elementos psicológicos bem caracterizadores e envolventes que registram com rara qualidade.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O Sonho de Wadjda



Liberdade Feminina

Ironicamente o primeiro longa-metragem totalmente rodado na Arábia Saudita que não tem salas de cinema, vem com a assinatura de uma mulher. O ineditismo foi quebrado pela diretora Haifaa Al- Mansour, que buscou recursos financeiros na Alemanha para realizar O Sonho de Wadjda, neste sensível libelo feminino contra a opressão machista diante da posição da mulher num papel meramente secundário, sem nenhum poder de interferência ou tentativa de marcar posição na sociedade muçulmana dominada eminentemente pelos homens, onde tudo converge para agradar seu Deus (Alá), revelado ao profeta Maomé, onde a liberdade é tolhida e os direitos são normalmente submetidos às leis e dogmas religiosos ditados e seguidos rigorosamente pelos mandamentos do Alcorão, o livro sagrado do Islã.

Numa linguagem simples, mas eficiente e com um poder de fogo potente, a cineasta reflete a condição feminina precária, sem voz e que vive de sonhos e ilusões, como a protagonista Wadjda (Waad Mohammed- de atuação magnífica para uma atriz infantil), uma garotinha de 12 anos como qualquer outra, que quer brincar, ter uma bicicleta para passear- seu sonho maior-, andar com o rosto descoberto de lenços e burcas. Busca com intensidade viver uma pré-adolescência saudável, mas é vista como revoltada e fora dos princípios religiosos ditados em seu país, pois frequentemente esquece por distração das convenções. Ao entrar num concurso sobre Alá para obter o prêmio máximo em dinheiro, terá nova decepção e outro golpe na sua infância lhe será aplicado.

Até a legítima causa da Palestina soará contraditória, embora nem tenha noção da absurda decisão da diretora da escola. A liberalidade da menina não é vista com bons olhos pela cúpula diretiva e haverá de certa forma retaliações futuras. Porém tem a solidariedade e o ombro do seu amiguinho dócil e carismático. Na mesma posição desafiadora do sistema está a mãe de Wadjda (Reem Abdullah), ao enfrentar até as últimas consequências, na tentativa de conquistar o pai de sua filha, com a tênue esperança de se casar com ele. Sua luta é difícil, pois encontra vários obstáculos para ingressar no sistema patriarcal enraizado. Tanto a mãe como a filha sofrem muito com a rejeição à figura da mulher, mas há o toque sutil de Al- Mansour com seu olhar pelo ponto de vista feminino, sem partir para o confronto ou colocar uma dualidade de choque de ideias e posições naquela sociedade estereotipada.

Não dá para se exigir num primeiro momento uma posição cabal ou uma reivindicação mais aprofundada, tendo em vista as dificuldades para a realização da obra. Ainda assim, apesar da intolerância do regime, o filme atinge seus objetivos e mexe com o púbico, ao alertar para a dura realidade conservadora machista ali instalada. As mulheres são vistas como seres de uma subespécie, onde as rédeas do comando estão concentradas nas mãos dos homens, sem nenhuma abertura ou concessão, exceto nas denúncias esporádicas que surgem pelo cinema.

A cineasta é promissora e demonstra intimidade com a câmera e possibilita um elenco leve, deixando o filme fluir através da espontaneidade dos atores amadores infantis com desempenhos acima da média. Tanto o roteiro como própria estética simples de filmar com naturalidade, voltada essencialmente paras as coisas do cotidiano, são muito semelhantes aos consagrados diretores iranianos, tais como Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000) e Asghar Farhadi com A Separação (2011).

O Sonho de Wadjda é o início de uma proposta para romper a barreira da passividade feminina, diante do claro e inequívoco relato sobre as meninas criadas e educadas para o casamento imposto, sem se importar com seus sentimentos ou desejos de escolha. A missão é viver passivamente, sem contrariar jamais, sob a ameaça constante de estar infringindo o Alcorão e desagradando Alá. Um filme apreciável e surpreendente pela qualidade de um resultado emblemático e com autonomia pela busca da dignidade e da delicadeza das personagens femininas em seu conteúdo de protesto.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Branca de Neve



Fábula da Tourada

Todo mundo conhece o primeiro clássico filme infantil dos estúdios da Walt Disney, Branca de Neve e os Sete Anões (1937), dirigido por David Hand, baseado no conto de fadas escrito pelos irmãos Grimm. A história que encantou e fez chorar multidões, tinha a linda rainha má, que se transformava em bruxa, por inveja e vaidade, manda matar sua enteada, a mais linda de todas. Mas o carrasco deixou-a partir e, durante sua fuga pela floresta, encontra a cabana dos sete anões que passam a protegê-la. Algum tempo depois, quando descobre que Branca de Neve continua viva, a Bruxa Má disfarça-se e vai atrás da moça com uma maçã envenenada, que faz com que a bela caia em um sono profundo por toda a eternidade.

Agora com uma roupagem nova e bem repaginada, após esperar 8 anos para filmar e colocar em prática seu projeto, a fábula é adaptada para o mundo dos adultos de forma alegórica, escrito e dirigido por Pablo Berger, originando na versão espanhola Branca de Neve, é revista de forma diferente e enfoca as touradas de Sevilha, nos anos de 1920. Com um roteiro sem diálogos e na versão preto e branco, como fora visto recentemente no oscarizado O Artista (2011), do francês Michel Hazanavicius, que redundou na festejada produção francesa rodada nos EUA.

O filme tem no papel da protagonista Carmem, apelidada pelos anõezinhos de Branca de Neve (a grata revelação como atriz Macarena Garcia) e como a perversa madrasta (Maribel Verdú- de interpretação memorável). A trama se desenrola com o auxílio ardoroso da trilha sonora exemplar, numa narrativa correta dentro de um enxuto roteiro, mostrando a odisseia da garotinha que perdeu a mãe no seu parto e do pai, um famoso toureiro atingido violentamente na arena por um touro, não morre e fica inválido numa cadeira de rodas, porém se casa com a enfermeira megera que aplica maus-tratos à exaustão na enteada para afastá-la do convívio familiar e abocanhar toda a riqueza do marido. O sofrimento é grande, mas sonha em seguir a trajetória do pai e acaba no circo itinerante dos sete anões toureiros, depois de ser salva por eles no mato, após um inusitado assédio na adolescência por obra da madrasta.

A fábula moderna é bem ambientada numa Espanha da década de 20. Há méritos inquestionáveis da obra, onde o bem e o mal se confrontam numa alegoria magnífica, sem ser piegas e afastando-se do maniqueísmo, não se deixa envolver pelo emocional na sua estrutura dramática numa estética antiga, no melhor estilo e do charme dos filmes de Chaplin, através do personagem mais famoso, o vagabundo Carlitos, oprimido e engraçado, denunciava as injustiças sociais, de forma inteligente, sabia como fazer rir e também chorar, em vários filmes rodados sem sonoridade e sem fotografia colorida. Outra boa referência está no magistral filme musical Cantando na Chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly. É mais um nessa tendência de filmes mudos e em preto e branco, depois de O Artista, e no fabuloso Tabu (2012), do português Miguel Gomes.

As peripécias dos anões toureiros com sua protegida são demonstrações de cinema puro e um belo tributo ao passado no formato gótico e sombrio com a ausência de diálogos, demonstrando uma capacidade inventiva e objetiva que fisgam na essência o espectador, através desta madura e equilibrada fábula adulta. Surge um diretor com méritos inegáveis nesta sua obra consagradora que o coloca num plano superior ao seu longa Da Cama para a Fama (2003). Mostra bom estilo e nuances do cinema mudo com elipses adequadas, através de um figurino impecável, sem esquecer a exemplar fotografia em preto e branco, símbolo de um passado de reminiscências, marca pela ousadia numa época onde se valoriza mais o avanço tecnológico, as invenções e os avanços virtuais. O filme tem significativas virtudes expositivas, pois consegue prender a atenção do público, não deixando escapar o foco da trama.

Branca de Neve é uma sensível e harmônica película para ser vista por um público adulto e exigente, diante da magia indiscutível e fascinante da sétima arte, como na estupenda cena dos lenços brancos sendo acenados fervorosamente pelo público, como num pedido de paz e clemência ao touro indefeso na iminência de ser sacrificado sem misericórdia pela toureira. Um libelo contra o massacre nas arenas que fica registrado pelo cineasta, como só o cinema poderia fazer.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

César Deve Morrer



















Trágica Liberdade

A peça teatral Júlio César, de William Shakespeare, é levada ao cinema pelos irmãos octogenários Paolo e Vittorio Taviani, 81 e 83 anos respectivamente, para ser encenada por um grupo de presidiários selecionados pelo teatrólogo Fábio Cavalli, também responsável pela montagem de A Divina Comédia, de Dante Alighieri. César Deve Morrer teve como cenário a prisão de segurança máxima Rebibbia, em Roma, conduzido pelos irmãos cineastas que fazem um belo e sensível registro documental ao ficcionar o enredo trágico numa adaptação magistral para as telonas escuras. Foi vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2012.

O formato é uma mescla de entretenimento com elementos tipicamente documentais para o ensaio e a apresentação de homens perigosos de um presídio hermético. Homicidas, traficantes, mafiosos e ladrões de alta periculosidade são os rostos que comporão aquela espetacular encenação de atores amadores recrutados entre facínoras, com uma abordagem pertinente aos travestidos intérpretes, como a busca da liberdade contrapondo com a cena final da clausura e a volta à realidade tristemente dolorosa deste painel humano.

A tirania de César com a consequente traição de Cássio e do próprio filho Brutus causam a revolta de Marco Antônio na defesa do império, originando a grande batalha final na montagem para o teatro filmado, mas sem se afastar da linguagem e o fascínio do cinema, com um cenário único como visto recentemente no extraordinário Amor (2012) de Michael Haneke; ou no bom filme Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski; ou ainda no magnífico Vocês Ainda Não Viram Nada!, de Alain Resnais. É bem original a jogada cênica, como foi também intuitiva a criação de Eduardo Coutinho em seus documentários Jogo de Cena (2006) e Moscou (2009). Há criatividade e o resultado é uma obra profunda e notável em todos os seus aspectos, como nos seus similares.

Outro ponto abordado com sabedoria é a ambição, mencionada várias vezes e se misturando com a liberdade de um povo e com o pedido do imperador para colocar fogo não só em Roma, mas no mundo, pela explosão de seres oprimidos e sem voz que buscam no grande testamento a saída para a libertação e o fim das amarras que prendem os súditos sofridos e esmagados pela opressão.

O clássico é na realidade mais uma busca pela desconstrução do que uma adaptação simples, como admitido pelos cineastas ao receberem o Urso de Ouro. Retrata o filho matando seu pai para satisfazer os senadores romanos contrários ao poder totalitário do imperador. É sintomático o arrependimento e o desespero na cena do epílogo, diante da busca enlouquecida de um voluntário para pôr fim no martírio do parricídio abjeto e imperdoável que leva às ruas uma multidão à procura dos traidores, diante da tragédia e a busca obstinada pela redenção.

Ao se optar pelo preto e branco na fotografia, há uma aproximação bem maior com o realismo cênico daquela fortaleza com suas celas e corredores inexpugnáveis, sem glamourizar com cores e cenários deslumbrantes, dando com precisão o sentido claro e verossímil para o olhar atento do espectador. Há uma evidente semelhança como tom de documentário no prólogo que vai se dissipando com o desenvolvimento da trama, deixando a dramaticidade na sua essência abranger o filme, secundado por uma magistral trilha sonora conduzir com suspense equilibrado no magnífico acabamento estético dos diretores de Pai Patrão (1977) e A Noite de São Lourenço (1982), inspirados pelo neorrealismo do cineasta italiano Roberto Rossellini, de Roma, Cidade Aberta (1945) e Paisá (1946).

César Deve Morrer traz uma reflexão fabulosa sobre os encarcerados atuando na amplitude das cenas em contraste com os ensaios levados com extremo rigor e profissionalismo. Uma ficção que se aproxima de uma realidade bem próxima, por ser contemporânea dentro de um presídio com a tentativa da ressocialização de marginalizados como um grande projeto criminal, levando a cultura aos detentos e refletindo sobre a ambição que desemboca na traição, bem como a tirania que torna a liberdade numa catarse explosiva pelo anseio obstruído na garganta. E lá fora existe a ideia de uma nova vida esperando, como num tormento que persegue aqueles homens fantasmas.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

A Memória que me Contam















Lembranças do Passado

Lúcia Murat estreou no cinema com o semidocumentário Que Bom te Ver Vivo (1989), depois foi para o drama com Doces Poderes (1997) e Quase Dois Irmãos (2004), buscou afirmação nos documentários Olhar Estrangeiro (2006) e Maré, Nossa História de Amor (2007). Após estas alternâncias em sua filmografia, consagra-se com o documentário familiar e a relação conflitada da diretora como ex-militante do MR-8 em Uma Longa Viagem (2011), sendo laureado em 2011 com o Prêmio do Júri da Crítica de Melhor Documentário do Festival de Paulínia e melhor longa nacional no Festival de Cinema de Gramado, direção de arte, Prêmio do Júri Popular, Prêmio Estudantil e ainda Caio Blat leva o kikito de melhor ator.

Com o drama A Memória que me Contam, uma coprodução do Brasil, Argentina e o Chile, retorna com o tema principal da reflexão sobre os anos de chumbo pós-1964, abordando as utopias do passado de derrotas pessoais e relações doloridas entre familiares e o ciclo de amigos, diante de um comprometimento social prejudicado por falta de uma melhor projeção de vida, diante da entrega total para uma atividade política pessimista, como demonstrada pelo motorista de táxi em seu desabafo pessoal. Também o terrorismo é tocado, assim como homossexualismo do filho da cineasta como comportamento sexual aceitável em tempos atuais.

Lúcia retrata uma época de lutas inglórias com o intuito do mítico jargão de salvar o mundo, numa construção genérica e de pouca profundidade em seus subtemas, além do tema principal, surgem questionamentos estéreis apresentados para uma reflexão esmaecida, que causam empobrecimento do longa e cai na abordagem tênue de resultado apenas razoável, diante das irregularidades estruturais, numa trama sustentada por um quebra-cabeça em toda sua desenvoltura, aonde os personagens vão se encaixando gradativamente. Uns se alocam harmonicamente, outros de forma artificial como o controvertido terrorista italiano Cesare Battisti, sob o pseudônimo de Paulo (Franco Nero- visto recentemente em Django Livre (2012), de Tarantino). Surge no meio da trama o ministro da Justiça, um ex-guerrilheiro que fala na instalação da Comissão da Verdade no Congresso, sob os aplausos dos militantes que discutem a relação com arrependimento críticos de uns, euforia de outros sobre um idealismo questionado e com resultados minguados e pouco satisfatórios.

A trama tem como protagonista Irene (Irene Ravache- sóbria e convincente), interpretando a diretora que homenageia sua grande amiga ativista Vera Sílvia Magalhães, com o nome fictício de Ana (Simone Spoladore), morta em 2007, ao não se recuperar de sequelas psicológicas e traumáticas das sessões de torturas ocorridas na masmorras de presos políticos. Embora a miscelânea, o filme é atual pelas abordagens lançadas na tela, como o homossexualismo, a discussão da lei da anistia e a encrenca em que o Brasil se meteu com o caso rumoroso do italiano e a extradição para seu país. Porém, falta força para levar todas estas temáticas até o fim, ao buscar soluções beirando ao pieguismo, ou a conclusão sobre um passado de fantasmas que se movem, se remexem, escarafuncham o presente, mas não avançam com solidez ou determinação de um foco profundo.

O drama é uma visita aos anos 60, tendo como ponto de partida a amizade da cineasta com Ana e seu encontro num hospital, diante da iminência da morte daquela mulher lutadora e sonhadora com um futuro melhor, vista pelos companheiros como ícone de uma esquerda brava, tendo como elo de união uma guerreira que os unirá numa sala de cinema para ver o grande tributo que lhe será prestado com lágrimas e muita emoção incontida brotando na inevitável reverência. Mas a profundidade está ausente, sobram subtemas soltos no roteiro prejudicado por esta diversificação de situações colocadas como ingredientes numa inconsistente babel.

O longa de Lúcia está acima do drama Hoje (2011), de Tata Amaral e sua abordagem da sexualidade como uma forma agressiva para se defender do passado que atormenta o futuro; mas bem abaixo do excelente Elena (2012), de Petra Costa, que não deixa escapar a política brasileira nos anos 80 e sua geração que abandonou o país na ânsia da liberdade à procura de novas oportunidades, além da incessante busca pela diretora da trajetória da irmã e de sua própria identidade, aspectos sobre a perda inventariada como resgate.

A Memória que me Contam é antes de tudo uma obra intimista com razoável dose de dramaticidade num contexto de cinema propriamente dito com uma harmonia desajustada, pouco eficiente como filme revelador, embora mantenha um aparente equilíbrio e uma dosagem bem acima do razoável como homenagem para exorcizar fantasmas que pairam no subconsciente de uma sociedade que sofreu os horrores e atrocidades de um regime autoritário.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Os Amantes Passageiros














Voo Bizzaro

O festejado diretor espanhol Pedro Almodóvar está de volta no seu estilo preferido de filmar que o consagrou, ao realizar mais uma comédia escrachada e voltada primordialmente para seus fãs que o veneram, principalmente quando o assunto é o mundo homossexual. O próprio cineasta avisa que Os Amantes Passageiros é a obra mais gay de sua carreira. Portanto, preparem-se para esta viagem insólita, cruzem os dedos, soltem os cintos no voo que terá enormes problemas com o trem de pouso do avião que sofre uma avaria na decolagem. Não há pânico e nem histerismo incontido, mas uma boa lavagem de roupa suja e algumas idiossincrasias com humor ferino, que serão jogadas no ventilador e chegam com o estofo de uma crítica social até o espectador.

Depois de realizar com genialidade filmes consistentes estruturalmente e com rigor formal ao estilo almodovariano como em A Pele que Habito (2011), com toda a frieza no fabuloso drama espanhol mesclado com suspense e horror, continha um abismo de evidências traiçoeiras que levavam para uma vingança de equívocos, quando se busca justiçar pelas próprias mãos o suposto mal que bate com força. Já em seu longa anterior também esteve instigante, com brilho e eloquência inerente em Abraços Partidos (2009), ao fazer dois filmes, ou seja, um dentro do outro, com todo seu charme, elegância e irreverência, que lembrou o belo Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), não pela semelhança, mas pela estética e pelos desdobramentos, como o notável Fale com Ela (2002). Desde o seu primeiro filme Pepi, Luci e Bom (1980), se estabeleceu um agente provocador; passando por Má Educação (2004); Volver (2006) é a ode máxima ao feminino; assim como nos demais foram Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999).

É inegável a inspiração na comédia clássica do escracho Apertem os Cintos...O Piloto Sumiu (1980), de David Zucker. Para isto foi escolhido um elenco recheado de bons nomes cômicos como Javier Cámara (atuou em Má Educação e Fale com Ela), Raúl Arévalo e Carlos Areces interpretando o trio impagável de comissários gays Josesserra, Ulloa e Fajas. Integram a equipe de astros com aparições relâmpagos a musa do cineasta Penélope Cruz e seu ator-fetiche Antonio Banderas, nesta comédia ao estilo de outras realizações do gênero que foram sucesso absoluto de público, especialmente Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, embora construídas numa época diferente da atual, na década de 80, onde as diferenças sexuais não eram toleradas, longe dos tempos atuais mais abertos e democratizados. Haviam ingredientes classificados como apimentados para escandalizar a plateia, o que não ocorre atualmente. Está longe de causar impacto ou chocar como antes.

Almodóvar mostra sua criação na trajetória do longa como peças que vão se encaixando, como os dois pilotos com viés homossexual. Um é enrustido e o outro é um bissexual, contrastando com os comissários assumidos que demonstram suas fraquezas. Um reza o tempo inteiro; o outro bebe muito e não sabe mentir, por decorrência de um trauma do passado; o terceiro comanda a bebedeira no avião e mantém seu segredo amoroso. Entre os passageiros estão: a virgem com suas visões e presságios para o futuro (Pepa Charro); o matador de aluguel e seu encontro inusitado no voo; a falsária em vídeos (Cecília Roth); o casal de noivos rumo à lua de mel e o envolvimento com drogas, tema recorrente nos filmes do diretor; o ex-piloto atormentado e o ator com seus dois amores conturbados num imbróglio em rota de colisão.

O longa tem seu cenário no interior de um avião da fictícia Companhia Aérea Península da Espanha que ruma para o México. De dentro da aeronave os passageiros ligam para seus familiares de um telefone público, como uma espécie de despedida e arrependimento do que foi feito de errado como numa autocensura comportamental. Sequer a roupa do varal é esquecida, diante da iminência de chuva, por um personagem. Nem nesta hora de dificuldades e incertezas na aterrissagem, o cotidiano é esquecido e chega a ser superestimado, embora tudo possa acontecer a qualquer momento.

O diretor faz uma agridoce crítica social nesta satírica comédia de pouco molho e repleto de ingredientes insossos e ultrapassados. Não chega a conquistar plenamente o público, como em filmes anteriores arrebatadores, sem decepcionar, mas também não empolga, fica no meio termo, como uma realização menor. Dá para dizer que é mais uma obra com sua grife, onde focaliza personagens excêntricos com suas confissões mostradas como se fossem purificar a alma dos supostos pecadores, inclusive com aqueles que passam mensagens nas entrelinhas de seus últimos desejos aos familiares.

Os Amantes Pasageiros é antes de tudo uma razoável metáfora da sociedade espanhola e seus problemas enraizados que estão latentes e advindos de uma crise sem precedentes no atual estágio de um mundo contemporâneo. O avião na iminência de causar uma tragédia no espaço aéreo dá voltas e não sai do mesmo lugar, embora procure uma solução, tal qual o Estado em crise e destruição no solo espanhol atual. Há nesta mescla bizarra no ar uma classe econômica anestesiada junto com as aeromoças, sem uma posição firme do comandante que se abstém de fazer um comunicado oficial, com a classe executiva repleta de privilégios e longe da realidade.